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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O conceito de self em Heinz Kohut

 

Kohut's concept of the self

 

El concepto de self en Heinz Kohut

 

Le concept de self chez Heinz Kohut

 

 

Monia Karine AzevedoI; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoII

IPsicóloga, mestranda em psicologia pela Universidade Estadual do Paraná
IIPsicólogo, com pós-doutorado em psicanálise pela Universidade de Paris 7. Professor da Universidade Estadual de Maringá

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo expor e analisar a ideia de self na psicologia psicanalítica do self, de Heinz Kohut. Para isso, vamos apresentar as duas fases da concepção de self existentes na obra do autor - a saber, self no sentido restrito, anterior a 1975, e self no sentido amplo, posterior a essa data -, levantando questionamentos e discutindo os textos do autor. Afirmamos que existe, na teoria kohu-tiana, uma definição fenoménica e outra metapsicológica para o self. Enquanto a primeira permanece relativamente constante em toda a obra do autor, a definição metapsicológica sofre alterações. Quando o self é concebido num sentido restrito, ele é considerado um conteúdo das instâncias psíquicas; já depois de 1975 passa a ser visto como uma estrutura supraordenada, independente dessas instâncias. Nesse último momento, o modelo metapsicológico proposto por Freud torna-se menos importante para Kohut, que rompe com a teoria que chama de clássica.

Palavras-chave: self, Kohut, narcisismo


ABSTRACT

The purpose of this article is to expose and analyze the idea of self in Heinz Kohut's psychoanalytic psychology of the self. To this end, we shall explain the two phases of the conception of self that exist in his work - that is, self in the narrow sense, before 1975, and, after this time, self in the broad sense. We raise some issues and discuss Kohut's writings. In his theory, we conclude, there are two definitions of self: one is phenomenic, and the other is metapsychological. While the first remains relatively constant throughout Kohut's work, the metapsychological definition changes. When the self is conceived in a narrow sense, it is considered a content of mental levels or stages. After 1975, however, he sees the self as a superordinate structure, which does not depend on these levels or stages. Finally, Freud's metapsychological model becomes less important to Kohut, who breaks with the theory he calls classical.

Keywords: self, Kohut, narcissism


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo exponer y analizar la idea de self en la psicología psicoanalítica del self, de Heinz Kohut. Con este fin, vamos a presentar las dos etapas de la concepción de self existentes en la obra del autor - a saber, self en el sentido estricto, antes de 1975, y self en un sentido amplio, después de esta fecha -, planteando preguntas y discutiendo textos del autor. Afirmamos que existe, en la teoría de Kohut, una definición fenoménica y otra metapsicológica para el self. Mientras la primera se mantiene relativamente constante durante todo el trabajo de Kohut, la definición metapsicológica sufre alteraciones. Cuando el self se concibe en un sentido estricto, se considera un contenido de las instancias psíquicas; a partir de 1975, por otro lado, se ve como una estructura supraordenada, independiente de estas instancias. En este último momento, el modelo metapsicológico propuesto por Freud se vuelve menos importante para Kohut, que rompe con la teoría que él llama clásica.

Palabras clave: self, Kohut, narcisismo


RÉSUMÉ

Le présent article a pour but d'exposer et analyser l'idée de self chez la psychologie psychanalytique du self, de Heinz Kohut. Pour ce faire, on exposera les deux phases de la conception de self existantes dans son oeuvre - à savoir, self dans le sens strict, avant 1975, et self dans le sens large, après cette date -, toute en posant des questionnements et en discutant les textes de l'auteur. Nous affirmons qu'il existe dans la théorie kohutienne une définition phénoménique et l'autre métapsychologique pour le self. Pendant que la première reste relativement constante au cours de toute l'oeuvre de l'auteur, la définition métapsychologique soufre des altérations. Lorsque le self est conçu dans un sens strict, il est considéré un contenu des instances psychiques; d'autre côté, après 1975 il commence à être vu comme une structure superordonnée, indépendante de ces instances. A ce moment-là, le modèle métapsychologique proposé par Freud devient moins important pour Kohut, qui rompt avec la théorie qu'il appelle classique.

Mots-clés: self, Kohut, narcissisme


 

 

A teoria e a prática psicanalíticas propostas por Freud desenvolveram-se em torno da neurose. É evidente que Freud reconhecia formas não neuróticas de constituição, porém entendia que elas não eram o foco do tratamento psicanalítico (Green, 2012). A contribuição de muitos autores pós-freudianos deu-se na ampliação da teoria psicanalítica para aqueles sujeitos considerados até então não analisáveis, com psicoses, neuroses atuais e neuroses narcísicas. Segundo Roudinesco e Plon (1998), na década de 1960 houve uma extensão do consultório para pacientes com graves falhas no desenvolvimento identitário, conhecidos de forma mais geral como borderlines. Kohut foi um dos teóricos que se debruçaram sobre esse último tópico.

