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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo Apr./June 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Projeção e contágio orgânico-afetivo entre dois corpos

 

Projection and organic, affective contamination between two bodies

 

Proyección y contagio orgánico-afectivo entre dos cuerpos

 

Projection et contagion organique-affectif entre deux corps

 

 

Gley P. Costa; Gildo Katz

Membro fundador, efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, estuda-se o funcionamento do ego-realidade inicial, em particular as defesas funcionais e patológicas utilizadas pelo recém-nascido para tramitar as exigências pulsionais, com destaque para a projeção, a qual se encontra na base do surgimento do afeto e da formação da barreira de proteção antiestímulo, cujas falhas abrem caminho para o contágio orgânico-afetivo patológico na relação mãe-bebê, podendo estender-se aos relacionamentos da vida adulta e ao setting analítico, com expressão na contratransferência.

Palavras-chave: ego-realidade inicial, libido intrassomática, contágio, projeção, contratransferência


ABSTRACT

The purpose of this paper is the study of the ego functioning - initial reality (Freud, 1974d/1915), especially the functional and pathological defenses that are used by newborns to deal with instinctual demands. Among these defenses, the authors highlights projection which lies on the basis, on the origin of affection, and on the formation of the protective barrier against stimulation. Failures in this barrier open door to a pathological and organic-affective contamination in the mother-baby relationship. This contamination may extend to the relationships of adult life and to the analytic setting. In this case, it may be expressed through countertransference.

Keywords: initial ego-reality, intrasomatic libido, contamination, projection, countertransference


RESUMEN

En este trabajo se estudia el funcionamiento del ego realidad inicial (Freud, 1974/d1915), en particular las defensas funcionales y patológicas utilizadas por el recién nacido para tramitar las exigencias pulsionales, destacando la proyección, la cual se encuentra en la base del surgimiento del afecto y de la formación de la barrera de protección anti estímulo, cuyas fallas abren camino para el contagio orgánico-afectivo en la relación madre-bebé, pudiendo extenderse a las relaciones de la vida adulta y al setting analítico, con expresión en la contratransferencia.

Palabras clave: ego realidad inicial, libido intrasomática, contagio, proyección, contratransferencia


RÉSUMÉ

Dans ce travail, on étudie le fonctionnement du rapport initial moi-réalité (Freud, 1974d/1915), en particulier les défenses fonctionnelles et pathologiques employés par le nouveau-né pour transmettre les exigences pulsionnelles, tout en mettant en relief la projection qui se trouve à la base de l'apparition de l'affect et de la formation de la barrière de protection anti stimulus, dont les failles ouvrent le chemin au contagion organique-affectif pathologique sur le rapport mère-bébé, qui peut se rependre aux rapports de la vie adulte et au setting analytique, s'exprimant même dans le contre-transfert.

Mots-clés: rapport initial moi-réalité, libido intersomatique, contagion, projection, contre-transfert


 

 

O ego é, primeiro e acima de tudo, corporal.

(Sigmund Freud)

 

Introdução

A psicanálise contemporânea implica uma releitura criativa da obra de Freud, em consonância com os autores pós-freudianos e atuais, tendo em vista uma melhor compreensão do funcionamento psíquico desde os seus primórdios e a consequente inclusão na terapia psicanalítica de diversas patologias, frequentes na atualidade e cuja lógica não é a do prazer-desprazer de uma erogeneidade representada, como nas neuroses, psicoses e perversões (Freud, 1900/1972b), mas a da tensão-alívio de descargas (Freud, 1950[1895]/1977), obviamente, muito mais primitiva, como observamos nas adições, nos transtornos alimentares, nas doenças psicossomáticas, na violência vincular, na promiscuidade e em outras condições clínicas nas quais a tramitação do afeto encontra-se comprometida (Costa et al., 2015). Seguindo essa linha, objetivamos neste trabalho precisar, ampliar e integrar conceitos e desenvolvimentos teóricos a respeito do surgimento da mente a partir de um corpo dotado apenas de neurônios e quantidades, que Freud (1915/1974d) denominou de ego-realidade inicial, em particular suas defesas funcionais e patológicas, com destaque para a projeção, pela sua importância no surgimento do afeto, e para o contágio orgânico-afetivo (Maldavsky, 2015), devido a suas implicações nos relacionamentos entre a mãe e o bebê, familiares, amorosos, de amizade, profissionais e no setting analítico.

