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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Tecendo fronteiras: o dentro e o fora em uma experiência de acompanhamento terapêutico grupal

 

Weaving borders: the inside and the outside in an experience of group therapeutic track

 

Tejiendo fronteras: dentro y fuera en una experiencia de seguimiento terapéutico en grupo

 

En tissant des frontières: le dedans et le dehors, dans une expérience de suivi thérapeutique de groupe

 

 

Marcus Vinicius Marques BarbieroI; Pablo CastanhoII

IEspecialista em comunicação popular e comunitária pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bacharel em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Psicólogo atuante no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) do Jardim Brasil, vinculado à Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (APDM). Acompanhante terapêutico na instituição O Clube. Membro do grupo de pesquisa Clínica de Grupos e Instituições na Abordagem Psicanalítica (Cligiap), USP/CNPq
IIProfessor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Membro da International Association of Group Psychotherapy and Group Processes (IAGP), do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (Nesme) e da rede interuniversitária Grupos e Vínculos Intersubjetivos. Líder do grupo de pesquisa Clínica de Grupos e Instituições na Abordagem Psicanalítica (Cligiap), USP/CNPq

Correspondência

 

 


RESUMO

A reforma psiquiátrica no Brasil mobilizou processos de desinstitucionalização que expandiram a experiência de cuidado de pessoas em intenso sofrimento psíquico. A prática clínica do acompanhamento terapêutico surge nesse contexto, atuando na expansão do setting analítico, ampliando espaços de escuta e intervenção. Neste artigo, por meio de vinhetas clínicas, discutiremos uma experiência de acompanhamento terapêutico em grupo, vivenciada num dispositivo chamado Desbravando São Paulo, cuja tarefa é a circulação pelos espaços públicos da cidade de São Paulo. O objetivo do artigo é refletir sobre os impactos dessa experiência no envoltório psíquico grupal e individual dos participantes. Observaram-se a intensificação de ansiedades relativas à fragilidade das fronteiras psíquicas e a possibilidade de manejos que as atendam. Conclui-se que o acompanhamento terapêutico em grupo pode ser utilizado como um artifício clínico para trabalhar sobre o envoltório psíquico grupal, e a partir dele sobre o envoltório psíquico individual.

Palavras-chave: acompanhamento terapêutico, dispositivo, psicoterapia de grupo, psicanálise de grupo, reforma psiquiátrica


ABSTRACT

The Psychiatric Reform in Brazil has mobilized deinstitutionalizing processes which have expanded the care experience of people in intense mental suffering. The clinical practice of therapeutic track arises from this context. It expands the psychoanalytic setting and it increases spaces for listening and intervention. In this paper, we shall discuss, through clinical vignettes, an experience of group therapeutic track. The experience takes place in an apparatus called "Exploring São Paulo". The task consists in circulating AT public places of the city of São Paulo. The purpose of this paper is to reflect on its impacts in the psychic sheaths of both the group and the individuals who take part in this experience. We observe the intensification of anxieties which are related to the fragility of psychic borders, and the possible ways of taking care of them. We conclude that group therapeutic track may be used as a clinical tool in order to work, first, on the group psychic sheath and, then, on individual psychic sheaths.

Keywords: therapeutic track, apparatus, group psychotherapy, group psychoanalysis, psychiatric reform


RESUMEN

La Reforma Psiquiátrica en Brasil movilizó procesos de desinstitucionalización que difundieron la experiencia de cuidado con personas en sufrimiento psíquico intenso. La práctica clínica del seguimiento terapéutico surgió en este contexto, actuando en la expansión del setting analítico, ampliando espacios de escucha e intervención. En este artículo, a través de casos clínicos, discutiremos una experiencia de seguimiento terapéutico en grupo, vivenciada en un dispositivo llamado Desbravando São Paulo (Explorando São Paulo), cuya tarea es circular por los espacios públicos de la ciudad de São Paulo. El objetivo de este artículo es la reflexión sobre los impactos de esta experiencia en la envoltura psíquica grupal e individual de los pacientes. Se observó que se intensifican las ansiedades relacionadas con la fragilidad de las fronteras psíquicas y la posibilidad de gestión que puedan cuidarlas. Se concluye que el seguimiento terapéutico en grupo puede utilizarse como un artificio clínico para trabajar sobre la envoltura psíquica grupal, y, a partir de ahí, sobre las envolturas psíquicas individuales.

