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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

 

INTERFACES

 

O jaguar como signo de vida e morte

 

Jaguar as a sign of life and death

 

El jaguar como signo de vida y muerte

 

 

Felipe Süssekind

Doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Correspondência

 

 


RESUMO

Há uma associação direta, em diferentes contextos socioculturais, entre o jaguar (ou onça-pintada) e a energia transformadora ligada aos ciclos da vida. Aspectos afetivos, cognitivos e simbólicos do felino articulam-se a configurações indígenas da vida e da morte, assim como ao ciclo das chuvas e à fertilidade. O pensamento conservacionista moderno, quando abordado nos termos de uma mi-toprática, pode revelar associações semelhantes. Com base nessa premissa, este artigo explora diferentes configurações possíveis de vida e morte. A referência são os processos intrinsecamente relacionados da extinção de espécies animais e da extinção de povos e culturas, a partir dos quais procuro refletir sobre a possibilidade de uma mitologia comparada envolvendo sistemas cosmológicos distintos.

Palavras-chave: ecologia, extinção, jaguar, antropologia, ritual


ABSTRACT

In different social and cultural contexts, there is a direct association between the jaguar and the transformative energy associated with life cycles. Affective, cognitive, and symbolic features of felines relate to indigenous configurations of life and death, as well as with fertility and cycles of rain. The modern conservative thinking may reveal similar associations as we deal with terms of mythical practice. The paper starts from this premise in order to explore different and possible configurations of life and death. We use as reference the intrinsically related processes of the extinction of animal species and the extinction of peoples and cultures. These processes are the starting point for our reflections on the possibility of a comparative mythology that involves distinct cosmologic systems.

Keywords: Ecology, extinction, jaguar, Anthropology, ritual


RESUMEN

Existe una asociación directa, en diferentes contextos socioculturales, entre el jaguar y la energía transformadora relacionada con los ciclos de la vida. Aspectos afectivos, cognitivos y simbólicos del felino se articulan a configuraciones indígenas de la vida y la muerte, así como a los ciclos de las lluvias y a la fertilidad. El pensamiento conservacionista moderno, cuando se aborda en términos de mito-práctica, puede revelar asociaciones semejantes. Partiendo de esta premisa, este artículo explora las diferentes configuraciones posibles de vida y muerte. La referencia son los procesos intrínsecamente relacionados con la extinción de las especies animales y la extinción de pueblos y culturas, a partir de los cuales reflexiono sobre la posibilidad de una mitología comparada, vinculando sistemas cosmológicos distintos.

Palabras clave: ecología, extinción, jaguar, antropología, ritual


RÉSUMÉ

Il y a une association directe dans différents contextes socioculturels entre le jaguar (ou "onça pintada" en portugais) et l'énergie transformatrice liée aux cycles de vie. Des aspects affectifs, cognitifs et symboliques de ce félin s'articulent à des configurations indigènes de la vie et de la mort, ainsi qu'aux cycles des pluies et à la fertilité. La pensée conservatrice moderne, lorsqu'elle est abordé dans les termes d'une pratique des mythes, peut révéler des associations semblables. En partant de cette prémisse, cet article explore différentes configurations possibles de vie et de mort. La référence se trouve chez les processus intrinsèquement relationnés, liés à l'extinction d'espèces animales et de l'extinction de peuples et de cultures, à partir desquels je cherche à réfléchir sur la possibilité d'une mythologie comparée concernant des systèmes cosmologiques distinctes.

Mots-clés: écologie, extinction, jaguar, anthropologie, rituel


 

 

1. Configurações indígenas de vida e morte

Todos os anos, no dia 15 de agosto, uma multidão toma as ruas de Chilapa, uma pequena cidade do estado de Guerrero, no sudoeste do México, para uma celebração em homenagem a Tepecyolotli, o deus asteca das chuvas e da agricultura. Durante a celebração, crianças e adultos desfilam pelas ruas vestidos como jaguares, mantendo viva a tradição pré-colombiana das tigradas e dos homens-jaguares. Trata-se de um antigo costume ligado à fertilidade dos campos (com variantes locais) e que tradicionalmente envolve lutas violentas entre jovens, revivendo associações entre sangue, sacrifício e manutenção do ciclo das águas.

