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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Com os pés no chão: sobre como se pode sonhar a conquista de um corpo próprio num processo de análise1

 

Keeping both feet on the ground: about how one may dream of conquering one's own body in a process of analysis

 

Con los pies en la tierra: sobre cómo se puede soñar la conquista de un cuerpo propio en un proceso de análisis

 

En ayant les pieds sur terre: à propos de comment on peut rêver sur la conquête un corps propre, dans un processus d'analyse

 

 

Alfredo Naffah Neto

Psicanalista, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, descreve-se o caso clínico de um paciente borderline, cujo self era inicialmente formado por uma hipertrofia da área intelectual e que, ao longo da análise, veio a conquistar um corpo próprio e, com isso, uma unidade psicos-somática. Essa descrição tem a finalidade de mostrar que, na perspectiva winnicot-tiana, existem outras possibilidades de interpretar os sonhos em casos de patologia borderline, possibilidades que escapam à teoria dos sonhos proposta por Freud. Não se pretende fazer uma revisão da teoria freudiana, o que exigiria um estudo à parte. Conclui-se que, na perspectiva winnicottiana, o sonho geralmente traduz características do estágio de amadurecimento em que o paciente se encontra.

Palavras-chave: patologia borderline, personalização, unidade psicossomática, sonhos


ABSTRACT

The author describes a clinical case of a borderline patient, whose self was first formed by a hypertrophy of intellectual area. Throughout the process of analysis, this self has achieved an own body and therefore a psychosomatic unity. The purpose of this description is to show, from a Winnicottian perspective, the existence of other ways of interpreting dreams in cases of borderline disorder. These possible ways were not considered by Freud in his theory of dreams. This paper is not an attempt of reviewing Freud's theory; it would require at least a separate study because of its complexity. From a Winnicottian perspective, in cases of borderline pathology, the dream usuallly does not express an unconscious sexual desire, but rather translates aspects of the maturational stage of the patient, the author concludes.

Keywords: borderline pathology, personalization, psychosomatic unity, dreams


RESUMEN

Este artículo describe el caso clínico de un paciente cuyo self estaba formado por una hipertrofia del área intelectual y que, durante el análisis, conquistó un cuerpo proprio y, con esto, una unidad psicosomática. La descripción tiene el objetivo de mostrar que, en la perspectiva de Winnicott, existen otras posibilidades de interpretar los sueños en casos de patología borderline, posibilidades que escapan en la teoría de los sueños propuesta por Freud. No se pretende aquí una revisión de la teoría de Freud, pues esto es una tarea compleja, que exigiría otro estudio. Se concluye que, en la perspectiva winnicottiana, el sueño generalmente traduce características de la etapa de madurez en la que se encuentra el paciente.

Palabras clave: patología borderline, personalización, unidad psicosomática, sueños


RÉSUMÉ

Dans cet article, on décrit le cas clinique d'un patient borderline, dont le self était d'abord formé par une hypertrophie du champ intellectuel, et qui, tout au long de l'analyse, parvient à la conquête d'un corps qui lui est propre et, par conséquent, d'une unité psychosomatique. Cette description a pour but montrer que, dans la perspective Winicottienne, il y a d'autres possibilités d'interpréter les rêves, dans des cas de pathologie borderline, des possibilités qui ne sont pas comprises dans la théorie des rêves proposé par Freud. On n'a pas l'intention de faire une révision de la théorie Freudienne, ce qui exigerait une étude particulière. On conclut que, dans la perspective Winicottienne, le rêve généralement traduit des caractéristiques du stage de maturité où se trouve le patient.

Mots-clés: pathologie borderline, personnalisation, unité psychosomatique, rêves


 

 

Um caso de análise

Descrever casos de análise, considerando os caminhos e descaminhos do, geralmente, longo processo de cura, constitui uma das principais ferramentas do psicanalista para rever e ampliar a teoria de base. É com essa finalidade que um caso será aqui descrito.2

Quando me procurou para análise, Salim queixava-se de que tudo em sua vida era falso, irreal e sem sentido. Havia cursado uma faculdade de psicologia, quiçá - como veio a concluir depois - com o objetivo de se curar, já que isso justificaria, com mais facilidade, a busca de uma psicoterapia aos olhos de sua família, de origem libanesa e caracteristicamente tradicional. Mas isso, naquele início, não lhe era de forma alguma consciente, somente vindo a revelar-se bem mais tarde.