A teoria kohutiana, de acordo com Ornstein (2011b), tem sua origem em insatisfações do autor com as teorias existentes, mais especificamente a freudiana (por ele chamada de clássica ou tradicional) e a da psicologia do ego. Kohut (1977/2009b) dizia deparar-se, na clínica, com pacientes que exibiam queixas que não eram, de fato, explicáveis pelo arcabouço teórico existente, isto é, que não apresentavam conflitos neuróticos - pacientes com baixa autoestima, bastante vulneráveis e suscetíveis a críticas, falhas e desapontamentos. Esses pacientes traziam na transferência uma busca por empatia e reafirmação, não uma repetição de conflitos reprimidos, como nas neuroses. Por entender que as teorias existentes não davam conta de elucidar o que encontrava nesses pacientes - pois nem explicavam suas queixas nem lhes propiciavam um tratamento efetivo -, Kohut (1971/2009a) pôs-se a investigar esses sujeitos que lhe vinham à clínica a partir das experiências de transferência.

Com o desenvolvimento de seu trabalho, Kohut (1980/2011h) passou a defender a ideia de que tais pacientes tinham falhas de constituição do self. O autor afirmava que os pacientes neuróticos, aqueles a que Freud se dedicou, por exemplo, apresentavam falhas mais tardias, ou seja, na elaboração do complexo de Édipo, enquanto nos pacientes que acompanhava estas eram mais precoces, pré-edípicas. Kohut (1981/2011d) entendia que a personalidade investigada por Freud o levou a propor um modelo baseado no conflito estrutural; já a personalidade desses outros sujeitos não seria caracterizada por essa divisão, mas seria produto de um self multifragmentado e desarmônico. O conceito de self mostra-se, assim, indispensável para compreender esses sujeitos, que já não são explicáveis pelo modelo de conflitos inconscientes.

O termo self foi utilizado pela primeira vez em um contexto psicana-lítico por Freud. Contudo, de acordo com Mijolla (2002), havia um conflito entre os significados que Freud atribuíra a self e a outro conceito, ego. Freud teria usado a palavra ego (Ich) para designar a parte organizada do psiquis-mo e também a pessoa como um todo. Depois de 1923, quando diferenciou os componentes do aparelho psíquico (id, ego e superego) em O ego e o id (1996a), o criador da psicanálise passou a utilizar o termo ego como instância psíquica. Uma vez que self também teria sido utilizado para referir-se à pessoa como um todo, haveria um conflito terminológico com uma das acepções de ego. Segundo Ramos (2001), Hartmann teria observado isso na obra de Freud e proposto uma diferenciação no uso dos termos: self para se referir à pessoa como um todo, e ego para fazer menção à instância psíquica reguladora das tensões.

Self surge nos textos de Kohut no terceiro período de sua produção, entre 1966 e 1977. A princípio, o autor não traz uma definição para self, o que possivelmente ocorre porque o conceito teria sido emprestado de Hartmann; por essa razão, Kohut talvez dispensasse definições (Ramos, 2001). Mais tarde, porém, ao comentar um artigo de D. C. Levin, o autor observa que o self seria "o sentimento seguro de uma pessoa de ser uma unidade bem delimitada, isto é, sua concepção clara de quem é" (1970/2011a, p. 587).1 Outras definições surgem em "On the adolescent process as a transformation of the self", em que o autor afirma que o self seria "o 'eu' de nossas percepções, pensamentos e ações" (1972/2011e, p. 659),2 e em The restoration of the self (1977/2009b), em que self aparece como a nossa sensação de ser uma unidade, espacial e temporalmente.

Com relação à metapsicologia, Kohut não apresenta uma compreensão única do início ao fim de sua produção. Paul Ornstein (2011a) diz que o entendimento do conceito passou por três fases. As duas primeiras trariam uma concepção dita restrita de self e estariam presentes nos trabalhos do período entre 1966 e 1972. Nelas, o self seria compreendido como um conteúdo do aparelho psíquico, tal qual proposto por Hartmann. A diferença entre uma e outra fase é que, na segunda, começam a surgir maiores tentativas de definição de self e discussões que levam, posteriormente, a uma nova significação do termo. A terceira fase traria o self como central ao psiquismo, o self no sentido amplo, e abrangeria trabalhos posteriores a 1975, quando a psicologia do self passa a tomar corpo. Nessa fase, o self seria compreendido como o centro de todo o funcionamento psíquico, e não mais apenas como um conteúdo do aparelho mental.

Este artigo tem por objetivo expor o conceito de self segundo a psicologia psicanalítica do self de Heinz Kohut. Para isso, buscaremos elucidar a concepção de self em dois momentos de sua teoria: o self no sentido restrito e o self no sentido amplo.

 

O self no sentido restrito

A concepção de self no sentido restrito abrange a produção de Heinz Kohut entre os anos de 1966 e 1972, e pertence ao que Ornstein (2011a) denominou terceiro período da obra do autor. O criador da psicologia do self oferece uma definição para o que seria o self no sentido restrito em 1970, quando o demarca como um conteúdo ou uma estrutura no aparelho psíquico que apresenta continuidade no tempo. Apesar de Kohut conceituar o self como uma estrutura, ele não lhe atribui um sentido equivalente ao de ego, id ou superego; o self não é considerado por ele um componente do aparelho psíquico, tal qual o ego, o id e o superego. Kohut (1970/2011a) ressalta que até mesmo um traço de memória pode ser visto como uma estrutura, e é nesse sentido de estrutura que o self deve ser entendido. Pensar o self como conteúdo também é possível. Ele seria equivalente ao que uma representação de objeto é para o psiquismo: uma imago.