 

Desenvolvimento do ego na teoria freudiana

Freud (1911/1974c, 1915/1974d, 1925/1976d) concebeu o desenvolvimento do ego desde o nascimento em três etapas, às quais denominou de ego-realidade inicial, pré-psíquico, portanto anterior ao surgimento das zonas erógenas e relacionado com as necessidades de sobrevivência, em que predominam as pulsões de autoconservação; ego-prazerpurificado, relacionado com o desejo e a hegemonia das pulsões sexuais; e ego-realidade definitivo, relacionado com a adequação da libido à realidade numa mediação com o superego. Paralelamente, também concebeu o desenvolvimento do ego em termos de fases da libido, às quais designou como oral, anal e fálica, posteriormente subdividas. Essas fases correspondem à segunda etapa do desenvolvimento do ego, momento em que a libido atinge a periferia corporal, configurando, a partir dessa etapa, o corpo erógeno, quando se torna possível o intercâmbio do indivíduo com o mundo, mediado pelo afeto.

No que diz respeito ao ego-realidade inicial, o menos estudado, cabe destacar a importante contribuição de Maldavsky (1998), ao pesquisar uma fase inicial da libido, própria dessa etapa, que denominou de intrassomática, com base na afirmativa de Freud de que, no nascimento, "é provável que a inerva-ção, ao ser dirigida para os órgãos respiratórios, esteja preparando o caminho para a atividade dos pulmões, e, ao acelerar as pulsações do coração, esteja ajudando a manter o sangue isento de substâncias tóxicas" (1926[1925]/1976c, p. 158). Quando existe fixação a uma vivência de dor correspondente ao investimento dos órgãos internos, como nas patologias psicossomáticas, "a libido não se desloca para as zonas erógenas periféricas como caminho para estabelecer uma circulação pulsional intersubjetiva, uma vez que fica aderida ao próprio corpo" (Maldavsky, 1998, p. 233).

Mais tarde, desejos, defesas, expressões de linguagem, traços de caráter e quadros psicopatológicos próprios das falhas da etapa do ego-realidade inicial podem apresentar-se simultaneamente com manifestações relacionadas a fixações em estágios mais avançados do desenvolvimento do ego, configurando as denominadas correntes psíquicas (Freud, 1905[1901]/1972a, 1918[1914]/1976b, 1927/1974b). Esses dois universos distintos, mas por vezes concomitantes, têm segundo Freud (1926[1925]/1976c) sua ansiedade característica: automática no ego-realidade inicial, e sinal no ego-prazer purificado. A primeira como resultado da perda do calor vital, decorrente do estancamente ou da inundação libidinal, portanto orgânica, e a segunda como resultado da ameaça de castração, portanto psíquica, correspondendo, respectivamente, às patologias não representadas e às representadas simbolicamente.

 

Ego-realidade inicial: projeção inicial e surgimento do afeto

As principais defesas funcionais que visam processar as exigências das pulsões próprias do ego-realidade inicial são: a fuga dos estímulos externos (Freud, 1915/1974d, 1925/1976d), que vai permitir à criança, mais tarde, orientar-se quanto ao que é de dentro e ao que é de fora; a projeção orgânica (Freud, 1894/1976e, 1896/1976g), que coloca para fora os estímulos nocivos existentes no corpo, constituindo-se em elemento fundante da exterioridade; a desestimação do afeto, que de acordo com Freud (1918[1914]/1976b) é uma forma de opor-se ao novo; e o contágio afetivo (Freud,1893-1895/1974a), cujo objetivo é captar a vitalidade ambiental. Quando essas defesas fracassam, configurando situações tóxicas, elas se hipertrofiam e se tornam patológicas. Neste estudo, como referido inicialmente, vamos abordar a projeção orgânica e o contágio afetivo, além da relação entre ambas.