Palabras clave: seguimiento terapéutico, dispositivo, psicoanálisis de grupo, psicoterapia de grupo, reforma psiquiátrica


RÉSUMÉ

La réforme du système psychiatrique au Brésil a mobilisée des processus de désinstitutionalisation qui ont élargi l'expérience de soins des personnes dans une intense souffrance psychique. La pratique clinique du suivi thérapeutique surgit dans ce contexte, en agissant dans l'expansion du setting analytique, et en élargissant les espaces d'écoute et d'intervention. Dans cette article, au moyen de vignettes cliniques, nous discuterons une expérience de suivi thérapeutique en groupe, vécu dans un dispositif appelé Desbravando (Déblayant) São Paulo, dont la tâche est la circulation par les espaces publiques de la ville de São Paulo. L'objectif de cet article est de réfléchir sur les impacts de cette expérience dans l'enveloppe psychique du groupe et celui individuel des participants. On a observé l'intensification d'anxiétés concernant la fragilité des frontières psychiques et la possibilité de maniements qui puissent les soigner. On conclut que le suivi thérapeutique en groupe peut être utilisé comme un artifice clinique pour travailler l'enveloppe groupale et, à partir de celle-ci, les enveloppes psychiques individuels.

Mots-clés: suivi thérapeutique, dispositif, psychanalyse de groupe, psychothérapie de groupe, réforme du système psychiatrique


 

 

Este artigo se propõe a explorar os impactos de um dispositivo de acompanhamento terapêutico grupal sobre a constituição e o funcionamento do envoltorio psíquico do grupo. Para isso, faremos um breve levantamento sobre a prática de acompanhamento terapêutico e utilizaremos o conceito de envoltorio psíquico grupal de Didier Anzieu, com o objetivo de discutir experiências vivenciadas por um grupo, que serão apresentadas através de vinhetas.

Os recortes clínicos problematizados provêm da experiência de um dos autores em um dispositivo de acompanhamento terapêutico grupal chamado Desbravando São Paulo, do qual participa como acompanhante terapêutico desde agosto de 2013. Esse dispositivo é vinculado à instituição O Clube, um espaço clínico e de convivência estruturado em atividades diárias, que tem como tarefa primária o acompanhamento terapêutico de pessoas em sofrimento psíquico.

De maneira análoga à trajetória do grupo que será discutida, este artigo também se apresenta como uma possibilidade de organização interna das vivências do profissional no acompanhamento terapêutico em grupo. As reflexões de Anzieu (1989) sobre o eu-pele, segundo as quais a existência de camadas paraexcitatórias auxilia na constituição de um eu capaz de sustentar as experiências na intersubjetividade, o qual adquire a forma de um envelope psíquico, contribuíram para a compreensão do grupo e do artigo como continentes às experiências de transbordamento.

 

Reforma psiquiátrica e acompanhamento terapêutico

A reforma psiquiátrica no Brasil desencadeou uma série de experiências clínicas e dispositivos de cuidado para pacientes em intenso sofrimento psíquico, a qual caminha em concordância com os princípios ético-políticos desse movimento, iniciado no final da década de 1970.

Em face do desafio nas práticas de cuidado substitutivas ao atendimento manicomial e hospitalocêntrico, os profissionais vinculados ao trabalho no campo da saúde mental vêm construindo e desconstruindo formas de manejo, a fim de fomentar, para além do setting tradicional dentro dos consultórios, uma clínica ampliada, sustentada por uma configuração multidisciplinar, que promova o entrelaçar no tecido sociocultural, na construção de uma alteridade possível diante de constituições subjetivas heterogêneas. O acompanhamento terapêutico (AT) se apresenta como uma dessas possibilidades de intervenção e manejo.

