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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo Apr./June 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Paciente, e intérprete: a interpretação, um processo em vários tempos1

 

 

Emmanuelle ChervetI; Tradução Vanise Dresch; Revisão técnica Mônica Povedano

IPsiquiatra, psicanalista e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)

Correspondência

 

 

Em sua acepção corrente, interpretar supõe que se possa ter entendido um dizer em vários sentidos, dos quais alguns estão ocultos ou são inacessíveis. Uma paisagem em vários planos. Essa paisagem em vários planos, por sua vez, supõe o funcionamento de uma vida psíquica elaborada, complexa e conflitual (isto é, em que os conflitos são suportáveis), uma vida disponível à experiência sem transbordamento excessivo de excitações (excitações em pequena quantidade, providas de sentido e ligadas a objetos significativos, a desejos, como condição da intensidade). Isso está longe de acontecer sempre no trabalho clínico. Com frequência, o paciente se vê paralisado pela angústia, imobilizado por sua necessidade de controlar uma grande carga de excitação, convencido de que o relato de seu infortúnio apenas descreve um destino ruim, que o arruína sem que ele tenha qualquer participação nisso, preocupando-se em obter certezas, em desvencilhar-se de contradições insuportáveis, ou mantendo-se calado. Nesse caso, é impossível comunicar-lhe uma interpretação de sua fala, pois isso seria denunciá-la como insuficiente ou errada, reforçando a necessidade de se defender das intrusões. No entanto, o pensamento do analista não deixa de ser interpretante em seu foro íntimo. Interessam-lhe o que a fala do paciente torna presente na situação analítica, sem tornar acessível à consciência, e os caminhos que permitem aproximar-se disso. Uma travessia das aparências.

Aliás, esse modo de pensar não é o único que o analista utiliza: quando André Green fala de pensamento clínico, ele se refere a uma variedade de registros que coexistem (referências nosográficas e experiência psiquiátrica, empatia e identificação com o discurso do paciente, pensamento interpretante, associação com elementos da cultura...). A liberdade de recorrer a um desses registros compõe a associatividade do profissional, uma associação livre diferente daquela do paciente por exercer uma função de retenção do supereu e por preocupar-se em promovê-la no paciente, o que não deixa de ter relação com uma preocupação parental.

Para isso, contudo, o analista interpreta primeiro o que se passa nele mesmo, para si mesmo. Ele recebe tudo o que lhe é dirigido - atitudes, emoções, variações da situação terapêutica, falas - e se preocupa em sentir o que está acolhendo, em suportar isso, em prestar atenção nas formulações verbais e nas imagens que lhe chegam, mantendo em reserva aquilo que resiste a se formular em palavras nessa experiência. Essa abertura a uma mobilização possível nele não lhe dá imediatamente acesso a uma compreensão, a uma formulação verbal, muito menos a uma interpretação que possa ser comunicada ao paciente, mas organiza aos poucos as imagens e os significados no próprio analista, em sua história com esse paciente, relacionando-os com o que já foi retido por ele, num esboço de compreensão e interrogação. É depois disso, em vários tempos, que virá à consciência do analista algo que ele possa dizer ao paciente, apresentando-se às vezes como irrupção, às vezes como resultado de longos debates internos.

Para entender melhor essa complexidade, é preciso levar em conta os dois grandes registros do funcionamento mental, descritos por Freud em dois momentos de sua investigação, antes e depois de 1920.

O primeiro registro, o funcionamento neurótico, supõe que qualquer acontecimento, qualquer experiência, sofre uma dupla inscrição na memória devido ao recalcamento, que na neurose infantil isolou os traços das experiências e dos desejos recusados, mantendo-os fora de alcance. Tudo o que acontece repercute em dois locais, de duas maneiras diferentes, sendo uma delas oculta, mas sempre atuante. A vida psíquica se organiza então em torno de uma clivagem relativamente mobilizável e permeável. De um lado, a inscrição pré-consciente e consciente, ligada a palavras, que pode ser exprimida e compartilhada, representa a parte do mundo interno que admite a limitação do desejo, o interdito do incesto, a percepção da castração, da falta, e a diferença dos sexos. Essa parte se mantém em harmonia com o grupo, o socius, e é civilizada. A palavra pré-consciente corresponde ao que não é consciente em dado momento, mas que pode facilmente vir a sê-lo, sem resistência, se prestarmos atenção - ao contrário do que é recalcado, recusado. De outro lado, a inscrição inconsciente, em conflito com a primeira, está ligada aos traços mnésicos interditos, recusados, formados no período edípico, que organizam o autoerotismo e o pensamento animista do infantil: o selvagem em nós, que só quer obter prazer. Nessa parte, tudo é possível, os desejos não têm limite. Manifesta-se nos sintomas, nos atos falhos e nos sonhos. Diz-se que ela produz derivados [rejetons] no mundo da consciência. Note-se, de passagem, o encanto do vocábulo francês rejetons, que designa, ao mesmo tempo, ervas daninhas, brotos espontâneos dos vegetais e, num vocabulário coloquial, crianças.