De acordo com Maldavsky (1988), Freud descreveu três formas de projeção, uma não defensiva, de origem filogenética, que se desenvolve sobre a base da empatia materna e que constitui o fundamento da espacialidade, e duas defensivas: uma normal, que objetiva retornar ao exterior o que dali proveio, com a qual se cria um contexto sensorial indiferente, e outra patológica, que pretende expulsar para fora algo que é próprio. As duas primeiras estão ligadas a Eros, e a terceira deriva de um triunfo da pulsão de morte na tendência à descomplexização estrutural. A projeção de origem filogenética apresenta uma especial relevância no estabelecimento de um vínculo empático com o ambiente ao dotar de qualificação os processos internos no encontro com o afeto materno, o que corresponde a dizer que, para o bebê sentir um afeto, é preciso que antes alguém o sinta por ele.

Esses momentos iniciais, correspondentes ao ego-realidade inicial, como destacam Neves e Hasson (1994), incluem uma harmonização de ritmos pulsionais oriundos dos diversos órgãos do recém-nascido. Sobre essa harmonização recai uma investidura narcisista, a partir da qual se desenvolve o afeto, ou seja, um bem-estar basal que, projetado, é registrado como um vínculo empático proveniente do ambiente. Inaugura-se, dessa forma, um movimento que consiste em que a cada projeção siga uma introjeção, mediante a qual o ego se reapropria do que foi projetado. Através da projeção filogenética, portanto, constroem-se as bases para o desenvolvimento dessa neoformação do aparelho mental inicial que é o afeto. Com o afeto, surge a consciência da vitalidade dos próprios processos pulsionais, por meio da qual, com a continuidade do processo de projeção-introjeção, criam-se um espaço cenestésico, as zonas erógenas periféricas e, posteriormente, um espaço sensorial externo, essência da subjetividade.

Ao mesmo tempo, nessa etapa, é relevante o caráter indiferenciado e não investido do ambiente proporcionado pela projeção defensiva normal, ao permitir que ele funcione como uma réplica dos processos quantitativos que operam no interior do corpo do recém-nascido. Por esse mecanismo, o contexto, representado principalmente pela mãe, adquire a função de um filtro que evita que os excessos pulsionais inundem o incipiente aparelho mental do bebê. A hiper ou a hipoestimulação fazem com que a mãe perca a função desintoxicante dos desbordes voluptuosos intrassomáticos do recém-nascido e não se construa uma barreira de proteção antiestímulo, a qual substitui a mãe como função placentária externa. A barreira consiste na criação de uma zona indiferente, despojada de sentir, comparável, conforme Freud (1920/1976a), à camada de células mortas da pele, na qual a pulsão de morte encontra-se a serviço de Eros. A falha na constituição da barreira de proteção antiestímulo torna o indivíduo vulnerável ao contágio afetivo dos desbordes do ambiente.

 

Ego-realidade inicial: contágio afetivo

O contágio afetivo se estabelece quando uma introjeção orgânica se combina com uma introjeção psíquica, identificatória. A primeira delas se expressa na manifestação somática, e a segunda no estado afetivo. Por conta disso, justificadamente, Maldavsky (2015) se refere ao contágio orgânico-afetivo e cita como exemplo a relação entre uma pessoa com um quadro avançado de diabetes ou de insuficiência respiratória e outra que depende do estado somático-afetivo da primeira. Nesses casos, pode ocorrer que aquele que sofre o contágio se encontre diante da tarefa de tramitar os pensamentos e os afetos do outro, que não consegue dar conta de seus próprios processos psíquicos, ao mesmo tempo que, com estranheza, perceba desenvolver-se nele os processos orgânicos e afetivos do outro. Muitas vezes, o contágio determina o surgimento de afetos e manifestações orgânicas surpreendentes para o indivíduo a partir do início de um relacionamento amoroso, o qual revela a vulnerabilidade de uma corrente psíquica que funciona como uma predisposição ao contágio.

Maldavsky (2015) diferencia quatro tipos de contágio, todos com um caráter tóxico:

• Contágio de erotização: desperta uma exacerbação da sensualidade, por vezes descarregada parcialmente através da masturbação.