A formação do self: fragmentação e coesão

Uma das questões que nos chamam a atenção diz respeito à formação do self: como ele se estabeleceria? Em The analysis of the self (1971/2009a), encontramos algumas informações que nos levam a pensar na existência de dois momentos na formação do self: um primeiro, que pode ser denominado self fragmentado, e um segundo, chamado self coeso.

Kohut (1971/2009a) fala de um estágio do self fragmentado ou corpo-self fragmentado, que seria anterior à formação de um self propriamente dito. Nesse momento primitivo da existência, o self seria constituído de partes corporais ou funções mentais individuais. Segundo o autor, essa etapa poderia ser equiparada ao estágio de autoerotismo proposto por Freud, em que a libido estaria investida em partes corporais ainda não unificadas. O self, portanto, seria aqui as partes e funções investidas e ainda sem uma concepção de pertencerem a um mesmo conjunto.

Uma etapa seguinte, de acordo com Kohut (1971/2009a), seria quando essas partes corporais e funções mentais se amalgamassem, formando uma unidade. Com a formação dessa unidade, a libido estaria investida em um conjunto, não mais em partes. Isso seria equivalente ao que Freud denominou narcisismo (Kohut, 1970/2011a). Esse seria o estágio do self coeso ou corpo-self coeso, ou ainda estágio do narcisismo.

A experiência de coesão do self é a fonte do sentido de realidade do self, ou seja, um self coeso faz com que o indivíduo se perceba como real, como uma unidade, e por conseguinte experiencie o bem-estar subjetivo (Kohut, 1970/2011a). Ornstein (2011b) diz que a coesão implica o sujeito vivenciar o senso de continuidade no tempo e no espaço, isto é, sentir que seu corpo e suas funções pertencem a um mesmo conjunto, e que as ações, os pensamentos, os sentimentos etc. mantêm-se constantes ao longo do tempo.

No estágio do self coeso, podemos identificar dois momentos do self: um arcaico e outro maduro. Apesar de no estágio do self coeso o self já se apresentar, segundo Kohut (1971/2009a), como uma unidade que pode ser investida, e não mais como fragmentos de corpo e de funções mentais, esse self ainda precisa evoluir de uma configuração arcaica para outra, em que se organiza de forma madura. Kohut não traz definições precisas de cada um desses momentos do self, mas pelos escritos do autor sobre o self grandioso e a imago parental idealizada (que veremos adiante) é possível inferir que um self arcaico seria aquele que ainda se encontra indiferenciado do mundo e que se acredita onipotente.

Quanto à indiferenciação do self rudimentar com o mundo (ou os objetos), Kohut (1971/2009a) nos diz que o self pode perceber o objeto tanto como sua extensão quanto como um objeto independente. Kohut denomina selfobjetos3 aqueles objetos percebidos como parte do self, e objetos verdadeiros (true objects) aqueles reconhecidos como independentes e autônomos. Na etapa arcaica do self, os objetos são tomados por ele apenas como um componente de si. O reconhecimento de objetos autônomos e independentes é uma aquisição paulatina, que culmina em um self maduro. Cabe ressaltar que Kohut diz que mesmo um self maduro sempre manterá uma relação com os objetos como sua extensão, ou seja, sempre os vivenciará, em certa medida, como selfobjetos. A diferença entre o self arcaico e o maduro é que o primeiro ainda não consegue conceber objetos independentes de si.

Quanto à percepção irreal sobre si, esse self ainda in statu nascendi defende-se contra o perigo de desintegração supervalorizando-se, e por essa razão atribui a si mesmo poder e conhecimento irreal. Seria, de acordo com Kohut (1971/2009a), um self grandioso e exibicionista. Trataremos disso com mais detalhes a seguir.

Narcisismo primário

A compreensão kohutiana do narcisismo primário é outro ponto a ser discutido. Apesar de o autor não usar essa terminologia muitas vezes ao longo de seu trabalho, é essencial compreender a que se refere para prosseguir a discussão sobre o self.

A nomenclatura narcisismo primário provém de Freud. Em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/1996b), ele diz que o investimento libidinal do ego poderia acontecer em dois momentos: a princípio, em uma fase normal do desenvolvimento, que chamou de narcisismo primário; depois, como uma forma defensiva, e por vezes patológica, de retorno da libido já investida em objetos para o ego, que chamou de narcisismo secundário.

Kohut refere-se ao narcisismo primário como um estágio em que "o bebê originalmente experiencia a mãe e seus cuidados não como um outro e suas ações, mas dentro de uma visão de mundo em que a diferenciação eu-outro ainda não foi estabelecida" (1966/2011c, p. 430).4 Nesse momento inicial da existência, o mundo e o que o compõe não são percebidos como autônomos e independentes do sujeito (como objetos), mas como partes dele (selfobjetos). É um estado ideal, sem frustrações, em que reinam sentimentos de completude e equilíbrio. O autor, porém, fala de uma perturbação desse estado de narcisismo primário pelas frustrações que o eu experimenta devido às constantes falhas no cuidado - a mãe que não consegue, naturalmente, estar em absoluta sintonia com as demandas.