Nesse contexto, o acompanhamento terapêutico torna-se uma função emblemática da mistura e contágio das disciplinas psi com o espaço e o tempo da cidade. E seu exercício - que se dá entre lugares, entre o serviço e a rua, entre o quarto e a sala, fora de lugar, a céu aberto - presentifica uma exigência que a reforma psiquiátrica vem colocar aos seus profissionais, seja qual for o dispositivo em causa: o fato de que uma clínica a serviço dos processos de desinstitucionalização coloca em jogo a desinstitucionalização da clínica mesma. (Palombini, 2006, p. 117)

Segundo uma análise feita por Pitiá e Santos (2006) em textos publicados entre 1977 e 2001, o AT corresponde a uma prática realizada em diferentes contextos de intervenção, admitindo uma diversidade de referenciais teóricos. Nas produções revisadas, as autoras encontraram uma preocupação com a formalização e o delineamento da clínica do at.

Reis Neto, Teixeira Pinto e Oliveira (2011) afirmam que a clínica do AT surge a partir da demanda de pacientes com determinadas condições psíquicas, para os quais as formas tradicionais de tratamento, como hospitais, clínicas e consultórios, apresentam limitações. Observam que uma característica fundamental dessa forma de cuidado é o movimento no espaço público e domiciliar, acompanhado pela escuta clínica, com base em diferentes matrizes teóricas.

De acordo com esses autores, a constante problematização sobre as delimitações do campo de atuação do AT se relaciona a dois fatores: às suas origens, em que se desejava que o acompanhante terapêutico, então inserido em contextos de comunidades terapêuticas, não tivesse uma formação específica, motivo pelo qual os cuidadores envolvidos nessa prática eram chamados de amigos qualificados; e à própria natureza instituinte da prática do AT, no âmbito do processo de desinstitucionalização da loucura e das formas de cuidado manicomiais, em que determinados saberes técnicos se sobrepunham ao conhecimento do sujeito, dificultando o reconhecimento das singularidades. A proposta do at, porém, não é negar os interlocutores teóricos, que dão consistência à prática clínica; é antes evidenciar o tensionamento entre o saber e o não saber, valorizando a abertura para um encontro sensível a partir de experiências subjetivas distintas.

Num dos encontros realizados com o grupo de AT apresentado neste artigo, os acompanhantes propuseram uma conversa sobre as características do Desbravando São Paulo, sobre como os participantes vivenciavam a experiência e sobre as diferenças em relação a outras atividades d'O Clube. Entre os pontos mencionados, como a circulação pela cidade e a ocupação dos espaços públicos gratuitos, surgiu o significante imprevisível. Alguns integrantes trouxeram a experiência de vivenciar o imprevisível nas andanças pela cidade. Acreditamos ser essa uma característica do AT experimentada nas saídas em grupo, nas quais se atualiza uma forma de não saber, ou uma vivência, para os cuidadores, de um espaço clínico não diretivo, como a rua, em que a imprevisibilidade emerge no encontro com a cidade.

 

Do envoltório corporal às envolturas do eu

Conforme apresentamos na parte introdutória deste artigo, o AT em grupo permitiu uma reflexão sobre a função dos acompanhantes como facilitadores do contato dos jovens com a rua. Para além de definições psicopatológicas ou estruturais, é possível dizer que os participantes do grupo são marcados pelo isolamento. Com dificuldade de ocupar os lugares socialmente instituídos para além dos grupos familiares, a vivência da circulação pela cidade torna-se muitas vezes uma experiência de contato com a alteridade. As marcas de uma rua ameaçadora estão presentes na maioria dos participantes, como no caso de Felipe, que disse um dia que gostava muito do Desbravando porque era o único momento em que podia sair na rua sossegado.

É possível relacionar a função protetora vivenciada nesse dispositivo com as concepções de Anzieu sobre a constituição do aparelho psíquico individual. Anzieu conceitua o eu-pele apoiado nas considerações freudianas sobre a problemática das funções de barreira, como vemos no fragmento a seguir:

A rede malhada das barreiras de contato constitui assim o que eu proponho chamar uma superfície de inscrição, diferente da tela para-quantidades à qual ela é acoplada para sua proteção.