Essa dupla inscrição também funciona no analista e produz derivados do inconsciente que lhe são próprios, aos quais ele está atento sob a forma de pensamentos incidentes, isto é, pensamentos que surgem involuntariamente. Isso faz parte da dita atenção flutuante do analista - flutuante, por permitir que tais pensamentos se manifestem; atenção, para captá-los. Na verdade, numa melhor tradução do termo alemão, diz-se atenção uniformemente suspensa, ou seja, que se interessa da mesma maneira por tudo aquilo que vem ao analista a partir do exterior - tudo o que é dito e manifesto pelo paciente, podendo este atribuir ou não um valor - e do interior - tudo o que se passa no próprio analista.

Se os derivados do inconsciente do analista são interessantes é porque provêm da fantasia inconsciente que este criou por sua identificação inconsciente com o paciente (Braunschweig & Fain, 1975) e, principalmente, com aquilo que se manifestou inconscientemente no paciente sem poder ser reconhecido nem identificado. Ou ainda, segundo Lacan, o que falta no discurso do paciente se manifesta de maneira invertida no que vem ao analista. Essa é, portanto, uma via de acesso à parte do inconsciente do paciente que se atualizou. Esses derivados podem ser formulados de modo impessoal, como na linguagem do infantil, que fala a todos nós, mas também podem conter traços da história pessoal do analista. É preciso então deixar que se liberem primeiro para depois se formularem de modo bastante impessoal, ou melhor, no vocabulário do paciente. Isso significa que a neutralidade não é absolutamente um dado básico da análise. É mobilizando o próprio desejo que o analista acolhe a realidade psíquica do paciente. Em vez de falar em neutralidade, pode-se conceber um trabalho de impersonalização, de liberação de seu vocabulário íntimo, que o analista deve realizar para dar ao paciente um espaço em que este possa desenvolver o seu.

No entanto, antes de poder expressar em palavras o que lhe acontece, num primeiro momento o paciente precisa, sobretudo, ativar e deixar aflorar sua dinâmica inconsciente, cheia de desejos, que ele sempre tentou controlar e repelir.

De fato, toda uma parte daquilo que acontece no trabalho terapêutico não é dito explicitamente. Quando Freud (1905/2006) acreditou ter descoberto o sentido dos sintomas de Dora a partir do relato dos sonhos dela e do que ela contava sobre sua história, ele tentou comunicá-lo à paciente, mas essa compreensão não impediu que ela fugisse. Esse desapontamento fez Freud perceber que o mais importante era o fato de o investimento afetivo da moça dirigido a ele repetir, de forma complexa, o que havia acontecido no passado entre ela e os diferentes adultos que a cercavam. Trata-se da transferência, que segundo Freud faz com que o tratamento se desenrole mais lentamente e se torne menos claro. É importante não exaurir esse movimento profundo por uma compreensão prematura, que seria, aliás, parcial e ilusória.

Freud destaca então as representações de espera do analista, que se tornam a terra fértil para um ritmo de longo fôlego. Elas o fazem capaz de suportar a virulência pulsional que se manifesta na atualização promovida pela transferência, para que se componha gradativamente nele, em contato com essa realidade, todo um universo de representações, imagens e sensações, que evolui durante sua história com o paciente, um campo intermediário préconsciente, que lhe dará acesso secundariamente à configuração inconsciente que se atualizou.