Nessa época, ele não vivia da psicologia; dava aulas de português para imigrantes da colônia, que tinham o árabe como língua-mãe. Bastante inteligente, era um professor esmerado e muito bem avaliado pelos alunos. Ao longo do processo de análise, foi ficando claro que Salim tinha a área intelectual hipertrofiada, mas totalmente cindida da esfera afetivo-emocional - portanto, uma espécie de falso self patológico de cunho eminentemente mental. Pouco a pouco, fui percebendo que se tratava de um paciente borderline, do tipo que, em dois artigos publicados, e retomando Helene Deutsch, vim a chamar de personalidade como se (Naffah Neto, 2007, 2010). Em resumo, é um paciente que tem seu eixo de personalidade centrado nesse falso self patológico, constituído pela mimetização de traços ambientais, mas bastante bem estruturado e completamente cindido do restante da personalidade. No caso, tratando-se de um falso self formado por hipertrofia intelectual, ele funciona, nas relações objetais, por meio de uma filtragem mental e reduz tudo o que o indivíduo capta da realidade a um conjunto de ruminações lógicas. As afetações emocionais, produzidas pelos objetos, não podem ser destiladas nem metabolizadas, mantendo-se em estado bruto, portanto caótico, uma vez que permanecem marginais, impossibilitadas, em grande parte, de atingir o self verdadeiro e de ser por ele absorvidas e apropriadas, dado o seu potencial efeito traumatizante. Por essa razão, são em geral deslocadas, suprimidas ou encobertas. No caso aqui descrito, Salim não tinha qualquer contato com seu mundo subjetivo afetivo-emocional. Ele dizia claramente: "Não sei se tenho desejos. Se tenho, não consigo acessá-los".3

Por essa razão, como esse tipo de paciente não tem contato com seu self verdadeiro (que vive protegido, encoberto), portanto com sua criatividade primária,4 a vida fUnciona somente por meio do falso self, no nível do como se fosse, sem verdadeiramente sê-lo - daí o nome personalidade como se. Era exatamente essa dinâmica que produzia em Salim o sentimento de que, em sua vida, tudo era falso, irreal e sem sentido.

Também cabe considerar que essa cisão entre o intelecto e a esfera emocional refletia um processo de personalização não realizado ou, pelo menos, cheio de lacunas. Isso mostra que a psique da Salim não se ancorava em seu corpo, formando uma unidade psicossomática - tal como acontece no desenvolvimento saudável -, mas se constituía quase que tão somente da esfera intelectual do falso self.5 Assim, quando os afetos emergiam do corpo, eles vinham em estado bruto, sem qualquer apropriação por parte de seu ego. Podemos dizer que, nessas ocasiões, Salim era como que possuído por sentimentos e emoções, sem ter controle sobre eles.

Propus a Salim uma análise de quatro sessões semanais, ao perceber que tinha diante de mim um paciente borderline. Ele aceitou a proposta, muito embora, para que isso fosse possível, eu tivesse de reduzir consideravelmente o valor das sessões. E começamos a análise.6

Os três primeiros meses consistiram numa espécie de teste de paciência para mim, como analista. Salim atacava as sessões de todas as formas possíveis, usando seus conhecimentos de psicólogo, num nível altamente intelectualizado. Dizia-me que psicanálise não era aquilo que eu fazia, que eu não sabia trabalhar etc. Eu simplesmente escutava, sem retaliar de nenhuma forma. Às vezes, fazia alguma interpretação do tipo: "Você parece muito bravo pelo fato de eu não trabalhar segundo o seu modelo de análise". E ele, após uma saraivada de ataques, às vezes comentava: "Não sei se você vai me aguentar. Tenho medo de que me expulse daqui". Ou então: "Tenho medo de estar destruindo as minhas possibilidades de análise"7

Minha sobrevivência aos ataques de Salim, pouco a pouco, transformou a dinâmica, até uma parcial aceitação de minha pessoa e de meu trabalho analítico por parte dele. Hoje penso que esses três meses iniciais representaram uma espécie de teste do analista, para ver o quanto eu seria capaz de tolerar sua agressividade destrutiva sem retaliar.8

