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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.2 São Paulo Apr./June 2018

 

RESENHAS

 

O terceiro tempo do trauma: Freud e Ferenczi e o desenho de um conceito

 

 

Júlia Catani

Psicanalista e psicóloga no Ambulatório de Transtornos Somatoformes (Soma) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPQ-HCFMUSP). Doutoranda do Instituto de Psicologia da USP, com auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Autora do livro Sofrimentos psíquicos: as lutas científicas da psicanálise e da psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento (Zagodoni, 2015)

Correspondência

 

 

Autor: Eugênio Canesin Dal Molin
Editora: Perspectiva, Fapesp, São Paulo, 2016, 241 p.
Resenhado por: Júlia Catani

 

 

Em alguns sentidos, a afirmação de Derrida de que cada livro é uma pedagogia destinada a formar o seu leitor nos leva a pensar na maneira como O terceiro tempo do trauma nos conduz. É preciso reconhecer a força da escrita dessa obra. Constituída e alicerçada pelos clássicos da psicanálise, ela transita por diversos territórios e mostra energicamente a conformação do pensamento de seu autor - mostra os clássicos do autor. Se nos lembrarmos de Italo Calvino quando nos fala sobre por que ler os clássicos, poderemos retomar sua ideia de que cada um de nós tem seus clássicos, os livros que ficam em nós, que vêm sempre à mente, que auxiliam o pensamento e que são estruturantes para as nossas ideias, sejam esses livros teóricos, literários ou de outras categorias. A originalidade da obra de Dal Molin evidencia-se de modos diversos, da circunscrição das questões ao tecido da escrita. Deixar-se formar por ele quer dizer acompanhar seu empreendimento de pesquisa e o enraizamento pessoal da questão e de suas maneiras de compreendê-la, enfrentá-la e escrevê-la. Difícil tarefa para o autor, com resultados frutíferos para os leitores. A leitura nos forma ao nos abrir possibilidades de entendimento e modalidades de relação com as práticas - do tratamento, da clínica, da escrita.

O terceiro tempo do trauma remonta com preciosidade o cenário psicanalítico de desenvolvimento do conceito de trauma e os aspectos históricos que o moldaram. Entre estes, a Primeira Guerra Mundial foi um quadro importante para o desenvolvimento do conceito de trauma, tanto pelas potencialidades quanto pelos obstáculos que caracterizaram esse momento no que tange à psicanálise. O autor constrói sua análise ultrapassando os limites de um trabalho psicanalítico; recorre a história, sociologia, literatura, política e, assim, interessa leitores que se empenham em compreender as questões da clínica em suas múltiplas dimensões e articulações. A reconstrução das condições históricas e sociopolíticas do mundo europeu permite identificar a ressonância e o impacto que exerceram sobre as produções psicanalíticas, os pensamentos e os sintomas clínicos. Para tal empreendimento, o exame das cartas trocadas por Freud e Ferenczi e outros teóricos, concretizado no estudo, contribui com informações que, de outro modo, não apareceriam.

Cabe ressaltar outra peculiaridade do autor: a admirável capacidade de articular as situações teóricas à literatura e de deixar que as associações livres tomem conta da escrita, enriquecendo-a. Ou seja, é possível acompanhar parte das leituras que Dal Molin foi realizando ao longo da vida, em horas livres e para além da psicanálise, e são justamente essas que trazem originalidade ao trabalho. O livro não é somente um tratado a respeito do conceito de trauma, mas carrega em si elementos do campo psicanalítico; é um texto propriamente freudiano, em que se localizam associações livres, escuta psicanalítica, narrativa, literatura, prática clínica etc. Para compreender essa característica, as palavras de Tanis parecem apropriadas: "A escrita não visa a reproduzir a experiência, mas a produzir algo no leitor, a partir das evocações, reminiscências e associações que o autor possa provocar no leitor. A escrita é potência viva" (2014, p. 35). Sem ser pesado ou maçante, o texto consegue preservar sua densidade e envolver o leitor, pois a escrita flui com naturalidade. O modo como Dal Molin arquiteta sua análise evidencia sua experiência e seu itinerário de leituras. A trajetória de amadurecimento da questão que o interessa, desde há muito, ganha força pessoal pela sua dedicação aos pacientes em sua clínica, na qual o trauma se apresenta e se representa, muitas vezes, pelo indizível, o que não significa dizer pelo silêncio.

Atento à interlocução a ser instaurada com o leitor, o autor demonstra esse fato desde a escolha da epígrafe: "Festina lente [Apressa-te lentamente]". E, também assim, a demora exigida pela leitura das inúmeras notas de rodapé é recompensada pela riqueza de informações históricas relevantes e de textos complementares. Um recurso precioso, devemos reconhecer. A avidez com que dá vontade de chegar ao final das últimas linhas faz pensar na pressa que se impõe, ao mesmo tempo que a impecabilidade da escrita se apresenta como algo que deve ser saboreado de forma lenta. Numa obra que se ocupa do trauma, o recurso de apressar-se lentamente é frutífero, mais ainda para uma clínica na qual o passado é obscuro e o futuro lhe parece impossibilitado. O cuidado em apressar o interesse e a necessidade de escuta ao traumático requer um tempo próprio, que respeite a sutileza, algo que não se dá de imediato, já que o trauma, como o texto se ocupa em mostrar, acontece em três tempos. Portanto, é preciso aguardar. Pressa e pausa se impõem a todo instante.