Usei formas passivas para designar o movimento pelo qual as significações se apresentam no paciente e no analista. De fato, o que permite o trabalho sobre essas significações no modo de funcionamento neurótico é o fato de ser possível instalar-se nele uma forma de regressão peculiar, em que ambos podem deixar afluir os pensamentos passivamente, como no devaneio ou no sonho, sem dirigi-los de maneira voluntária. Esse é o pensamento associativo. Ao estudar o sonho, Freud chamou essa regressão de formal, pois as formas verbais tendem espontaneamente a transformar-se em imagens, em formas plásticas. Essa transformação ocorre, curiosamente, por fragmentos, como nos rébus, pois é sustentada pelo desejo inconsciente, que desdenha da lógica verbal e toma apenas os restos dos traços auditivos deixados pelas palavras, com os quais o sujeito brincou na infância, enquanto o sentido que os adultos davam às palavras lhe escapava. As palavras ouvidas e as imagens são utilizadas para expressar pensamentos numa lógica muito diferente daquela do pensamento consciente habitual, que se pode assim, às vezes, interpretar, na primeira acepção da palavra. Essa atividade mental em circunstância de uma passividade estreitamente ligada à memória do infantil supõe uma segurança interna, que o dispositivo terapêutico procura oferecer, pelo menos se o nível de angústia do paciente permitir.

Isso conduz ao segundo modo de funcionamento mental, que Freud descreveu após 1920 para dar conta dos casos em que o tratamento tende a repetir, em grandeza real, uma realidade traumática dotada de tamanha atração que impede a regressão formal de se instalar. O ambiente é então dominado pela urgência, pela necessidade, pelo realismo, obstruindo a atribuição de um duplo sentido ao que é dito. A organização dos movimentos psíquicos em torno do recalque, com a riqueza que ela traz, conservando traços das experiências essenciais esquecidas, mas vivas, não é garantida. Se uma história, por causar um abalo extremo, obrigou o sujeito a se defender de forma imediata contra excitações inassimiláveis, sem respostas parentais capazes de garantir um espaço de experiência seguro, uma parte dos traços dessa experiência não conseguiu organizar-se, ligar-se a palavras, a enredos significativos, manifestando-se, sobretudo, por uma tendência a repetir as situações que aconteceram sem ter sido integradas ou a desvencilhar-se da excitação por sistemas de descarga, de expulsão. Na maioria dos casos, o funcionamento psíquico é heterogêneo e recorre em maior ou menor grau aos dois registros. No entanto, é indispensável diferenciá-los, pois requerem do terapeuta atitudes diferentes.

Se predominar a repetição agida, o dispositivo de tratamento será o lugar de parte dessa repetição, enquanto outra parte se repetirá na vida do paciente. O trabalho terapêutico consistirá então numa tentativa de pôr em palavras essa experiência, para inscrevê-la, retê-la, recalcá-la, esquecê-la, enriquecendo assim a vida inconsciente. As intervenções do analista se destinam, principalmente, a apontar o valor do que é dito, a promover sua inscrição, a ligar pelas palavras e muitas vezes a combater a desmentida que o paciente faz do valor de seus pensamentos. Ao contrário do levantamento do recalque antes buscado, é preciso fabricar o recalque. A finalidade de um tratamento, aliás, nunca é esvaziar o inconsciente de seus conteúdos em benefício da consciência, mas enriquecê-lo com os traços recalcados, condição da vitalidade da vida imaginária, favorecer as passagens entre os diferentes modos de funcionamento, os retornos desses traços em sucessivos après-coups, refletindo a vida presente.

Pouco a pouco, graças aos acontecimentos reinvestidos na realidade, relatados e esquecidos, alguns dos traços perceptivos mantidos em suspenso reaparecem - dessa vez, como imagens vindas de dentro, ligadas ao relato dos episódios recentes - e se tornam lembranças. É nesse sentido que o trabalho se diferencia de uma simples narratividade.

A interpretação deixa de ser um derivado do inconsciente do analista e passa a ser o produto de um trabalho de pensamento em parte dedutivo, uma construção, uma hipótese do que pode ter acontecido na história do paciente, que vai sustentar a busca desse passado pelo paciente e suas próprias hipóteses. A construção do passado sempre segue um modelo em dois ou vários tempos: uma experiência com valor traumático é primeiro sofrida e posta em reserva, em latência ou no esquecimento, para depois ser tratada em virtude de um retorno numa nova conjuntura.