A análise de Salim durou cerca de 19 anos, e ele sem dúvida não é mais aquele paciente borderline que me procurou. Ao longo desse tempo, sua psique se personalizou, adquirindo maior unidade psicossomática; desfez-se a cisão entre intelecto e emoções, e o processo analítico caminhou para a constituição de uma terceira área, um espaço potencial, que inicialmente não existia.9

No entanto, a análise de Salim envolveu momentos de turning point: tão logo conseguiu constituir, via análise, um mundo subjetivo razoavelmente apropriado, entrou numa espécie de retraimento esquizoide, para evitar, a qualquer custo, o retorno a uma complacência às demandas ambientais, tal como funcionou em grande parte de sua vida. Lentamente, foi preciso ajudá-lo a perder o medo que as exigências ambientais lhe causavam - e, em parte, ainda lhe causam -, ou seja, entrarmos ambos num longo exercício, que implicava manter o princípio de realidade sem perder contato com o mundo subjetivo. Foi para garantir esse trânsito entre mundo subjetivo e mundo objetivo que, na última fase da análise, pouco a pouco, se construiu a terceira área.

Ao final desse processo, sobraram-lhe as cicatrizes dos eventos traumáticos que marcaram sua vida. Essas marcas não podem ser apagadas por nenhuma análise. Elas formam uma geografia afetivo-emocional, que compõe o caráter de cada pessoa, sua história de vida, suas lutas e seus percalços. Sempre que algum novo acontecimento vital tocar nessas cicatrizes, eclodirão emoções passadas, nebulosas, o que implicará novas elaborações, sendo essa uma tarefa por toda a vida.

Quando concluiu sua análise, porém, Salim era um homem razoavelmente bem realizado, casado, com dois filhos, e com um trabalho criativo em franco progresso.

 

Os sonhos na dinâmica borderline e a elaboração imaginativa das funções corporais

Aprendemos com Freud (1900/1987), quando analisava a dinâmica neurótica, que os sonhos geralmente traduzem realizações de um desejo sexual inconsciente.10 Entretanto, como já salientei, em pacientes borderline, grande parte das vezes, a sexualidade não se encontra ainda formada ou se constituiu como uma sexualidade falsa.

Para Winnicott, a sexualidade infantil somente será uma sexualidade verdadeira se constituída a partir da experiência própria do bebê, ou seja, de dentro para fora, partindo da experiência subjetiva da criação do seio rumo ao processo de personalização e temporalização, cabendo à mãe oferecer o seio no momento oportuno e sustentar toda a experiência ao longo do tempo. Quando isso não acontece - e a sexualidade forma-se de fora para dentro, por imposições e invasões ambientais -, pode-se constituir o que denomino sexualidade falsa, como parte de um falso self patológico, cindido do restante da personalidade e formado por mimetizações ambientais. ... A sexualidade falsa cria uma impressão errônea de desfrute erótico - para o observador externo - e está presente na maior parte dos pacientes de tipo borderline, servindo geralmente a fins mais primitivos do que os ligados à busca do prazer. (Naffah Neto, 2014, pp. 90-91)

No caso do paciente aqui descrito, tratava-se de uma sexualidade falsa. Em momentos de grande angústia, Salim procurava prostitutas e dizia que precisava transar para não sentir seu corpo "se dissolvendo no nada', ou seja, na falta de uma unidade psicossomática, a relação "sexual" propiciava uma integração momentânea entre psique e corpo, diminuindo o terror de um colapso. Avalio que esse uso da "sexualidade" não tinha a ver com qualquer busca de prazer erótico.

Dadas as razões expostas, na análise desse tipo de paciente, é mais apropriado interpretar os sonhos a partir de outros referenciais, que não o da tradução de um desejo sexual inconsciente, inclusive porque, ao longo do processo, a falsa sexualidade tende a se desmantelar - em decorrência da dissolução do falso self patológico, do qual faz parte - para dar lugar à constituição de uma sexualidade verdadeira. Somente então a teoria freudiana do sonho passa a ter algum sentido.

Salim sonhava frequentemente que voava e que se exibia para outras pessoas por meio de seus voos. Eram verdadeiros malabarismos acrobáticos realizados em pleno ar, que lhe rendiam boas gratificações narcísicas.