O jaguar, nesse contexto, é também um elemento de resistência cultural, uma imagem anticolonialista e contra-hegemônica numa história de conquistas, genocídios e extinções. Entre os antigos astecas, os naguais eram feiticeiros conhecidos por tomar a forma de felinos para atacar seus inimigos. Identificados com imagens demoníacas pelos representantes do Estado espanhol, esses homens-jaguares foram intensamente perseguidos e mortos durante a conquista.

Temos acesso apenas a alguns fragmentos do que foi um dia a cultura asteca que originou as festas populares mexicanas, tigradas, às quais me referi antes. O colapso dessa civilização outrora tão grandiosa, os mundos que já terminaram desde a chegada do invasor europeu são aspectos de um processo de expansão do que entendemos hoje como a civilização global capitalista. Mas essa ideia do colapso e da extinção se aplica também ao jaguar como espécie, isto é, às muitas populações regionais da Panthera onca que foram exterminadas e entraram em processo de extinção com a colonização das Américas.

A ligação entre o jaguar e o ciclo das águas, manifesta nas festas mexicanas, é um dos aspectos do simbolismo dos felinos entre os povos nativos do continente, e os elementos que sustentam essa tese são encontrados em diferentes culturas. Para os povos Tukano, por exemplo, que vivem na região amazônica do Alto Rio Negro, entre Brasil e Colômbia, o rugido do jaguar é associado ao trovão e ao relâmpago, forças fertilizadoras (Saunders, 1998). Entre os Ticuna, povo que vive na fronteira entre Brasil e Peru, na Amazônia, a ascensão e o declínio da constelação da Onça marca a chegada e o fim da estação das chuvas. As constelações ticuna associam-se com mitos referentes a diferentes animais. No mito, a fera celeste relacionada com o clã onça matou a mãe grávida dos filhos de Lua, os quais, por sua vez, vingaram a morte da mãe matando a fera e lançando ao céu sua perna, cuja forma identifica a constelação (Faulhaber, 2004).

Na América indígena, além disso, o termo jaguar é também uma qualidade, significando "feroz" (Vander Velden, 2009). Animais, plantas, objetos e pessoas podem ter seu lado jaguar. Numa história muito famosa, Cunhambebe, o grande chefe indígena, oferece um pedaço de carne humana moqueada a Hans Staden, o prisioneiro alemão dos Tupinambá, que recusa dizendo: "Se nem mesmo um animal irracional come seu semelhante, um homem deveria comer outro homem?". Ao que Cunhambebe responde: "Eu sou um jaguar", e continua comendo tranquilamente (Staden, 2015, p. 106). As condições de predador e presa, matador e vítima, são reversíveis nos rituais de canibalismo dos Tupinambá.

Para os Araweté, um grupo de descendência tupi-guarani que vive à margem do igarapé Ipixuna, afluente do rio Xingu, o espírito de um jaguar recebe o mesmo tratamento e destino do espírito do inimigo cativo - a vítima ritual do canibalismo. O jaguar é um inimigo (awi) ao qual se confere um status semelhante ao de um inimigo humano de outra etnia. É executado com honras de um prisioneiro de guerra, e sua morte dá ao guerreiro o direito de um novo nome. O canto que celebra a morte de um jaguar é também semelhante ao canto que celebra a morte de um inimigo: enunciado pela "futura vítima da onça", obedece ao mesmo formato do canto de morte de uma vítima humana no ritual canibal tupi. O espírito de inimigo de um jaguar, no entanto, não é "matável" xamanisticamente como o do inimigo humano. Permanece com o matador, como uma espécie de animal doméstico ou cão de caça, dormindo embaixo da rede de seu dono e mostrando-lhe em sonhos onde está a caça (Viveiros de Castro, 1986). As relações ligadas a esse complexo predatório da vingança tupi são reversíveis e recíprocas: aquilo que se come comerá um dia, e quem come será comido um dia em retaliação.