Esses dois modos de funcionamento coexistem certamente em todos os percursos terapêuticos. A diferença essencial entre eles reside na oscilação entre a passividade e a atividade. O traço traumático impele à repetição na realidade, ao agir. É necessário então tentar reter esse movimento em direção ao agir, estimulando o paciente a se interessar por aquilo que é assim figurado por intermédio da realidade, por aquilo que ele sente, e a se colocar em estado de reverie. Freud (1914/2005) chega a dizer que o analista se organiza para um combate permanente com o paciente a fim de reter no campo psíquico todos os impulsos que ele desejaria orientar para a atividade motora. Essa tensão no sentido da regressão formal e da representação pode ser exercida por intervenções verbais, mas requer, sobretudo, uma atitude interna do analista para restaurar primeiramente nele uma regressão formal quando a intensidade dramática das palavras do paciente o impelir a efetuar movimentos ativos, reparadores, por exemplo.

Não se trata de permanecer em silêncio, mas de dar tempo para que os conteúdos que estão por vir concedam acesso àquilo que não consegue ser dito. Isso só pode passar por vias longas, indiretas, por figurações em imagens e por certo grau de renúncia. Às vezes, num primeiro tempo, a noção segundo a qual o paciente, além daquilo que diz, também diz algo diferente do que pensa estar dizendo é uma ideia preconcebida do terapeuta, baseada em sua formação e em sua experiência anterior, opondo-se ocasionalmente à convicção do paciente de que a única referência de seu discurso é a realidade atual. A experiência vivida desses retornos durante o trabalho, pela qual ele se reapro-pria de sua história, será uma experiência de prazer, de ampliação de seu horizonte, convencendo-o aos poucos da riqueza de suas palavras e da existência de uma parte inconsciente. Mas a tendência ao agir fará essa experiência ser sempre vivida sob a forma de crise, à custa de uma tensão que o analista deve conseguir sustentar (Castoriadis-Aulagnier, 1977).

Escolhi um breve exemplo clínico, durante um tratamento que se desenrola majoritariamente no registro neurótico, mas no qual a dimensão traumática aparece sob a forma de uma tentação de agir, arriscada para a paciente, mas apenas esboçada, já que a paciente encontra um modo de não levá-la a cabo, um equilíbrio em que as forças autodestrutivas permanecem limitadas por um compromisso que freia o agir, dando tempo ao tratamento para a elaboração. Descreverei passo a passo, intencionalmente, o que acontece na mente do analista de maneira artificial e retrospectiva. Na verdade, se uma parte desses pensamentos é laboriosa e consciente, outra parte é quase instantânea e pré-consciente, ou seja, pode se tornar consciente mediante um esforço de atenção, embora passe despercebida no momento.

Uma sequência desse tipo pode ocorrer tanto numa psicanálise clássica quanto numa psicoterapia face a face, ou mesmo na modalidade de acompanhamento em consultas terapêuticas. Convido-os a se ater aos processos em jogo, e não aos aspectos da realidade da paciente, o que corresponde também à imprescindível exigência de confidencialidade, não somente na apresentação, mas igualmente na escuta de toda clínica.

 

Clínica

Trata-se de uma paciente que já havia feito um tratamento longo, graças ao qual foi possível aproximar-se dos traços de uma infância organizada em torno de um acontecimento marcante: aos 4 anos de idade, a paciente foi confiada a uma babá durante uma hospitalização da mãe, que apresentava ausências e mal-estares. A mãe veio a falecer algum tempo depois. Com isso, a paciente passou toda a infância na casa dessa babá, que cuidava de muitas crianças, num ambiente bastante alegre. A menina via o pai apenas de vez em quando.

Há algum tempo, a paciente empenha-se em vender o apartamento onde mora, sem contudo fazer qualquer planejamento a respeito de outro lugar para morar. Uma atitude surpreendente, vinda de uma pessoa que costuma ter pleno bom senso. Ela começou a insistir nesse assunto após um período em que se abriu para ela a possibilidade de uma vida finalmente liberada de pesadas restrições. Deparou-se então com a impossibilidade de se projetar no futuro. Sua reflexão sobre eventuais projetos não foi adiante, prevalecendo nas sessões a expressão desse desejo urgente de vender o apartamento.