• Contágio de cólera: desperta uma fúria ingovernável, podendo comprometer a musculatura, sobretudo das extremidades e da fonação.

• Contágio de apatia: desperta um estado de sonolência, que se apodera da capacidade de concentração e da motilidade das pálpebras.

• Contágio de angústia: desperta uma reação de sobressalto, que se apropria da motricidade das vísceras.

 

Manifestações do contágio orgânico-afetivo

A precariedade do seu aparelho mental para processar psiquicamente as demandas internas e externas, a fragilidade do seu sistema defensivo e a inevitável ansiedade que, por muitas razões, mobiliza em seu contexto fazem o recém-nascido tornar-se facilmente destinatário do contágio orgânico-afetivo ambiental, em particular, da própria mãe e de seus cuidadores. Por exemplo: faz parte da experiência de qualquer pediatra o surgimento de uma doença na criança. As mais comuns são as de pele, as respiratórias e as relacionadas com o trato digestivo - náusea, vômito e diarreia diante de um desborde emocional da mãe. Também é do conhecimento desses profissionais que, em muitas situações, o melhor remédio para o seu pequeno paciente é a tranquilidade da mãe, tendo em vista que a economia psicossomática do bebê abarca a vida da mãe, cuja função é contrainvestir as excitações exageradas de ambos para que se tornem suportáveis ao aparelho mental do bebê. Quando isso não ocorre, elas podem se tornar traumáticas e desorganizadoras para o recém-nascido. Somente as excitações moderadas poderão ser tramitadas pela criança nas primeiras semanas de vida, permitindo, dessa forma, a construção de um mundo representacional.

Contudo, o contágio orgânico-afetivo mãe-bebê pode perdurar por muitos anos, como no caso de Luciana, que aos 17 anos de idade foi internada num hospital psiquiátrico, em franco surto psicótico, após um atendimento domiciliar de urgência por se encontrar tentando arrombar a porta do quarto da mãe com a ameaça de matá-la. Passados poucos dias, o psiquiatra assistente constatou com surpresa que os sintomas delirantes de Luciana haviam se esbatido e que o seu funcionamento era realístico. Essa situação favorável, porém, não perdurou: logo a paciente voltou a se sentir perseguida pela mãe e a ambicionar livrar-se dela, pondo fim à sua vida. A repetição dessa experiência e a constatação de que a mãe apresentava um funcionamento psicótico e de fixação patológica na filha fizeram o psiquiatra sugerir um prolongado afastamento mãe-filha, facilitado pela mudança de Luciana para outra cidade, onde prestou vestibular e foi aprovada para o curso de medicina. Durante o curso, a mãe concordou em somente ver a filha em suas vindas mensais, ocasiões em que eram atendidas, juntas, pelo psiquiatra.

Os pais de Luciana haviam se separado quando ela tinha 4 anos e, desde então, por impedimento da mãe, praticamente não havia mais tido contato com o pai. A mãe não aceitara a iniciativa do marido de separar-se e fazia de tudo para impossibilitar o seu desimpedimento mediante sucessivos e intermináveis processos judiciais. Além disso, costumava seguir de carro o ex-marido para descobrir seus eventuais relacionamentos, levando junto Luciana para que "visse o pai traindo a mãe com outras mulheres". Um motivo bastante provável para Luciana ter tido um surto psicótico naquele momento é que se encontrava perto de completar 18 anos, quando então a mãe poderia arrolá-la como testemunha nos processos que movia contra o pai, o qual a partir da internação, por iniciativa do psiquiatra, voltou a conviver com a filha. Um fato relatado por Luciana sintetiza o verdadeiro cárcere emocional a que foi submetida pela mãe: grande parte de suas roupas de quando era criança tinha bordada a frase "Eu sou da mamãe". Por conta disso, o seu ingresso na escola foi bastante traumático, pois se tornou alvo de comentários jocosos por parte dos colegas. Com o passar do tempo, os atendimentos de Luciana ficaram mais espaçados, até serem interrompidos quando estava para concluir o curso de medicina e viajar para uma cidade do centro do país, a fim de fazer uma especialização em cirurgia plástica reparadora. Cerca de cinco anos mais tarde, o psiquiatra recebeu um telefonema de Luciana, que voltara para acompanhar a mãe, hospitalizada devido a um estado hipertensivo grave. Após alguns dias, a mãe veio a falecer. Apesar da tristeza pela perda, aparentemente Luciana se encontrava bastante bem e ia retornar à cidade em que fizera a especialização para ali se estabelecer profissionalmente.