As relações indígenas com o jaguar são complexas e variadas, e não pretendo de maneira nenhuma tentar neste artigo uma síntese geral. Chamo a atenção, porém, para um último exemplo, que remete diretamente à relação entre vida e morte. Entre os Bororo, do Brasil central, a caçada de uma onça é tradicionalmente uma etapa crucial para equilibrar as forças que regem o cosmos depois da morte de uma pessoa. Sylvia Caiuby Novaes (2006) descreve o ritual funerário bororo regido por dois princípios complementares: bope e aroe, ligados ao equilíbrio do cosmos. Na experiência da vida humana dos Bororo, esses princípios precisam estar em harmonia, e depois da morte eles precisam ser separados. O bope é um espírito comedor de carne crua, sangue e carniça. É também descrito como a "entidade responsável pelas grandes transformações naturais (nascimento, puberdade, morte)" (p. 311), vinculada aos "processos de mudança física, exemplificados pelo crescimento de vegetais e a matança de animais" (p. 313). Os bope "são 'senhores dos animais' associados a rituais de caça e de benzimento do bari (o xamã bororo)" (p. 293). São responsáveis pelo aspecto perecível das coisas. Sua contraparte é o aroe, que está implicado na "imutabilidade da realidade física: a regularidade da noite e do dia, as estações, as espécies naturais" (p. 313).

No ritual fúnebre bororo, o apodrecimento da carne do morto, relacionado aos espíritos bope, marca o início de um longo processo, que envolve o enterro dos ossos ornamentados e arranjados num cesto e que culmina na refiguração enquanto espírito aroe, que dança na aldeia: "A dança do aroe maiwu é a expressão ritual da mais importante transformação desencadeada pela morte: a presença (do finado) que se transforma em representação refigurada" (p. 303).

É aqui que o jaguar entra na história. O luto de um índio bororo só termina quando o morto é devidamente vingado pelo seu representante, que assume a forma aroe. Usando arco e flechas do morto, e com as tranças do cabelo dos enlutados amarradas em seu punho, o aroe maiwu deverá caçar um grande felino, cujos dentes, garras e couro serão entregues aos parentes do finado. Quando o animal morre, seu sopro vital se aloja numa pequena cabaça mortuária, que a partir de então vai ser soprada pelo caçador em todos os funerais seguintes. Essa relação peculiar com a memória dos que morrem evoca sempre um aspecto específico da pessoa, que é o que deve permanecer entre os vivos. Entre os Bororo, assim como em grande parte da América indígena, não se cultuam os ancestrais. A esse respeito, Novaes diz que "os pertences do morto serão ritualmente queimados pelo fogo ou destruídos - como as peças de cerâmica ou outros objetos que o fogo não destrói" (p. 292), e nem mesmo o nome de alguém pode mais ser pronunciado após sua morte.

O exemplo bororo pode ser remetido ao célebre contraste entre o rito e o jogo proposto por Lévi-Strauss num de seus livros mais conhecidos, O pensamento selvagem (1962/1997), considerando como exemplo os Fox da América do Norte, entre os quais os rituais funerários se ligavam a jogos de destreza ou azar, de natureza esportiva. Nesses jogos, contudo, o time que representava o clã do morto sempre ganhava: "Prescrevendo sempre o triunfo da equipe dos mortos, dá-se a estes, portanto, a ilusão de que são os verdadeiros vivos e de que seus adversários estão mortos, já que eles os matam [figurativamente, na medida em que os vencem]" (p. 48). O jogo, tal como o concebemos numa perspectiva ocidental, partiria de um equilíbrio inicial para produzir uma assimetria - vencedores e vencidos -, enquanto o rito, como no caso dos Fox, partiria de uma assimetria inicial - vivos e mortos - para produzir um equilíbrio apenas no final, mantendo o sistema em equilíbrio. O resultado todos já sabem de saída, mas ele precisa ser vivenciado para manter as coisas em seus devidos lugares.

Em cosmologias indígenas como essas, o morto, seja ele parente ou não, é a antítese do vivo, e nunca seu semelhante, no sentido que damos ao termo antepassado, por exemplo. É preciso então negociar com os mortos - e com os animais - para tornar a vida possível, e o finado se converte numa figura de inimigo, alguém ou algo que deve ser sempre mantido a distância. Nesse sentido, o sentimento de saudade e tristeza trazido pela lembrança de um parente pode ser entendido como uma captura do vivo pelo morto.

Para os Bororo, como vimos, a antítese entre aroe, ligado ao caráter permanente da existência, e bope, ligado à transformação e ao caráter perecível, produz uma reciprocidade necessária: morte e vida, vida animal e vida humana estão envolvidas num jogo de soma zero, cujo equilíbrio precisa ser constantemente reafirmado. No caso, a morte de um humano engendra ritualmente a morte de um jaguar, o qual preenche com seu sopro a cabacinha que manterá o aspecto aroe do morto. O ritual preserva a dimensão durável da alma humana, separando-a de seu aspecto perecível e ameaçador, sem o qual, por outro lado, não há renovação.