Em resumo, as barreiras de contato têm uma função de separação tripla do inconsciente e do consciente, da memória e da percepção, da quantidade e da qualidade. Sua topografia é de um envelope com duas faces, assimétrico (mas a noção de envelope não é ainda afirmada por Freud), uma face voltada para as excitações do mundo exterior, transmitidas pelos neurônios ômega, e que está protegida por uma tela para-quantidades; uma face interna voltada para a periferia interna do corpo. As excitações endógenas só podem ser reconhecidas se ligadas ao caso precedente, isto é, projetadas no mundo exterior, associadas a representações visuais, auditivas, táteis etc. (cf. os "restos diurnos" do sonho), e enfim registradas pela rede das barreiras de contato. Decorre daí que as pulsões só podem ser identificadas através de seus representantes psíquicos. (Anzieu, 1989, p. 91)

As barreiras de contato configuram fronteiras localizadas tanto na vida intrapsíquica, atuando na separação das diversas instâncias do aparelho psíquico individual, promovendo ligação e desligamento das pulsões, como funções intermediárias que possibilitam os processos de simbolização, quanto no contato com as excitações do mundo exterior, como um agente transformador de forças. Dessa forma, as barreiras de contato são formadas num paradoxo, "que fecha a passagem por estar em contato e que, por esse mesmo motivo, permite em parte a passagem" (Anzieu, 1989 p. 84).

Considerando a fragilidade na constituição dessas fronteiras nos psicóticos, Anzieu discute as formas de tratamento para esses sujeitos:

Tratar um psicótico, segundo Federn, é ajudá-lo a não desperdiçar sua energia mental, e sim conservá-la. É não lhe retirar seus recalques, mas criá-los. É não fazer uma anamnese, pois a lembrança de episódios psicóticos anteriores pode ocasionar uma recaída. É revigorar a fronteira enfraquecida do eu entre a realidade psíquica e a realidade exterior. É corrigir as falsas realidades e levar o paciente a utilizar corretamente a experiência de realidade. É levá-lo a se dar conta do estatuto triplo de seu corpo, como parte do eu, como parte do mundo exterior e como fronteira entre o eu e o mundo. (Anzieu, 1989, p. 108)

Atravessando a fronteira da intervenção interpretativa, a clínica da psicose seria orientada para uma separação da dupla face do eu-pele, permitindo a constituição do envelope psíquico pela diferenciação entre as estimulações externas e a excitação interna (Anzieu, 1989).

 

Fronteiras do grupo: o envoltório psíquico grupal

Em sua obra O grupo e o inconsciente (1993), Anzieu apresenta cinco organizadores psíquicos inconscientes do grupo: o fantasma individual, a imago, os fantasmas originários, o complexo de Édipo e o envoltório psíquico grupal. Esses organizadores estariam presentes num grupo em que acontece a circulação fantasmática entre seus integrantes.

Ao quinto organizador, o envelope psíquico do aparelho grupal, é atribuída uma função necessária para a constituição do grupo: a de proteger, conter, delimitar as trocas no espaço interno e também com o espaço externo. Essa função é a mesma da barreira na constituição do eu-pele. Anzieu postula ainda que o envoltório psíquico grupal se apoia sobre o eu-pele, de modo que, ao operar sobre um, indiretamente tocamos o outro. Replicando no nível grupal a função do eu-pele, o envoltório psíquico grupal forma uma membrana com um lado voltado para o interior da realidade do grupo e outro para o exterior .

O quinto organizador instaura uma outra diferença, entre o exterior e o interior do grupo. Para separar o exterior do interior, para colocá-los em contato, para filtrar suas trocas, para conter o que está no interior dentro, é preciso que se constitua uma superfície, ao mesmo tempo delimitativa, protetora, envolvente, imunitária, e que se faça fonte ativa de iniciativas. (Anzieu, 1993, p. 202)

Internamente, esse quinto organizador tem uma função de estrutura para o grupo. É essa membrana que garantirá o sentido de unidade e a constituição de um si mesmo grupal. Anzieu aponta então o envelope como o continente em que o fantasma individual ou originário, a imago e o complexo de Édipo poderão se inscrever como organizadores do aparelho psíquico grupal.