Com o desenvolvimento da análise - e do processo de personalização, pelo qual seu psiquismo veio gradativamente alocar-se no corpo -, seus sonhos ganharam o chão firme do mundo real. Então, muito embora as imagens antigas ainda voltassem de quando em quando, especialmente em períodos em que tinha de responder a maiores demandas ambientais e seu psiquismo regredia, elas eram muito menos frequentes.

Ora, interpretar esses sonhos como a realização de desejos sexuais infantis, da maneira que Freud postulava para seus pacientes neuróticos, seria ser pouco fiel ao fenômeno onírico em questão, tal qual se apresentou em dois períodos marcadamente distintos da análise. Para interpretá-los, foi necessário recorrer à noção winnicottiana de elaboração imaginativa das funções corporais, da qual o sonho constitui uma das principais modalidades.

No exemplo citado, pode-se dizer que voar ou pisar no chão firme são traduções oníricas de diferentes formas de habitar o mundo: a primeira por meio de um funcionamento intelectual cindido, com seus voos desencarnados, destituídos de qualquer possibilidade de sentimento, mas buscando compensação numa forma de exibição onipotente infantil; a segunda por meio de uma psique encarnada, com seu peso sujeito à gravidade, na qual sentimentos e pensamentos podem constituir algum tipo de unidade psicossomática.

O que significa, porém, interpretar o sonho como uma modalidade de elaboração imaginativa das funções corporais?

A elaboração imaginativa das funções corporais é um conceito central da psicanálise winnicottiana e descreve um processo - que existe desde o início da vida - de constituição da psique humana, que nasce então integralmente apoiada nas funções corporais, como uma espécie de tradução psíquica delas. Apenas para dar um exemplo, os processos de introjeção e projeção são os correspondentes psíquicos dos processos corporais de ingestão alimentar e de evacuação intestinal.

Cabe dizer ainda que, segundo Winnicott, a elaboração imaginativa é realizada pelo próprio bebê quando devidamente sustentado por uma mãe suficientemente boa. A princípio, tem uma forma bastante rudimentar, a qual vai aos poucos tornando-se complexa, até atingir a forma do sonho e da fantasia.11 O sonho constitui, assim, uma das modalidades de elaboração imaginativa das funções corporais, traduzindo sempre o estágio de amadurecimento em que o indivíduo se encontra e sua forma característica de habitar o mundo. No caso do paciente aqui descrito, voar ou viver com os pés no chão expressavam diferentes formas existenciais, a primeira totalmente desencarnada, sem gravidade, no período em que a psique era puro intelecto, e a segunda encarnada, sofrendo o efeito da gravidade, quando a psique ganhou unidade psicossomática, alocando-se no corpo. Quando Salim passou a sonhar que percorria longos caminhos de skate, deslizando pelo chão, isso sinalizou que havia conquistado um corpo próprio, via processo de análise. Essa conquista mostrava-se também por meio de outros sinais de integração psicossomática, sendo o principal deles a sensação, expressa por Salim, de que sua vida ganhara sentido, realidade e, principalmente, uma qualidade de verdade, indicada pelo acesso a seu mundo subjetivo, a seus desejos e sentimentos, os quais se tornaram capazes de informar e conduzir ações no mundo real.

Convém salientar que essa maneira de conceber o sonho, muito embora envolva elaborações que escapam ao modelo freudiano, não o exclui completamente, englobando-o como uma das formas de elaboração imaginativa das funções corporais: a elaboração imaginativa da função sexual. Ou seja, num paciente neurótico, o sonho geralmente traduz um desejo sexual inconsciente, especialmente porque todas as neuroses giram em torno de conflitos edipianos. Entretanto, também é verdade que a psique humana, segundo Winnicott, forma-se a partir de experiências eróticas e não eróticas.12 Nesse sentido, podemos dizer que, na teoria winnicottiana, o sentido do sonho transcende a dimensão sexual do ser humano, estando ancorado nas múltiplas facetas de sua existência.13

Como um importante sinalizador do tipo de elaboração imaginativa que está em curso em cada período do processo analítico, o sonho é uma das bússolas que podem guiar a condução do processo de cura, constituindo uma das formas principais daquilo que Winnicott denominava cooperação inconsciente.