 

2. Colonialismo e extinção

 

 

Chingado (1998), uma pintura do artista norte-americano Walton Ford, joga com a linguagem da ilustração naturalista para produzir uma estranha tauromaquia - um abraço de morte entre um touro espanhol e um jaguar mexicano -, representando o surgimento do México. Na imagem, a relação natural de predação se sobrepõe a uma relação antinatural de reprodução, o que lembra a ideia das bodas contra a natureza com a qual Deleuze e Guattari (1980/1997) definem o que seria o devir animal. Ao atacar o touro para comer, a onça é ao mesmo tempo comida por ele; ela é inseminada pela máquina produtiva humana, a máquina capitalista trazida pelo colonizador espanhol na conquista da América. As ruínas em chamas ao fundo da imagem (um mundo em desaparecimento) e a marca a ferro que o touro traz na pele remetem ao mundo pré-colombiano, estabelecendo um enredamento estranho de narrativas históricas. A marca de propriedade, nesse caso, parece referir-se não apenas ao touro, mas ao organismo simbionte onça-gado como um todo, entendido como um dispositivo relacional que traz em si a marca da colonização. A pintura ressoa relações ambíguas e tensas entre natureza e cultura, moderno e tradicional, violência e desenvolvimento, domesticação e selvageria, extinção e reprodução.

A grande narrativa da história ocidental é uma narrativa de conquista triunfante. De um lado, conquista da natureza - domesticada, tornada recurso, matéria-prima; de outro lado, conquista de outros povos ou culturas - convertidos, subordinados, escravizados ou exterminados. Um dos elementos da conversão dos Bororo pelos padres salesianos, por exemplo, era tirá-los de suas aldeias circulares, divididas em duas metades, e levá-los para viver em ruas, com linhas retas que desarticulavam totalmente o modo como se entendiam no mundo (Lévi-Strauss, 1955/1998).

O processo de extinção das culturas indígenas e o das espécies naturais são simultâneos. É bastante conhecido que um dos efeitos da ação humana no mundo contemporâneo é o que se vem chamando de a sexta grande extinção (Kolbert, 2014). O desaparecimento de espécies naturais provocado pela ação humana é uma das facetas mais conhecidas do Antropoceno, processo que se dá numa escala e num ritmo que só encontram precedentes em épocas remotas da história de Gaia, o sistema biogeofísico que caracteriza a vida da Terra.

No que se refere a processos de extinção, o caso dos jaguares é similar ao de outros grandes carnívoros que habitam a parte do planeta ainda não totalmente ocupada pela indústria ou pela agropecuária. Nas áreas onde coabitam com humanos, seja por serem vistos como ameaça, seja por se alimentarem de rebanhos domésticos, esses animais têm sido sistematicamente tratados como pragas e intensamente caçados. Entre espécies e subespécies de carnívoros extintas, apenas no século XX, encontram-se o lobo japonês (em 1905), o leão-do-atlas (em 1922), o tigre-da-tasmânia (em 1934) - um marsupial carnívoro -, o tigre-de-bali (em 1937) e o tigre-de-java (em 1979). Quanto aos aspectos visíveis desse processo, de um lado estão os animais alijados de seu ambiente, e de outro o ambiente esvaziado de seus animais - de um lado, os últimos tigres-da-tasmânia, prisioneiros em zoológicos; de outro, o vazio deixado por eles nas florestas tropicais tasmanianas.

O jaguar, que sobrevive nas Américas do Sul e Central, é classificado como uma espécie quase ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza, e vulnerável pela lista vermelha do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente. A espécie, no entanto, desapareceu de grande parte dos biomas brasileiros. A situação mais grave talvez seja a da Mata Atlântica, onde está criticamente ameaçada; cálculos recentes estimam uma população total de algo em torno de 250 indivíduos adultos.