Segundo Kohut (1966/2011c), essas falhas da mãe fariam o bebê vivenciar um estado de tensão psíquica. Para manter o estado de completude primária, possivelmente em razão de uma angústia intolerável, ele lança mão de alguns recursos para contornar as frustrações. Vejamos quais são.

Imago parental idealizada e self grand¡oso

Kohut (1966/2011c, 1968/2011f) acreditava que, na tentativa de manter o estado de perfeição original e assim não romper o equilíbrio narcísico, o psi-quismo idealiza um "outro"5 onipotente e perfeito, capaz de lhe proporcionar sentimentos de satisfação e completude. O autor denominou esse artifício do psiquismo de imago parental idealizada.

A criança, segundo Kohut (1968/2011f, 1971/2009a), cria essa imagem de perfeição atribuindo todo o poder e satisfação a esse outro/selfobjeto arcaico. Logo, o infante precisa manter-se unido a esse selfobjeto arcaico onipotente para alcançar gratificação e não experimentar o vazio e a fragilidade a que está entregue. Quando se experiencia como parte do selfobjeto idealizado, a criança tem um senso de bem-estar e de ser completa. Cabe dizer que o adulto deve corresponder a essa idealização, oferecendo os cuidados necessários, e também permitir que a criança mantenha uma fusão (merge) consigo, para assim poder experimentar as ações do selfobjeto como parte de si.

Apesar de a idealização ser inicialmente necessária para a criança dar conta das frustrações que se apresentam, Kohut (1968/2011f, 1971/2009a) observa que, como parte normal do processo, essa imagem idealizada vai aos poucos sendo desmistificada pelas inerentes falhas do selfobjeto. Identificamos que o processo de desmistificação do selfobjeto encontra dois desfechos: um saudável, outro nem tanto.

No primeiro desfecho, o outro idealizado vai gradualmente apresentando à criança frustrações. Nesse caso, de acordo com Kohut (1968/2011f), o outro se esforça por (e tem condições de) suprir as demandas da criança, para expô-la a frustrações somente de acordo com o que ela pode tolerar em cada etapa de seu desenvolvimento. Dessa forma, a frustração anda pari passu com a maturação e o desenvolvimento do aparelho cognitivo da criança. A isso Kohut chamou de frustração ótima (optimal frustration). Em tais condições, pouco a pouco, a criança adquire meios de suportar as frustrações.

Nessa situação ideal, quando a criança se depara com as frustrações, ela vai tomando para si as funções desempenhadas pelo outro a fim de buscar gratificação, o que Kohut (1968/2011f) chama de internalizações transmutadoras (transmuting internalizations). Ao tomar para si funções do outro, a criança vai paulatinamente desinvestindo a imago parental idealizada e constituindo uma estrutura reguladora das pulsões, o ego.

Outro desfecho apresenta-se quando a criança experimenta frustrações excessivas. Nesse caso, as estruturas internas - ego e superego - podem não se formar adequadamente, fazendo com que o sujeito fique dependente dos objetos para realizar as funções que caberiam a seu aparelho psíquico. Logo, esses objetos não são amados, mas necessários para realizar as funções que não podem ser adequadamente desempenhadas pelo, agora, adulto (Kohut, 1968/2011f).

As próprias questões narcísicas dos pais favorecem ou não o desfecho considerado saudável por Kohut. O autor propõe que uma mãe autocentrada pode projetar na criança suas próprias necessidades, tensões e humores, responder de forma exagerada a algumas demandas, de acordo com suas próprias falhas narcísicas, ou mesmo deixar de responder a essas demandas por estar preocupada com as próprias demandas, em vez de empaticamente conectada com a criança. Todas essas possibilidades, que Kohut denomina respectivamente empatia defeituosa, empatia exagerada e falta de empatia, expressam falhas empáticas da mãe (Kohut, 1971/2009a).

Além da formação de uma imago parental idealizada, Kohut (1966/2011c) diz que outra forma, concomitante à anterior, que o psiquismo arcaico desenvolve para lidar com a perda do estado de perfeição narcísica primária é atribuir ao self arcaico a onipotência, a onisciência e a perfeição, e ao "externo" a imperfeição. O psiquismo cria então uma imagem grandiosa do self, o self grandioso.

Segundo Kohut (1971/2009a), diante desse recurso de autoatribuição de onipotência e perfeição da criança, é necessário que o outro exerça uma função de espelhamento (mirroring) para que o psiquismo possa desenvolverse e constituir um self maduro.

Entendemos que o espelhamento, para Kohut, consiste em dois momentos diferentes: um de aceitação incondicional e outro de respostas mais seletivas. Num primeiro momento, seria uma espécie de confirmação da mãe das satisfações narcísicas exibicionistas da criança, ou seja, a mãe participaria das satisfações da criança reconhecendo-as e estimulando-as, dessa forma fortalecendo a autoestima do infante. Kohut (1971/2009a) afirma que seria o brilho nos olhos da mãe, isto é, o deleite e a aceitação dela, que confirmaria o self arcaico da criança. Posteriormente, a mãe ofereceria respostas mais seletivas aos deleites e exibicionismos da criança. Diz Kohut que, gradativamente, é necessário que o sujeito seja também frustrado, que entre em contato com suas reais habilidades e qualidades e que não fique para sempre preso em uma fantasia de grandiosidade.