Não há realidade interior inconsciente senão a individual, mas o envelope grupal constitui no próprio movimento da projeção que os indivíduos fazem sobre ele e de suas fantasias, de suas imagos, de sua tópica subjetiva (isto é, da forma como se articula, nos aparelhos psíquicos individuais, o funcionamento dos subsistemas deles: id, ego, ego ideal, superego, ideal de ego). Pelo lado interno, o envelope grupal permite o estabelecimento de um estado psíquico transindividual, que proponho chamar de si mesmo. Esse si mesmo é imaginário. Ele fundamenta a realidade imaginária dos grupos. É o continente dentro do qual uma circulação fantasmática e identificatória vai se ativar entre as pessoas. (Anzieu, 1993, p. XVII)

O lado voltado para o exterior da vida grupal tem a função de proteção e filtragem das informações, das possibilidades de troca, e de acolhimento das energias oriundas do contato com outros grupos e com a realidade física e social (Anzieu, 1993).

 

Desbravando São Paulo: elementos do enquadre

As atividades do Desbravando São Paulo ocorrem quinzenalmente, aos sábados à tarde. Envolvem a circulação em grupo, pelos espaços públicos da cidade, com jovens participantes d'O Clube. Os destinos são variados, e o grupo busca uma apropriação das ofertas da cidade quanto a cultura e lazer. Parques, exposições, centros culturais, uma rua familiar a um dos integrantes são destinos constantemente desbravados pelo grupo.

A tarefa é estruturada em dois momentos. No primeiro, o grupo se encontra na sede d'O Clube, onde é realizada uma pequena assembleia, mediada pela equipe de acompanhantes, em que são decididos coletivamente o destino e o itinerário do dia. Todos podem sugerir destinos. Feitas as propostas, uma votação é coordenada por um dos jovens para efetivar a escolha do grupo.

O segundo momento envolve o deslocamento, no qual o grupo utiliza o transporte público, e a circulação pelo lugar escolhido. Ao término da visitação, acontece o retorno e o encerramento do grupo na sede d'O Clube.

Com a entrada nessa instituição, um dos autores do artigo pôde participar em diversas atividades, além de no Desbravando São Paulo. Essas experiências, feitas em grupo, possibilitaram questionamentos a respeito das diferenças observadas nas práticas realizadas no espaço físico da instituição e no grupo cuja tarefa é a circulação pela cidade. De forma distinta do que ocorria dentro d'O Clube, nas saídas em grupo aos sábados à tarde, o acompanhante tinha a impressão de observar uma espécie de contorno envolvendo o grupo, favorecendo a interação entre os integrantes do projeto. Tal impressão orientou a escrita deste texto, que buscou organizar e testar essa hipótese apoiando-se em elementos teóricos e práticos.

 

Fronteiras da tarefa: formação do metaenquadre

Há cerca de um ano a equipe utiliza essa estratégia de assembleia, mais participativa, na escolha dos destinos. Esse modelo de construção participativa apresenta uma tarefa explícita de construção coletiva a partir das singularidades que se entrelaçam no campo grupal. Seguindo as reflexões de Kaës sobre as garantias metafísicas e metassociais das alianças inconscientes, podemos entender essa atividade como parte de um enquadramento que se destina à garantia da associação dos membros do grupo:

A solidariedade entre os elementos de um sistema é garantida por um sistema metafísico. Essa definição fria não dá conta dos jogos sociais e psíquicos envolvidos na garantia. Todas as alianças sociais, políticas ou religiosas necessitam de avalistas cuja função é assegurar um sólido fundamento para seu objeto, para seus objetivos e para seus termos, mas também as sanções que acompanham a falta de respeito de sua manutenção, a ruptura ou a traição da aliança. A garantia é antes de tudo, com efeito, um compromisso; ela aporta um crédito, uma credibilidade, um voto de confiança. Toda e qualquer aliança, todo contrato, coloca em tensão os termos da garantia e, especialmente, os de confiança que a sustentam. (Kaës, 2014, p. 37)

Esse momento da tarefa era de difícil manejo para a equipe de acompanhantes. Costurar um contrato entre os integrantes, que implica escolhas e renúncias, apresentava-se como um desafio pela atualização das fraturas narcísicas, aspectos clivados que eram dramatizados nessas votações. Em alguns jovens, tais fraturas psíquicas eram dramatizadas como verdadeiras alienações, um deserto em meio ao qual não surgiam propostas desses integrantes.