As maiores populações no país vivem atualmente na Amazônia e no Pantanal, locais onde há redes complexas de relações ecológicas e econômicas envolvendo a conservação da natureza e a expansão das atividades agropecuárias (Cavalcanti, Marchini, Zimmermann, Gese & Macdonald, 2010). A população de bovinos no Brasil, vale lembrar, está entre as maiores do mundo, sendo de fato maior que a população humana no país - em 2016, de acordo com o IBGE, estava na casa dos 215 milhões de cabeças. Não se sabe ao certo o total de onças no Brasil, mas estima-se que a população efetiva esteja próxima dos 10 mil indivíduos, com tendência de queda devido às pressões antrópicas (Morato, Beisiegeli, Ramalho, Campos & Boulhosa, 2013). Num cálculo superficial, para cada onça habitando o país haveria cerca de 21,5 mil bois.

Não pretendo entrar nos detalhes dessa questão, apenas chamar a atenção para a escala do fenômeno. Estamos falando em grandes conglomerados da indústria da carne, redes de supermercados e padrões de consumo, o que nos leva à questão de quais são os futuros possíveis tanto para as espécies ameaçadas quanto para os sistemas alimentares que sustentam as grandes cidades em que vivemos. Não podemos esquecer que nossa vida, nossas cidades e nosso ambiente são partes interdependentes de processos ecológicos. A existência das florestas, da água doce e do ar é condição de existência comum a todos os viventes.

Os grandes predadores carnívoros são designados no âmbito da ecologia como espécies-chave, animais que desempenham um papel regulatório no ecossistema, ou então como espécies-guarda-chuva, animais cuja preservação abarca a de muitas outras espécies abaixo deles na cadeia trófica. Um bom exemplo da complexidade das relações políticas, econômicas e ecológicas compreendidas na conservação desse tipo de animal é um caso envolvendo um animal ícone do imaginário ocidental.

Em 1995, depois de longas batalhas e inúmeras controvérsias, o lobo, desaparecido há décadas das montanhas rochosas, foi reintroduzido com sucesso no Parque Nacional de Yellowstone, em Idaho, nos eua (Fischer, 1995). Programas governamentais de controle de predadores haviam eliminado os lobos do próprio parque, com os últimos remanescentes tendo sido abatidos em 1926. O impacto ecológico dessa reintrodução, documentado por pesquisadores e ambientalistas (Abrantes, 2017), foi impressionante, com efeitos em cascata que repercutiram nos diversos ecossistemas locais. A predação, pelos lobos, de alces e outros animais herbívoros não só exerceu um controle sobre a população dessas espécies, mas modificou seu comportamento: elas passaram a evitar áreas mais suscetíveis aos ataques do predador. Isso propiciou a recuperação e o crescimento de uma série de plantas, criando novas áreas florestadas em locais onde havia apenas vegetação rasteira. Os lobos também reduziram a população de coiotes do parque. Tudo isso levou ao aumento do número de pequenos roedores e pássaros, além de gerar nichos ecológicos para castores e outros animais que habitam os rios. Matas ciliares na beira dos corpos d'água, bem como castores construindo diques e represas, produziram alterações significativas na paisagem e no curso dos rios.

Essa narrativa da reintrodução dos lobos é, no entanto, evidentemente parcial, restrita apenas ao mundo não humano. Ela deixa de lado toda a controvérsia que ficou conhecida como guerra dos lobos - wolf wars, título do ótimo livro de Hans Fischer (1995). Capturados no Canadá e soltos nas montanhas rochosas, os lobos não ficaram dentro das fronteiras do parque. Assim, além dos efeitos ambientais, sua presença causou efeitos na relação entre ambientalistas, criadores e caçadores esportivos no estado de Idaho. Nos anos 2000, o Departamento de Vida Selvagem Estadual passou a autorizar o abate de certo número de animais por ano, e o conflito entre caçadores e ambientalistas se acirrou, com o surgimento de uma série de campanhas pró e contra a presença dos lobos. Acusações xenofóbicas em relação ao fato de os lobos serem canadenses, adesivos incentivando a eliminação sumária, denúncias de crueldade e campanhas de desarmamento voluntário de armadilhas de caça são alguns dos aspectos dessa controvérsia (Fischer, 1995).