Kohut (1971/2009a) observa que, quando a criança é apresentada prematuramente - ou seja, antes que seu aparelho cognitivo esteja preparado para tal - às suas limitações e incapacidades, ou quando essa apresentação ocorre de forma traumática, o self encontra dificuldades em constituir-se realistica-mente. Por outro lado, quando o outro não auxilia a criança a perceber-se de forma realista, ela não é limitada nem posta realisticamente diante de suas capacidades e limitações, e acaba por criar um self fantasioso, não realista.

Self saudável e patológico

De acordo com o que foi exposto, podemos concluir que o self arcaico é uma unidade coesa, caracterizada pela percepção de união com um outro onipotente e pelas fantasias de onipotência atribuídas ao self, respectivamente a imago parental idealizada e o self grandioso. O self maduro, por sua vez, é oriundo da gradativa desmistificação do self arcaico, que passa a ter condições de perceber que o objeto não faz parte do self, mas é independente (é um objeto verdadeiro), e de adquirir para si as funções do objeto que antes idealizava. O self maduro também é produto da diminuição das fantasias a respeito do self - ele se torna mais realista.

Ao desenvolver um self maduro, a criança começa a aceitar suas limitações e a abrir mão de suas fantasias grandiosas e exibicionistas. O self grandioso integra-se ao ego e faz com que as fantasias sejam substituídas por propósitos e objetivos. Dessa forma, o indivíduo pode experimentar satisfação com as atividades que desenvolve e os sucessos que logra, além de autoestima positiva e autoconfiança. O selfobjeto idealizado é internalizado, constituindo as estruturas de controle e canalização do ego. Também forma o superego, o qual se torna uma fonte de liderança interna, que oferece um senso de direção e guia as atividades a serem desenvolvidas. Fornece ainda admiração madura pelos outros e entusiasmo (Kohut, 1971/2009a).

As formas patológicas de estabelecimento do self são decorrentes da permanência ou do retorno a constituições arcaicas e à fragmentação. Na primeira situação, a criança não receberia da mãe condições para o fortalecimento inicial e necessário do seu self arcaico, que permitiriam a ela desenvolver um self maduro, coeso, fortalecido e resistente à fragmentação (Kohut, 1971/2009a). Na segunda situação, ocorreriam retornos à vivência de um self fragmentado, em que partes corporais e funções mentais não estariam interligadas.

Kohut apresenta uma descrição usada por um paciente que experiencia-va fragmentação:

Sentia como se os lábios fossem "estranhos", por exemplo; seu corpo tornara-se "alheio" a ele; seus pensamentos agora são "estranhos" etc. - todos termos que expressam o fato de que mudanças regressivas estão, em essência, fora da organização psíquica do paciente. (1971/2009a, p. 30)6

A suscetibilidade à fragmentação do self, segundo Kohut (1970/2011a), dependerá da coesão desse self. Quanto mais coeso, menores são as possibilidades de fragmentação. O autor também diz que distúrbios na consolidação do self predisporiam à fragmentação dessa estrutura sob estresse, e que as psicoses e os transtornos borderline seriam exemplos de organização em que o self estaria fragmentado.

Kohut (1972/2011e) fala de acontecimentos e de etapas do desenvolvimento em que o self ficaria mais suscetível à fragmentação. Por exemplo, o que Erik Erikson denominou crise de identidade seria uma etapa do desenvolvimento em que o self, na realidade, estaria suscetível à fragmentação pelas pressões do crescimento. Além disso, Kohut aponta que a mudança de cultura também poderia ser desencadeadora de fragmentação, caso o self não tenha estabelecido uma coesão consistente.

 

O self no sentido amplo

Até esse ponto, o que Kohut defendia eram adaptações da teoria das pulsões para abarcar o self. Ele mantinha a constituição psíquica proposta pela psicanálise freudiana - com id, ego e superego - e considerava o self um conteúdo das agências psíquicas, ou seja, o self consistia em representações ou imagos contidas no id, no ego e no superego. O autor ainda vinculava o self à teoria libidinal, entendendo que o self também seria investido e que os conflitos nas representações de si mesmo que tais pacientes apresentavam decorriam de uma fragilidade de investimento libidinal nessas representações, isto é, de pouco investimento no self, o que levaria a uma constituição vulnerável dele, com a consequente experiência de baixa autoestima e a busca por aprovação. Essa concepção de self é entendida como o self no sentido restrito, o self como conteúdo do aparelho psíquico, e é sustentada por Kohut até 1975.

Contudo, o autor ultrapassa essa sua ideia inicial de self: a partir de 1975, oferece uma visão diferente deste e de seus conflitos; passa a considerar o self o centro do funcionamento psíquico, uma estrutura supraordenada e independente das agências psíquicas. A seguir, buscaremos esclarecer essa nova concepção.