A participação de um jovem nessa atividade mobiliza as questões adormecidas no grupo. A dificuldade de Otávio diz respeito justamente à renúncia em face das decisões coletivas. O momento de votação aparecia como uma possibilidade de aniquilação, e angústias paranoicas eram atuadas de forma violenta. Em sua primeira participação, Otávio fica desconfiado, diz que os acompanhantes estão manipulando a votação, faz uma verdadeira boca de urna com os outros jovens e mobiliza na equipe de acompanhantes sentimentos de ódio e destrutividade.

A equipe comenta com Otávio sobre a dificuldade de estar com ele nesses movimentos autoritários. Ele fala de seu sentimento de que todos estão contra ele e de como se trata de uma injustiça a não submissão a suas escolhas. Os acompanhantes apontam o quanto deve ser duro para ele estar sozinho nesses momentos, e a solidão mostra-se como algo a ser trabalhado com Otávio em outros encontros.

O antagonismo entre Otávio e o restante do grupo mobilizou os demais participantes, que antes revelavam uma passividade incômoda quanto às escolhas durante a assembleia. Com a necessidade de lidar com a renúncia de Otávio aos contratos do grupo, não só os acompanhantes realizavam intervenções: os integrantes do grupo se revezavam na função de relembrar as formas coletivas de decisão. Assim, o grupo se fortaleceu e, após alguns encontros, foi inaugurado o sistema de votação, mediado por um papel Kraft, que materializa as propostas e organiza a assembleia.

Na vinheta clínica apresentada, foram vivenciados movimentos regressivos dos integrantes do grupo. Alguns, em sua dificuldade de representação de qualquer gesto ou jogo, transportavam o grupo para as experiências mais arcaicas, nas quais os impasses e limitações do gesto envolviam certos participantes na passividade. Outros, como Otávio, experimentavam a possibilidade de renúncia ou de adesão ao grupo como uma ameaça. Entendemos que a vivência de continuidade dos encontros, por meio da repetição do enquadre, foi permitindo o investimento dos integrantes no grupo, sustentados pela experimentação das escolhas no desbravamento da cidade.

Outro ponto importante refere-se à circulação fantasmática operada no grupo. O fantasma individual de Otávio provocou uma ressonância no grupo. O seu sentimento de alienação quanto aos processos de escolha do grupo revelava a passividade exagerada e a não implicação de alguns integrantes. Essa revelação possibilitou a formação de um metaenquadre mais estruturado, através de instrumentos mediadores das escolhas do grupo.

 

Fronteiras com o mundo externo

Numa das atividades, o grupo foi à avenida Paulista, polo cultural e turístico da cidade. Em determinado momento, Rodolfo dispara contra todos: "Só tem louco aqui, só tem louco". Refere-se às pessoas que passam pelo caminho: moradores de rua, vendedores ambulantes, estátuas humanas, ciclistas. Um dos acompanhantes diz a Rodolfo que, para ele, todo mundo parece louco. Ele responde, de forma bastante incisiva, que ele não, que ele não era louco. O acompanhante pergunta por que ele estava dizendo aquilo. Rodolfo comenta que as pessoas o estavam chamando de louco e que por isso os pais o proibiram de usar o celular e o computador. Rodolfo se afasta do acompanhante que fez a intervenção e vai até Paulo, outro membro da equipe. Depois da atividade, na reunião de equipe, foi possível recuperar o que se passou com Paulo. Rodolfo lhe contou que havia se relacionado pelo celular com uma menina, que não sabia muito bem como fazer isso e que acabou ofendendo a garota, motivo pelo qual familiares e amigos entraram em contato com os pais pedindo providências.