Como foi dito, o contágio orgânico-afetivo também pode ocorrer em outras situações, incluindo a relação paciente-analista, com expressão na con-tratransferência. No contágio de apatia, por exemplo, é comum que, em alguns casos, o analista, sem se dar conta, entre num estado letárgico incontrolável e, em outros, apresente uma atitude reativa, visando contagiar o paciente com a sua energia, podendo, nessas circunstâncias, tornar-se excessivamente intolerante e agressivo. Na verdade, manifestações orgânicas e afetivas eventuais são comuns na experiência de qualquer analista que trabalhe profundamente com seus pacientes. Situações prolongadas com um mesmo paciente, contudo, enfatizam a existência de pontos vulneráveis na estrutura psíquica do analista, decorrentes de sua própria história. Nesse contexto, a indicação é a supervisão do caso com um profissional mais experiente e até mesmo uma reanálise.

Como faz Garcia (1998), cabe destacar que, em casos com falhas na estruturação do ego-realidade inicial, a transferência não se faz com o analista na condição de objeto de desejo, mas na condição de objeto de necessidade, uma vez que o paciente não dispõe de capacidade de simbolizar. Devemos ter presente que, eventualmente, o contágio orgânico-afetivo no setting analítico representa o único caminho de que o paciente dispõe para processar vivências impensáveis e impossíveis de transmitir verbalmente.

 

Comentários finais

Freud alude ao contágio psíquico em quatro de suas obras, a saber: Estudos sobre a histeria (1893-1895/1974a), A interpretação dos sonhos (1900/1972b), Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901/1976j) e Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1976i). Foi, porém, em 1921, numa apresentação a seus seguidores mais chegados, que Freud, embora temeroso e hesitante, dedicouse ao tema dos fenômenos de transferência de pensamento de uma pessoa para outra. Diz Freud nesse texto, publicado postumamente sob o título de "Psicanálise e telepatia": "Não mais parece possível manter-se afastado do estudo daqueles fenômenos que parecem revelar a existência de faculdades mentais até aqui não reconhecidas. O ímpeto no sentido dessa investigação parece irresistivelmente forte" (1941[1921]/1976h, p. 271).1

Em relação aos adivinhos, que muitas vezes, com pouca ou nenhuma informação, são capazes de surpreender os consulentes pela sua precisão, destaca Freud, nesse artigo, que devemos admitir a possibilidade de o conhecimento ter sido transferido a eles por meio de uma comunicação não convencional. Ele sugere que os adivinhos desviam as próprias forças psíquicas a fim de que sua mente se torne disponível para receber o pensamento do consulente, o qual é alguém que, com o auxílio de uma segunda pessoa, consegue encontrar expressão para um desejo extraordinariamente poderoso, que ele considera proibido ou difícil de alcançar. Essa hipótese nos leva a pensar numa relação do contágio psíquico com os desejos, como enfatiza Freud no citado artigo. No que diz respeito ao contágio orgânico-afetivo, tema deste estudo, o caminho parece ser o mesmo. Contudo, ele expressa uma demanda mais primitiva, mais uma necessidade do que um desejo - o universo, portanto, do ego-realidade inicial, cujas consequências, como procuramos evidenciar, são bem mais graves, podendo determinar o surgimento não só de estados afetivos, mas também de sintomas e enfermidades físicas em um largo espectro de relacionamentos, a começar pelo da mãe com o bebê, estendendo-se na vida adulta aos vínculos amorosos, de amizade e profissionais, e ainda ao setting analítico.

 

Referências

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Recebido em 28/9/2016
Aceito em 4/5/2018

 

 

1 Sobre esse tema, Freud escreveu posteriormente "Sonhos e telepatia" (1922/1976k) e "Sonhos e ocultismo", a 30.ª das Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933[1932]/1976f).

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