Self: um desenvolvimento independente

As ideias que dão início à discussão de uma nova concepção de self - self no sentido amplo - na obra de Kohut surgem no texto "Remarks about the formation of the self" (1975/2011g). Nele, Kohut questiona sua proposta anterior, de que a origem do self estaria na unificação da experiência de partes corporais e funções mentais, e traz uma nova perspectiva: a de um self independente.

Como dito, na primeira fase de sua compreensão de self - self no sentido restrito - Kohut propôs que este se formaria pela união das partes do self fragmentado, ou seja, das partes corporais e funções mentais separadas. No artigo de 1975, porém, o autor começa a questionar a ideia de coalescência de partes na formação do self. Ele afirma que haveria poucas evidências para pensar em um self oriundo da junção dessas partes. Acredita que faria mais sentido pensar que essas partes e funções mentais separadas pertenceriam a outro âmbito do desenvolvimento psíquico que não o do self, e que o self teria um desenvolvimento independente desses elementos fragmentados.

Quanto às partes corporais e funções mentais, se antes Kohut as considerava constituintes de um self fragmentado, agora ele pensa que pertencem a outra linha de desenvolvimento, a das pulsões. O autor diz que o desenvolvimento dessas partes e funções foi bastante elaborado por Freud quando este tratou de zonas erógenas - oral, anal, fálica e genital - e da busca pelo prazer por meio delas. Essas partes corporais e funções mentais são inicialmente investidas de libido, e tal etapa é o que Freud denominava autoerotismo. Depois, as partes corporais passam a ser reconhecidas como interrelacionadas espacialmente, e as funções como atuando de forma cooperada. Quando percebidas de maneira coordenada e unitária e investidas libidinalmente como um conjunto, já estão em outra etapa, o narcisismo. O investimento de partes e funções e o prazer oriundo destas ainda existirão, apesar da percepção delas como unidas. Na verdade, esse prazer é experienciado de forma aumentada por causa da segurança de haver uma totalidade. Embora tais partes corporais e funções físicas e mentais não sejam mais tomadas como formadoras do self, elas são, segundo Kohut (1975/2011g), incorporadas a ele. Elas se desenvolveriam em separado do self, mas em determinado momento se relacionariam à experiência do self coeso, tornando-se parte dele.

A respeito do self, Kohut (1975/2011g) diz, então, que ele não se originaria da junção de partes, mas que, desde sua origem, já se apresentaria como uma totalidade, mesmo que rudimentar. Isso nos leva a crer que ele deixa de considerar a existência de um self fragmentado precursor de um self coeso/unitário. Kohut afirma que o self se formaria de modo independente das pulsões, do ego, do id e do superego; ele não seria regulado pelas regras do princípio do prazer nem seria o conteúdo de uma agência psíquica, ou mesmo uma agência psíquica. A formação e o desenvolvimento do self estariam além do princípio do prazer. O autor usa a expressão que dá título a uma obra de Freud para referir-se ao self, porém não com o mesmo sentido. Freud empregava essa expressão para falar da compulsão à repetição e da pulsão de morte, que funcionariam em um processo anterior ao princípio do prazer. O que Kohut quer dizer com ela, porém, é que o self funcionaria de forma independente das pulsões. O autor ainda brinca com outro título de uma obra de Freud, quando diz que o que está além do princípio do prazer é o self e suas vicissitudes.

Ao atribuir ao self e às pulsões linhas de desenvolvimento independentes, Kohut nos faz levantar duas questões: qual a relação entre as pulsões e o self? Como se origina e se forma o self? Vejamos, primeiro, um pouco mais sobre como o autor concebe, nessa fase, a formação do self.

Origem e desenvolvimento do self: o self bipolar

Na fase do self no sentido restrito, compreendemos que o self existiria a princípio de forma fragmentada, evoluindo para uma forma arcaica e coesa, e alcançando, por fim, uma conformação madura. Se agora, nessa nova ideia de self, ele não seria mais vivenciado de forma fragmentada, seria ele expe-rienciado já de forma coesa pelo neonato ou o recém-nascido nem mesmo apresentaria self? Como se originaria e se desenvolveria o self de acordo com as novas concepções?

Quando Kohut propõe que o self é, desde sua origem, coeso, isso não implica necessariamente dizer que ele está presente desde o nascimento. Sobre o self estar ou não presente no neonato, em "The disorders of the self and their treatment", Kohut declara: "estritamente falando, o neonato ainda não tem self' (1978/2011b, p. 366).7 Assim, mesmo a forma mais rudimentar do self ainda não estaria presente desde o nascimento.

Nesse mesmo texto, Kohut nos fala do processo de formação do self. Para o autor, o self sofre um processo de desenvolvimento até consolidar-se e lograr uma posição supraordenada no psiquismo. Em The restoration of the self (1977/2009b), ele afirma que o self seria composto de um núcleo e de mais um elemento executivo.

O núcleo do self, ou self nuclear, combinaria um núcleo de ambições e outro de idealizações, que seriam fruto, respectivamente, das respostas parentais ao self grandioso e à imago parental idealizada. Diz Kohut (1977/2009b) que esses dois núcleos formariam dois polos separados, que criariam entre si uma espécie de arco de tensão - como que uma energia propulsora, que emergiria da tensão dos dois polos. Da tensão existente entre os dois polos do self, desenvolve-se o elemento executivo do self: as habilidades e os talentos. O elemento executivo realiza as ambições e os ideais dos dois polos. É por essa forma de configuração do self que Kohut lhe atribuiu a denominação self bipolar.