No início de uma sessão anterior a um curto período de férias, a paciente volta a falar desse projeto de forma quase provocativa. Não deixou de perceber, no meu silêncio, minha reserva quanto ao perigo que representava para ela essa tentação de agir. Descreve as visitas, a discussão em torno do preço do apartamento etc. Desviando-se desses relatos, que me irritam um pouco e me fazem buscar mentalmente uma saída, ela fala de modo ligeiramente diferente sobre um breve episódio, que me faz visualizar uma cena discrepante. Enquanto passava de carro olhando algumas casas, imaginando em seu devaneio viver ali, a paciente viu uma moça atravessar de repente. Percebeu que a moça, muito atenta, parou a tempo. Ficou muito chateada consigo mesma, pois quase a atropelou. Curiosamente, esse pequeno episódio me transmite a imagem clara de um encontro no momento de atravessar a rua, que permanece inscrito como significativo, investido de maneira peculiar, sem que eu saiba por quê. Reservo essa imagem.

Penso nas intervenções que eu já havia tentado para relacionar esse desejo de vender o apartamento com episódios do passado, as quais não produziram grande efeito. Preocupada, fico com o sentimento de que preciso intervir, mas temo deixar transparecer certa agressividade ou injunção. Passado um momento, pergunto simplesmente: "O que imagina fazer quando tiver vendido o apartamento?" Ela não tem a menor ideia, a não ser, talvez, encontrar alguns amigos que a hospedem durante uma ou duas semanas. Ocorre-me então a imagem de um salto no vazio; eu sabia que ela morava no oitavo andar. A dimensão despreocupada e quase insolente com que a paciente imagina que tudo ficará bem quando não tiver mais casa para morar me faz pensar que a Providência impera. No momento em que pretendo intervir usando essa palavra, Providência, tomo consciência, pela ressonância feminina da palavra, de uma dimensão materna em jogo, e minha fantasia da queda do oitavo andar se completa. Digo: "Vocêpensa que a Providência vai recolhê-la nos braços?".

A paciente ouve, faz uma pausa e depois continua: uma das casas que ela estava olhando se parece exatamente com a casa de seus sonhos; é uma casinha quadrada, simétrica, com uma varanda e rodeada de um pequeno jardim. Penso num desenho de criança, o que reforça meu sentimento de uma cena infantil em curso. Em seguida, ela me explica que quer deixar seu apartamento porque mora num prédio grande e não aguenta mais esse coletivo. Ela tematiza a questão do coletivo, e a palavra coletivo se repete. Por fim, essa palavra me faz pensar no momento de sua chegada à casa da babá. Ocorre-me a seguinte construção:

Livrar-se desse apartamento para tentar voltar atrás no tempo, até o momento em que você foi tirada da casa de seus pais e instalada na casa da babá, num coletivo? Como sair desse coletivo quando você já não pode mais voltar para a casa de seus pais?

Depois das férias, brotam nas sessões afetos de desamparo e abandono, que a levam a uma convicção quanto a essa construção. Freud (1937/1985) explica que são as associações do paciente após uma construção que demonstram sua veracidade ou a completam. A paciente fala mais tarde da lembrança dos sentimentos recíprocos de rivalidade entre ela e os filhos legítimos da babá, os quais nutriam um sentimento agudo de não estar em sua própria casa. Ela mesma volta à questão da Providência:

Aliás, não fosse a Providência, eu teria ido para a Dass2 quando minha mãe foi hospitalizada. No dia em que isso ia ser decidido, meu pai, que estava atravessando a rua para comprar pão, encontrou minha babá, que ele conhecia como vizinha.

Quando ele lhe contou o problema da guarda da filha, essa vizinha simplesmente lhe propôs seus serviços. Foi assim que o destino da paciente foi traçado, no meio da rua que o pai atravessava, num encontro casual.

Na sessão, foi mediante essa imagem formal - encontro no meio da rua - que a cena do encontro do pai com a babá, contada já havia muito tempo e esquecida, infiltrou-se, para mim, na imagem recente da moça que atravessava a rua em frente a casas em que se poderia morar. A lembrança que eu havia deixado em latência repercutiu sob a forma de sentimento de significação da cena contada, despertando a palavra Providência, que ela havia pronunciado, creio eu, no primeiro relato.