Essa construção abriu a possibilidade de cuidado e escuta de Rodolfo num outro nível. Foi apresentada a ele a oportunidade de procurar os acompanhantes quando tivesse problemas para lidar com alguma circunstância. O dentro e o fora também aparecem na situação descrita, evidenciando as dificuldades de Rodolfo no estabelecimento de suas próprias fronteiras com o mundo externo, representado pelas pessoas na rua e pela garota na cena ao telefone. Ao acompanhá-lo na rua, testemunhando o atravessamento de seus frágeis limites no encontro com o outro, a equipe o apoiou na delimitação de suas fronteiras internas.

 

Fronteiras do eu-pele: o acompanhante como barreira e continente

Márcio é um jovem com fraturas significativas. Sua percepção corporal é constantemente embaçada por uma teia de significantes resultante de falhas no processo de integração de sua subjetividade. Alguns incômodos corporais - fome, sono e cansaço, por exemplo - são integrados com dificuldade na aparelhagem psíquica, ocasionando surtos em que a respiração se intensifica, os olhos se viram, como num ataque epiléptico. Numa atividade do Desbravando, após um breve lanche e uma caminhada razoável, Márcio sofre uma de suas crises. O acompanhante coautor deste texto entra em cena:

Abraço ele bem forte. Com meus braços, pressiono seu peito, e colo meu corpo ao dele. Sinto seu coração disparado numa frequência muito alta. O coração dele parece bater no meu braço e minha frequência cardíaca também dispara. Vou dosando minha respiração e, conforme diminuo meu ritmo, o dele também desacelera. Enquanto isso, Paulo está diante dele, olhando-o nos olhos, dizendo que está tudo bem. Márcio vai encontrando no meu abraço e no rosto de Paulo familiaridade, aconchego, colo. Acalma-se e seguimos a caminhada. Eduardo, André e Dênis perguntam aos acompanhantes o que aconteceu. Endereçamos a fala a Márcio, que comenta que precisa ir ao hospital. Os outros jovens dizem que ele comeu demais. Os acompanhantes também tentam dar outro nome à experiência, como ter comido e andado rápido, e respirado pela boca. Procuramos dar sentido a uma experiência de desamparo, ocasionalmente nomeada por ele como crise que precisa de um aparato hospitalar. Nessa situação, nós nos encontramos diante da mobilização de questões primitivas, que evidenciam a fragilidade do envoltório psíquico em Márcio. Essa crise possibilita a intervenção. Corporalmente Márcio está comigo e vivencialmente está com Paulo, o que permite a junção dos três como um grupo, constituindo um continente para a experiência de desamparo.

 

Envoltórios grupais e individuais: do sincretismo à diferenciação

A dupla face do envelope psíquico grupal também atualiza a problemática do processo de identificação que circula no interior do grupo e no seu exterior. Dentro do envoltório, foi possível acompanhar a relação de Felipe com os integrantes do grupo e o seu movimento de experimentação no encontro subjetivo. Ele, um jovem muito protegido pela família, apresenta um medo aniquilador quanto à possibilidade de demonstrar seus incômodos e sua singularidade. Em casa, vivenciava uma relação excessivamente adaptativa: as mostras de sua agressividade ou de suas dificuldades sofriam uma repressão intensa. Felipe foi lidando com esse terror familiar ocultando qualquer tipo de manifestação subjetiva que rompesse com o que era institucionalmente aceito. Juntando-se ao grupo, num lugar em que era aceitável seu transbordamento, e também como forma de identificação, faz movimentos de imitação dos outros integrantes. Por um tempo, a equipe entendeu que isso era um meio de experimentação do encontro e de adesão ao grupo. No entanto, em conversas com o acompanhante individual de Felipe, mais próximo da família, a equipe teve notícia de que esse mimetismo apareceu na casa do jovem como algo insuportável para os familiares, especialmente quando o Felipe adaptado e obediente era como que possuído por uma figura opositora, que questionava as regras de convivência de maneira bastante agressiva. Essa dinâmica se intensificou de tal forma, que pôs em xeque a participação dele no projeto.