Apesar de serem três os constituintes do self - núcleo grandioso e exibicionista, núcleo da imago parental idealizada, e talentos e habilidades -, a existência de um self consolidado não depende da presença de cada um dos núcleos, mas sim do estabelecimento do arco de tensão entre os núcleos das ambições e dos ideais, e do decorrente desenvolvimento do elemento executivo.

Kohut (1977/2009b) acrescenta que a criança teria duas chances de consolidar o seu self, as quais estariam ligadas ao estabelecimento do polo exibicionista e grandioso do self e do polo da imago parental idealizada. Cada um desses constituintes poderia remediar a falha do outro e assim manter a coesão do self. O resultado esperado de todo esse processo é um self coeso e consolidado, que é o que faz o indivíduo experienciar a sensação de continuidade, de unidade do corpo e da mente e de invariabilidade ao longo do tempo. Além do mais, esse self se estabeleceria como um centro de iniciativa, que buscaria, durante a vida, a realização dos ideais e ambições que o constituem (Kohut, 1977/2009b).

Self e pulsões: inter-relações

Outra questão que levantamos para discussão diz respeito à relação entre o self e as pulsões, visto que Kohut (1975/2011g, 1977/2009b) propõe que se desenvolvem de forma independente. Nesse âmbito, focalizaremos dois pontos: a experiência pulsional como anterior à existência do self e a tomada do self como uma estrutura supraordenada. Vejamos o primeiro ponto.

Discutimos que o self e as pulsões têm linhas de desenvolvimento separadas, e também que o self não é uma estrutura inata, mas construída na relação com o selfobjeto. Além disso, as pulsões, segundo Kohut (1975/2011g), já estariam em atividade antes da formação do self. Essas pulsões seriam aquelas não integradas, experienciadas por meio das partes do corpo e das funções mentais individuais.

Nesse momento bastante inicial do desenvolvimento psíquico, o psiquismo seria regido pelas pulsões, pela experiência de prazer e desprazer experimentada pelas partes corporais e mentais vivenciadas em separado, como não pertencentes a um todo. Num segundo momento, com a formação e a consolidação do self, essas pulsões passariam a ser integradas a uma unidade, o self. As experiências de prazer em partes corporais e funções mentais continuam a existir, mas como parte do self. Essa incorporação das partes ao self, contudo, só é possível quando o self de fato consegue estabelecer-se como estrutura bipolar.

Sobre o segundo ponto, a tomada do self como estrutura supraordenada, além de propor que o self se desenvolveria de forma independente das pulsões e que as pulsões antecederiam a existência de um self, Kohut ainda afirma que o self seria uma estrutura supraordenada, ou seja, depois de formado e fortalecido funcionaria acima das partes e funções individuais. Isso quer dizer que, quando o self é fortalecido e bem constituído, quando se dá uma formação adequada do self, é ele quem direciona o funcionamento psíquico do indivíduo. O indivíduo se voltaria para a busca da autorrealização, levado por seus ideais e ambições. Assim, de acordo com Kohut (1975/2011g), é o self, e não as pulsões, que dita as regras quando é bem constituído.

O predomínio das pulsões sexuais isoladas, enquanto fixações, se daria apenas quando o self não conseguisse se estabelecer (Kohut, 1977/2009b). Quando isso ocorre, por não constituir um self maduro, que assumiria uma posição central no psiquismo e levaria à busca da autorrealização, o sujeito retornaria a uma busca de satisfação pulsional, que regeria o psiquismo na ausência de um self fortalecido.

Se o selfobjeto é empático, ele permite a integração do self, e as pulsões (parciais) acabam por ficar submetidas a este, funcionando de forma harmônica. Caso o selfobjeto não apresente respostas empáticas, o self ficará enfraquecido e com risco de fragmentar-se, e assim, por não conseguir constituirse como supremo, prevalecerá a pulsão - fixada naquelas etapas evolutivas em que se deu a falha empática do selfobjeto (oral, anal, fálica). Logo, Kohut (1977/2009b) acredita que fixações nas pulsões não são o centro de uma psi-copatologia, mas decorrem de um self defeituoso. Seria o self não estabelecido de forma coesa que buscaria prazer nas zonas erógenas como defesa contra a fragmentação.

Os distúrbios do self

Em The restoration of the self (1977/2009b), Kohut mantém a ideia da fase anterior de que o processo de formação do self nem sempre se dá de forma harmoniosa e, por isso, ele pode não alcançar a coesão desejável, mas acrescenta que, se o self não se estabelece de forma coesa, ele não toma o lugar de uma estrutura supraordenada. Também de maneira semelhante ao período anterior, o autor diz que as falhas no processo de formação acontecem porque os selfobjetos podem não responder de modo empático, deixando de oferecer condições de espelhamento ou fusão adequadas para a formação do self nuclear.