Contudo, se ampliarmos a paisagem, veremos que também há outras questões em jogo nesse caso. O estado de Idaho tem como um dos pilares de sua economia uma atividade de alto risco, que está modificando as matrizes energéticas norte-americanas: a técnica de fraturamento hidráulico (fracturing) para a obtenção do gás de xisto. Essa atividade consiste na infiltração de toneladas de água misturada a produtos químicos e areia a fim de produzir fraturas em rochas profundas ("Fraturamento hidráulico", s.d.). Toda a água utilizada no processo subterrâneo volta depois à superfície poluída por metais pesados, aditivos químicos e hidrocarbonetos. A contaminação de grandes territórios soma-se ao risco de que os gases acumulados nas rochas atinjam aquíferos subterrâneos, sendo um bom exemplo da escala das alterações ambientais colocadas em curso no Antropoceno.

Não é possível recortar uma espécie de um ecossistema. Quando observamos o emaranhado de relações em que os lobos estão inseridos, todo o estado de Idaho vem junto. As montanhas rochosas não existem num plano isolado, separado daquele logo abaixo, em que as indústrias de extração do gás de xisto se instalam.

Lobos e onças do novo milênio estão bem longe da imagem da natureza intocada à qual esses animais foram historicamente associados. Monitorados por sistemas de rádio e gps, muitos deles estão envolvidos em agenciamentos ciborgues e vagam por paisagens antropogênicas. Quando olhamos para o caso do jaguar e para as ameaças enfrentadas pela espécie, é impossível não levar em consideração a expansão do agronegócio, o desmatamento, os megaprojetos de implantação de hidrelétricas e mineradoras, os conflitos de terra e a questão indígena. Os futuros possíveis dessas espécies, além disso, articulam-se com os nossos em processos que não fazem sentido nos termos da política convencional, apoiada na separação entre natureza e cultura; processos que requerem o apelo a uma cosmopolítica, conforme proposta por Isabelle Stengers (2005).

Juliana Fausto, refletindo sobre a proposição de Stengers, aponta a ideia de uma etoecologia, que afirma "a inseparabilidade - mas não a dependência funcional - entre ethos, o modo de habitar, e oikos, o lugar da habitação" (2017, p. 64). A significação etológica, ligada aos afetos ou capacidades de uma espécie, e não à sua tipificação ou definição morfológica, remete não só à dimensão vivida da ecologia, mas também a uma ética, aos modos diferenciais dos ambientes e à possibilidade de convivência entre formas de habitar.

O ambiente do jaguar inclui capivaras, cervos e jacarés, seres que habitam rios e florestas. Da mesma forma, inclui cavalos, gado e vaqueiros, rodovias e construções humanas de todo tipo. O papel ecológico, o lugar que a espécie ocupa na cadeia trófica - ligado a um tipo de controle biológico das espécies das quais se alimenta -, sobrepõe-se assim a outro agenciamento, acionado pela predação do gado. Por um lado, o gado faz parte do ambiente da onça como uma presa "natural". É a presa mais disponível, em termos de biomassa, para um predador que vai explorar as potencialidades de seu ambiente (Cavalcanti et al., 2010). Mas a ação que exerce, nesse caso, inscreve-se em outro código: deixa de ser lida como um controle biológico sobre uma espécie e passa a ser lida como um atentado à propriedade.

Além disso, o agenciamento biológico do gado contra a natureza, no sentido de sua multiplicação artificial através da ação humana, é algo que leva a uma invasão biológica potencialmente destrutiva em termos locais - criação de pastagens, desmatamento - e globais - emissão de gases de efeito estufa, contaminação das águas, propagação de doenças. O Antropoceno poderia ser entendido também como um tauroceno, levando-se em consideração a escala do impacto de processos atmosféricos e geoquímicos ligados à ação conjunta daquela que é a espécie de animal terrestre mais abundante do planeta, em termos de biomassa total ("Too much domesticated biomass", 2014). No Brasil, a palavra faria mais sentido ainda: basta pensar na substituição em curso de todos os biomas nativos por pastagens ou campos de grãos, como soja, que também alimentam os rebanhos bovinos.

 

3. Um exercício final de mitologia comparada

As configurações de vida e morte que articulam humanos e jaguares em cosmologias indígenas, como vimos, compreendem associações míticas entre o ciclo das águas, a fertilidade dos campos, os ciclos da vida e os processos de renovação e transformação envolvidos em sua dinâmica, uma mitoprática que evoca temas animistas e devires animais. Por sua vez, as narrativas ecológicas mencionadas podem estar subordinadas a uma ontologia naturalista e, em larga medida, a uma razão utilitarista, mas isso não significa que não tenham também aspectos míticos, principalmente se lembrarmos o conjunto de significados e afetos que informam e conferem sentido a suas ações e ideias. Em lugar de uma eco-logia, penso em uma eco-mítica, invertendo talvez a oposição entre um pensamento selvagem, ligado ao sensível e ao mito, e um pensamento civilizado, ligado ao inteligível e à ciência.