Numa afinação que incluiu diálogos semanais entre a equipe d'O Clube e seu acompanhante, foi realizada uma conversa conjunta com Felipe, a fim de abrir um espaço de escuta para essas formas de identificação. Felipe comentou como por vezes era difícil controlar tal movimento. Foi abordado o quanto, durante o projeto, esse tipo de comportamento poderia surgir sem problemas e ser acolhido. A preocupação da equipe, porém, se referia ao risco de sua participação em algo de que ele gostava. Felipe pediu ajuda no processo de finalização do grupo, antes de ele voltar para casa, a fim de poder "virar a chave"; pediu auxílio para "desligar o botão". Essas expressões são comuns ao universo de Felipe, como se ele fosse um autômato conectado a fios capazes de controlar os outros e de controlá-lo. Esse pedido, em termos de fronteira do grupo, aponta a necessidade de transição entre o dentro e o fora do envelope psíquico grupal, no qual ele se sentia, paradoxalmente, vivo e também preso. Estão em foco as transições - entre a rua e a instituição, entre o grupo e o si mesmo - e a demanda de que possa transitar de outra maneira em outros espaços, como em sua casa.

A experiência com Felipe trouxe a questão técnica de como favorecer, através do fechamento do encontro, o trânsito para fora do envoltório psíquico grupal ao fim da atividade. O estabelecimento de fronteiras diferenciadas entre os integrantes surgia como uma necessidade de constituição do eu para além do sincretismo do grupo.

 

Considerações finais

Na rua, criam-se situações de superestimulação, desvios, encontros e desencontros pessoais, luzes e cores. Isso precipita a crise e pode ser tomado como um artifício que potencializa o trabalho sobre a dimensão do envoltório psíquico grupal. Assim, durante o acompanhamento terapêutico em grupo na rua, cria-se um processo psíquico específico. Na urgência que esse manejo traz, na perda de um tipo de suporte, e com a atuação dos acompanhantes e os efeitos do próprio grupo, estimula-se a emergência ou o fortalecimento de um envelope psíquico grupal. Como o envoltório psíquico grupal solicita, em sua constituição e em seu funcionamento, o acoplamento dos envelopes psíquicos individuais, fomentá-lo permite um trabalho sobre os envelopes psíquicos individuais, tão fragilizados entre os participantes da atividade.

Desse modo, o conceito de envoltório psíquico grupal nos ajuda a compreender os efeitos do processo de desinstitucionalização sobre o grupo, nas saídas e circulações pela cidade. Ao mesmo tempo, esse organizador grupal potencializa a formação de vínculos entre os integrantes do grupo, por sua capacidade de proteção em relação ao mundo externo. Dialeticamente, o contato com os outros grupos, a cidade e seus estranhamentos favorece a constituição das fronteiras do grupo e do si mesmo.

 

Agradecemos aos membros da oficina de artigos do Cligiap, em que este texto foi produzido, e à equipe d'O Clube, em especial a Lucas Nakandacare, Milena Klinke, Paulo B. Gomes e Verônica Arrieta, acompanhantes nesses desbravamentos.

 

Referências

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Palombini, A. de L. (2006). Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Psychê, 10(18),115-127.         [ Links ]

Pitiá, A. C. de A. & Santos, M. A. dos. (2006). O acompanhamento terapêutico como estratégia de continência do sofrimento psíquico. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, 2(2). Recuperado em 6 mar. 2018, de http://www.revistas.usp.br/smad/article/view/38643.         [ Links ]

Reis Neto, R. de O., Teixeira Pinto, A. C. & Oliveira, L. G. A. (2011). Acompanhamento terapêutico: história, clínica e saber. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(1),30-39.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marcus Vinicius Marques Barbiero
Rua Frei Vicente Salvador, 367
02019-000 São Paulo, SP
marcusvmbpsi@gmail.com

Pablo Castanho
Avenida Professor Mello Moraes, 1721, bloco F
05508-030 São Paulo, SP
pablo.castanho@usp.br

Recebido em 27.02.2018
Aceito em 13.03.2018

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