Em "The disorders of the self and their treatment" (1978/2011b), Kohut traz, dessa vez de modo mais amplo e mais organizado do que antes, algumas respostas dos selfobjetos que acarretariam falhas na constituição dessa estrutura por serem não apropriadas às necessidades explicitadas pelo self, logo, não empáticas.

Uma das falhas mais primitivas seria quando o selfobjeto materno não oferece a oportunidade de a criança se fusionar a si e experienciar a sua calma, e como consequência limita sua ansiedade e a transforma de uma ansiedade exagerada em uma ansiedade-sinal. Com isso, essa criança não desenvolveria condições de acalmar-se, ou seja, não adquiriria estruturas reguladoras de tensão, e viveria no trauma decorrente do espalhamento de suas emoções. Em razão de não conseguir acalmar-se, tal self enxergaria o mundo (que oferta estímulos) como inimigo e perigoso.

Outra situação é a de um selfobjeto que não oferece estimulação suficiente. Nesse self predomina um sentimento de vazio e apatia, que o indivíduo busca evitar através da estimulação excessiva e forçada - masturbação compulsiva, esportes radicais, atividades sexuais promíscuas, drogadicção, hiper-socialização. Se tais atividades defensivas são retiradas, o indivíduo vivencia a depressão vazia (Kohut, 1978/2011b).

Há casos também em que o selfobjeto oferece respostas ao self, mas são respostas não integradoras. O produto desse tipo de relação é um self cujos polos do self nuclear se estabelecem de forma fragilizada, suscetíveis a ruir diante do mínimo sinal de abalo que o self sofra. O sujeito experiencia retornos a um estado de fragmentação sob o aspecto de uma preocupação com as funções e partes corporais individuais. Uma manifestação comum seria a hipocondria (Kohut, 1978/2011b).

Por fim, existem os casos em que o self é superestimulado. Aqui, os pais falhariam na oferta de oportunidades de frustração - pais, por exemplo, que não oferecem um espelhamento adequado e não permitem que a criança tenha condições de desenvolver um self realista (com capacidades e limitações), mantendo-a fixada em um self arcaico e onipotente (Kohut, 1978/2011b).

Vimos anteriormente que o self tem uma constituição bipolar e que ambos os polos precisam ser atingidos para que existam prejuízos na constituição do self. Segundo Kohut (1977/2009b), quando há uma falha no estabelecimento de um dos polos, entram em cena as estruturas compensatórias, que visam equilibrar a estrutura. É muito frequente que as estruturas compensatórias contrabalancem falhas na área de exibicionismo e grandiosidade, com fortalecimento do polo formado pela imago parental idealizada, mas o oposto também é possível.

No entanto, quando não houvesse a possibilidade de compensação ou esta falhasse, o psiquismo faria uso de estruturas defensivas. Essas estruturas têm a função de acobertar os defeitos primários do self. Logo, não teriam o mesmo caráter que as compensatórias, isto é, não colaborariam para estabelecer os polos que formariam o self, mas apenas para tamponar as falhas. Para exemplificar, um self com um defeito primário na área do exibicionismo e da grandiosidade poderia apresentar estruturas defensivas em que manifestaria excesso de entusiasmo, hipervitalidade. Tais respostas seriam um meio de esconder baixa autoestima, depressão, solidão e sentimentos de morte psíquica (Kohut, 1977/2009b).

O self saudável seria aquele em que predominariam as estruturas primárias ou compensatórias (Kohut, 1981/2011d). Também haveria nele estruturas defensivas, mas estas seriam mínimas. De acordo com Kohut (1977/2009b, 1978/2011b), as organizações psíquicas que não teriam um self saudável seriam, entre outras, as psicoses, as organizações borderline e os transtornos narcísicos de personalidade.

 

Considerações finais

A princípio, Kohut construiu uma teoria que buscava compreender o desenvolvimento narcísico a fim de elucidar a dinâmica de pacientes que apresentavam queixas distintas das neuróticas. Porém, ao teorizar sobre o self, o autor acabou por criar uma teoria que modificava o entendimento do funcionamento psíquico como um todo. Segundo Oppenheimer (2002), a teoria proposta por Kohut logo se chocou com aquela proposta por Freud, e o autor precisou criar uma inter-relação entre uma teoria e a outra. Em 1977, no livro The restoration of the self, Kohut apresenta essa relação, apontando as pulsões como secundárias e criando a psicologia do self, que ele dizia ser uma extensão da teoria psicanalítica dita clássica.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 15/6/2016
Aceito em 17/11/2017

 

 

1 "A person's secure feeling of being a well delimited unit, i.e., his clear concept of who he is."
2 "the 'I' of our perceptions, thoughts, and actions."
3 Kohut inicialmente utiliza a palavra self-object, com hífen, e depois selfobject, sem hífen.
4 "the baby originally experiences the mother and her ministrations, not as a you and its actions, but within a view of the world in which the I-you differentiation has not yet been established."
5 Ainda não reconhecido como um outro separado, independente e autônomo (ou seja, um objeto), mas como um selfobjeto.
6 "His lips feel 'strange', for example; his body has become 'foreign' to him; his thinking is now 'odd' etc. - all terms which are expressive of the fact that the regressive changes are, in essence, outside the patient's psychological organization."
7 "strictly speaking, the neonate is still without a self.'

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