Anteriormente, a dimensão provocativa do projeto de deixar sua moradia me convocou a intervir sem que eu pudesse representar, naquele momento, o seu desejo inconsciente, contentando-me com uma pergunta que expressava minha mínima preocupação. A persistência de sua desenvoltura e a ausência (o vazio) de representações acessíveis suscitaram, por um lado, a palavra Providência e, por outro, a cena visual em que ela caía do oitavo andar. Graças a essa imagem, eu pude figurar seu desejo inconsciente de que a recolhesse e aceitar ouvir o movimento transferencial ao qual eu resistia. A imagem da queda do oitavo andar é a expressão da minha agressividade em reação ao que eu sentia como uma provocação, mas também, sem dúvida, a expressão em imagem da dimensão pulsional violenta que a paciente manifestava contra si mesma, na sua maneira de proceder, e do efeito que a dimensão traumática em jogo causava em mim, a qual não podia ser representada de outra forma naquele momento. Em seguida, as diversas conotações e a dimensão feminina da palavra Providência possibilitaram o retorno de uma figuração materna: a cena da queda se completa, eu a apanho nos braços, como me sugere a formulação interpretativa. A retomada, numa fantasia investida por mim, do meu acolhimento ao seu movimento permite que seu fluxo associativo prossiga em sua ligação com o inconsciente, com a lembrança. Suas associações, que se aproximam então da lembrança em questão, o coletivo insuportável, fornecem-me um acesso à construção.

A necessidade que senti de intervir também estava ligada a uma suspeita ausência de angústia da paciente, que me inquietava. Imagino, a respeito da cena da moça que atravessa a rua, uma injunção parental: "Preste atenção ao atravessar a rua!". Posso supor que essa injunção esteja presente nas lembranças da primeira infância da paciente: a casa dos pais dava para um boulevard de quatro pistas, perigoso. A mãe de antes da catástrofe, de antes das ausências, talvez fosse muito atenta à filha. Como pano de fundo da cena que lhe foi contada do encontro entre o pai e a babá, delineia-se uma cena cotidiana anterior, que conta em negativo [en creux] sua percepção dos transtornos de atenção da mãe antes da separação. Algum tempo depois surgirá essa figura materna sob a forma de um fantasma, em sonhos.

Assim, penso que as vias longas e arriscadas do pensamento associativo do analista são preferíveis a uma interpretação explícita da transferência. Por exemplo, se eu tivesse dito à paciente, em resposta à sua vontade de se desfazer do apartamento, que ela esperava que eu a adotasse, como o fez sua babá, ela poderia ter aceitado "fazer a ligação", sem nenhuma rememoração nem outra modificação além de uma ideia. Mas essa interpretação, provavelmente correta, esteve subjacente em toda a sequência, permitindo que o processo se apoiasse na transferência ligada para a pessoa do analista, sendo essa transferência mais dinâmica por ter permanecido silenciosa e ignorada. Na verdade, meu consultorio fica numa casinha, ao lado de um grande edifício. Só é interessante interpretar a transferência para a pessoa do analista quando ela impede que o movimento associativo do paciente prossiga, graças à regressão formal, em direção aos movimentos inconscientes que reatualizam as experiências ainda essenciais que canalizam seu investimento.

 

Referências

Braunschweig, D. & Fain, M. (1975). La nuit, le jour: essai psychanalytique sur le fonctionnement mental. Paris: pur.         [ Links ]

Castoriadis-Aulagnier, P. (1977). Le travail de l'interprétation: la fonction du plaisir dans le travail analytique. In R. Major (Dir.), Comment l'interprétation vient au psychanalyste (pp. 13-37). Paris: Aubier Montaigne.         [ Links ]

Freud, S. (1985). Constructions dans l'analyse. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes (U. Huber, J. Laplanche & E. R. Hawelka, Trads., Vol. 2, pp. 269-281). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (2005). Remémoration, répétition et perlaboration. In S. Freud, Œuvres complètes (J. Altounian et al., Trads., Vol. 12, pp. 185-196). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1914)

Freud, S. (2006). Fragment d'une analyse d'hystérie. In S. Freud, Œuvres complètes (F. Kahn & F. Robert, Trads., Vol. 6, pp. 183-301). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1905)

 

 

Correspondência:
Emmanuelle Chervet
23 Rue Trarieux
69003 Lyon, FR
emmanuelle@chervet.fr

Recebido em 7/6/2018
Aceito em 21/6/2018

 

 

1 Conferência apresentada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo no dia 14 de abril de 2018, no ciclo A Interpretação Psicanalítica em Pauta, organizado pela Diretoria Científica.
2 NT: Direction des Affaires Sanitaires et Sociales. Parte do sistema francês de proteção judiciária da infância e da adolescência. É para onde vão crianças e menores órfãos ou de pais incapacitados, que perderam a guarda dos filhos por qualquer motivo.

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