Há, como dito, uma relação entre a conservação de jaguares e lobos e a integridade e a diversidade dos ecossistemas que esses animais habitam. São animais chamados de espécies-bandeira, por seu carisma entre o público, ou de espécies-guarda-chuva, por conta do papel que desempenham como predadores situados no topo da cadeia alimentar. Ao aproximar ideias indígenas e modernas de vida e morte, como tentei neste artigo, penso que não estaríamos procurando um passado perdido de relação harmoniosa com a natureza - no sentido de um primitivismo, uma volta -, mas antes imaginando futuros possíveis.

Numa imagem que tem sido frequentemente evocada para caracterizar a crise ambiental contemporânea, o filósofo Günther Anders (1962/2013), discorrendo nos anos 1960 sobre a era atômica, descrevia a experiência de fim do mundo trazida pela existência das armas atômicas em termos de utopias invertidas. De acordo com ele, enquanto as utopias comuns eram incapazes de produzir de fato o que eram capazes de imaginar, nós, filhos da era atômica, seríamos incapazes de imaginar o que de fato estamos produzindo.

Hoje, a narrativa triunfante da sociedade planetária emancipada da natureza se vê passando do plano da crise para o plano da catástrofe, com processos como a aceleração sem precedentes do aquecimento, a acidificação dos oceanos e a extinção de formas de vida possivelmente já tendo se tornado irreversíveis. A natureza como algo estável, exterior e transcendente, disponível como recurso para os fins humanos (que seja a construção de uma sociedade justa e igualitária, para os bem-intencionados), essa natureza parece cada vez mais anacrônica, uma ideia ligada a um projeto falido de interação ecológica.

A teoria de Gaia, desenvolvida por James Lovelock a partir da década de 1960, fornece uma imagem alternativa dos processos da vida no planeta Terra. Gaia é o sistema planetário dotado de vida, um sistema de sistemas, com interações bioquímicas e geofísicas articulando-se em redes cada vez mais complexas, as quais sustentam o equilíbrio químico da atmosfera e a existência do fenômeno da vida (Lovelock, 2010). Esse sistema vivo, que se retroalimenta, é algo que traz a nós, os "humanos", enquanto seres dependentes de um equilíbrio sutil ligado aos ciclos do oxigênio e do nitrogênio na atmosfera, de volta para uma "natureza" da qual de fato, ao contrário do que prega o pensamento modernizador, nunca nos emancipamos.

Em termos das relações tecidas entre predadores, água e fertilidade, pode mesmo ser que o imaginário ecológico esteja mais próximo do simbolismo indígena do que poderiamos cogitar a princípio. A natureza concebida como uma realidade exterior regida por ciclos estáveis, transformada pelo pensamento moderno em recurso para a empresa civilizatória, essa natureza domesticada pertenceria ao Holoceno, época geológica que recentemente deixamos para trás. A nossa época, o Antropoceno, apresentaria uma nova configuração da vida e da morte, a qual pode ser imaginada a partir de Gaia, mas não mais da natureza.

Todo conhecimento tem uma dimensão significativa ou simbólica, assim como uma dimensão ritualística, pragmática. Se Gaia tem mil nomes,1 o nome do deus-jaguar asteca do ciclo das águas, Tepecyolotli, evocado no início deste texto, seria um deles. Penso uma última vez na associação semântica indígena entre o nome do animal e o aspecto terrível, feroz, destrutivo dos seres e das coisas - o processo em curso de extinção dos jaguares engendrando, nesse caso, um clima-jaguar, cuja ferocidade assombra a todos nós.

 

Referências

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Correspondência:
Felipe Süssekind
Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea
22451-000 Rio de Janeiro, RJ
felipesussekind@gmail.com

Recebido em 16.03.2018
Aceito em 23.03.2018

 

 

1 A referência aqui é ao primeiro evento no qual uma versão deste texto foi apresentada, o seminário Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, realizado em 2014 no Rio de Janeiro.

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