O analista apreende as pistas e faz as interpretações. Frequentemente o paciente falha em dar essas pistas, tornando inevitável, então, que o analista nada possa fazer. É importante para o paciente essa limitação do poder do analista representada pela interpretação correta, feita no momento correto e baseada nas pistas e na cooperação inconsciente [itálico meu] que o próprio paciente está suprindo, que constitui o material que constrói e justifica a interpretação. ... [Caso contrário] o analista pode aparecer como muito sabido e o paciente expressar admiração, mas no fim a interpretação correta torna-se traumática, e o paciente tem de rejeitá-la, porque ela não é sua. Ele se queixa de que o analista tenta hipnotizá-lo, ou seja, de que o está convidando a uma severa regressão à dependência, puxando-o para uma fusão consigo mesmo. (Winnicott, 1960/1990b, pp. 50-51)

Cabe, pois, ao analista seguir sempre as pistas que lhe são propiciadas pela cooperação inconsciente do paciente, na qual, sem dúvida, o sonho ocupa uma posição de destaque.

 

Referências

Freud, S. (1987). La interpretación de los sueños. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vols. 4-5). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1990a). The capacity to be alone. In D. W. Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment (pp. 29-36). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990b). The theory of the parent-infant relationship. In D. W. Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment (pp. 37-55). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Alfredo Naffah Neto
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309, conj. 73
04544-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 3045-3082
naffahneto@gmail.com

Recebido em 3/1/2017
Aceito em 8/6/2018

 

 

1 Este artigo é baseado numa conferência realizada no 8.° Colóquio Winnicott de Belo Horizonte, O corpo em Winnicott, em outubro de 2016. A mesma conferência, com algumas modificações, foi apresentada no Centro de Estudos Psicanalíticos (cep), em São Paulo, em abril de 2017.
2 Por questões éticas, de sigilo profissional, para não permitir o reconhecimento do paciente em questão, construo sempre um paciente fictício, mas que inclui, em sua descrição, características psicopatológicas fundamentais do paciente verdadeiro. São disfarces necessários ao psicanalista pesquisador.
3 Ao longo de análise, foi ficando claro que Salim tinha uma mãe bastante invasiva, dessas que nunca conseguem olhar o filho com o devido respeito pelas singularidades dele; que sempre o refletira como se fosse um prolongamento de si mesma, dos valores e desejos dela, sempre postos como absolutos. Nesses casos, o falso self forma-se como um escudo protetor do self verdadeiro, do gesto espontâneo do bebê, escudo esse constituído por uma hipertrofia intelectual. O intelecto hiper desenvolve-se aí com a finalidade de prever falhas ambientais e preparar o bebê para enfrentá-las. Entretanto, quando essas falhas produzem afetos insuportáveis, ocorre uma clivagem na personalidade, a fim de proteger o self do bebê. Então, esse falso self, constituído por hipertrofia intelectual, passa a funcionar como um filtro protetor, que impede a passagem dos "pedaços de realidade" capazes de produzir afetos traumatogênicos e somente deixa passar, e atingir o self do bebê, uma construção intelectual e fragmentária dos acontecimentos reais. Com isso, a esfera afetivo-emocional do bebê não se desenvolve, permanecendo, em grande parte, protegida, encoberta e em estado embrionário.
4 Segundo Winnicott, todo bebê nasce com uma criatividade primária, ativa desde o nascimento e responsável pela criação do objeto subjetivo.
5 Winnicott entende que a psique desenvolve-se apoiada nas funções corporais, por meio de uma elaboração imaginativa das mesmas. Dessa forma, funções fisiológicas dão origem a funções psíquicas, criando uma unidade psicossomática, formada pela gradativa alocação da psique no corpo, o que Winnicott chamou de personalização. Nas patologias borderline, esse processo de personalização pode não se realizar ou se realizar de forma incompleta, como no caso de Salim, cuja psique era formada basicamente pela área intelectual hipertrofiada.
6 Posteriormente, precisei adaptar-me às necessidades do paciente: as quatro sessões semanais foram transformadas em duas sessões duplas e, 12 anos depois, reduzidas a uma sessão dupla. As sessões duplas foram instituídas quando percebi que os 50 minutos habituais, a partir de certo ponto da análise, passaram a não ser suficientes para Salim, que, além de chegar sempre atrasado, ficava os primeiros 10 ou 15 minutos totalmente recolhido e calado; quando, por fim, começava a falar, o tempo que restava não era o bastante para um desenvolvimento razoável da sessão. Esse procedimento foi prescrito por Winnicott e adotado por ele no tratamento de Margaret Little (Little, 1990).
7 Num de meus artigos, ponderei o quanto essa dinâmica - de ataque ao analista nos períodos iniciais da análise - constitui a retomada de um processo de uso do objeto, no sentido que Winnicott lhe dá: "Nesse processo, o sujeito tenta situar o analista fora de sua área de controle onipotente, atacando-o e tentando destruí-lo. ... A experiência, nesses casos, é bem-sucedida se o analista consegue 'sobreviver' e 'não retaliar' os ataques do paciente, ou seja, não entrar na avalanche destrutiva que lhe é dirigida, tornando-se parte dela (e, então, misturando-se com o paciente). Ao sobreviver, sem retaliar, ele advém como um ente real, independente, e não mais como a projeção de uma parte do self do paciente" (Naffah Neto, 2004, p. 60). Esse processo de uso do objeto é aquele pelo qual o bebê constitui a existência de um mundo exterior, discriminando-o de um mundo interior, e acontece quando, ao viver um processo de sadismo oral, ele ataca e destrói imaginariamente o seio materno. Ao longo do tempo, ao perceber que o seio destruído sobrevive a seus ataques, o bebê vem a discriminar um seio objetivo (que ele não consegue destruir) de um seio subjetivo (que permanece destruindo, na fantasia). No caso aqui descrito, podemos concluir que Salim estava revivendo e retomando o processo de uso do objeto por meio da transferência analítica.
8 Possivelmente, um analista bioniano teria operado de maneira diferente, analisando as provocações de Salim como ataques ao vínculo e considerando essa dinâmica o reflexo de um excesso de pulsão de morte.
9 O espaço potencial, no desenvolvimento saudável, forma-se a partir dos fenômenos transicionais, quando a presença da mãe começa a ser substituída por objetos transicionais, como uma fralda ou um ursinho de pelúcia, ou seja, quando têm início os processos de simbolização. Contudo, nas patologias borderline, na medida em que o self verdadeiro do bebê permanece protegido e isolado, o espaço potencial não se desenvolve ou se desenvolve de forma precária, ficando os processos de simbolização bastante prejudicados. Para mais detalhes, conferir Naffah Neto (2015, p. 18, nota 2).
10 Evidentemente, a teoria freudiana dos sonhos não se reduz a essa afirmação, sendo muito mais complexa. Somente à guisa de exemplo, em textos posteriores, Freud (1920/2010) falaria de sonhos traumáticos, que se repetem compulsivamente, com a finalidade de descarregar a angústia acumulada, relacionada a eventos traumáticos; portanto, de sonhos que não representam a realização de desejos (desses sonhos, e de outros elementos mais, Freud deduziria a pulsão de morte). No entanto, como a finalidade deste artigo não é reavaliar a teoria freudiana dos sonhos (o que exigiria um estudo à parte, bem mais complexo), não pretendo aprofundar-me nessas questões.
11 Escrevi um artigo descrevendo em detalhes essa noção fundamental, e tão pouco estudada, do pensamento de Winnicott (Naffah Neto, 2012).
12 De acordo com Winnicott, o bebê vive estados excitados - quando é atravessado pela fome e busca o seio - e estados relaxados - quando relaxa, dorme e é acalentado pela mãe-ambiente. Os estados excitados, devido à presença do instinto, acabam ao longo do tempo eivando-se de sensações eróticas, vindo a constituir a sexualidade infantil. Os estados relaxados, porém, devido à ausência de impulsos instintivos, são de outra índole, compostos de experiências não eróticas. É a partir desse tipo de experiência não erótica que a terceira zona, o espaço potencial, vai se formar. Winnicott chega a descrever algo que denomina orgasmo do ego, presente no brincar e que não tem nada a ver com os orgasmos do id (Winnicott, 1958/1990a). Alguns comentadores de Winnicott discutiram essa problemática de modo exaustivo (Lejarraga, 2012; Naffah Neto, 2014).
13 Como indicado, este artigo procura apenas assinalar as diferenças entre a concepção winnicottiana e a concepção freudiana do sonho (especialmente nas patologias borderline), não tendo nenhuma pretensão de rever a teoria freudiana do sonho como um todo.

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