O livro exibe uma preocupação reconhecível do autor em oferecer lugar de destaque à teoria ferencziana, que ao longo de décadas foi esquecida ou posta de lado. É com Ferenczi que o traumático avança, com a consideração de casos mais graves e uma clínica com pacientes distintos daqueles atendidos por Freud, ditos mais neuróticos. Como ilustração, Dal Molin se vale tanto de casos da literatura quanto de casos atendidos por ele. Assim, propicia ao leitor observar o desenvolvimento dos tratamentos analíticos efetivados no começo do século passado e fornece elementos para a compreensão do desenvolvimento nos dias de hoje em seu consultório. Tais operações nos permitem acompanhar (e refletir sobre) os estilos de análise e as formas de trabalho viáveis diante do trauma, a percepção da vivência traumática para os pacientes e os modos como cada sujeito processa (ou não) e integra (ou não) o que foi experimentado.

O convite à leitura vale por inúmeras razões. Por exemplo, pelo extenso ensaio acerca do trauma, pela chance de revisitar textos clássicos e pela possibilidade de conhecer os posicionamentos claros e decididos do jovem autor, que só são plausíveis pelo seu profundo domínio das questões. É evidente que, para a compreensão da temática do trauma, noções e conceitos como Édipo, elaboração, manifestações e sintomas, memória, subjetividade, sexualidade, técnica, trabalho analítico e tantos outros exigem presença e compõem a trama de uma escuta apurada e de um grande rigor na pesquisa. Explicações sobre a definição do que seria traumático e acerca das formas como este se instaura na vida dos sujeitos diferem para Freud e Ferenczi. Tempos, memórias e percepções são elementos cruciais para o entendimento do que se passou e se passa. A presença ausente, como atributo do analista, para o autor do livro não equivale a eximir-se de qualquer função, mas a um comparecimento cuja qualidade é a de estar com, ao lado do paciente, a fim de possibilitar a configuração das dimensões do infantil e do adulto na sessão. Segundo Dal Molin, para Ferenczi, "na transferência apresentar-se-ia a oportunidade de fornecer aquela proteção e amparo que estavam ausentes durante o trauma" (p. 227), ou seja, o trabalho analítico, como relembra o seu texto, deve se dar pelo acolhimento do que foi traumático. Trata-se agora de uma nova chance de oferecer a segurança e o amparo não encontrados em seu ambiente quando o paciente foi buscar ajuda. A forte presença e encenação do indizível, que não pode ser transposto em palavras e representações, afigura-se ao analista como validação do conflito. O analista fica na posição de testemunha ocular.

O trauma é sempre atemporal. Como aponta Uchitel (2011), para o trauma não há passado, só presente. Em 2004, Javier Marías escreveu a respeito das catástrofes, das perdas, do terror político - enfim, dos eventos que atravessam o sujeito de surpresa e não oferecem possiblidade de assimilação. Em meio a esses eventos, diz, "a percepção do tempo é variável demais e há muitos fatores que podem afetá-la estranhamente, quebrando o fio da continuidade". Sem proporcionar palavras e representações ao sujeito, tornando - o mudo, "abismos temporais abrem-se logo depois de grandes catástrofes" (Marías, 2004, p. A25). Ana Cláudia Meira, referindo-se a Eugène Enriquez, diz que "todo acontecimento importante é um acontecimento simultaneamente fundador e transgressor" (2016, p. 14). A noção de tempo é, portanto, fundamental para a psicanálise e para o texto de Dal Molin, pois num primeiro momento o trauma sofrido não ganha inscrição; ainda que ele tenha operado, é apenas no instante seguinte que se torna efetivo e pode ganhar a dimensão traumática. É somente nesse momento posterior que, de acordo com o texto, são encontrados coloridos e sensações que não podem ser representados, mas que justamente por isso produzem ruídos ou sofrimento. Trata-se de uma reorganização ou, mais precisamente, de uma desorganização, se assim podemos dizer, do que se passou com aquela pessoa.

A proposição de Dal Molin, baseada em Ferenczi e Balint, é que haveria um terceiro tempo, entre o primeiro e o segundo. O autor opta, de forma didática, por nomeá-lo como terceiro. Nele, por exemplo, a criança, tendo vivido o trauma, busca uma figura de sua confiança, em geral a mãe, para que lhe ofereça amparo e acolhimento; no entanto, isso não acontece e por alguma razão o trauma é desmentido. Cito Coelho Junior, no arguto e enriquecedor prefácio do livro: "É preciso ter esperança de que sempre é tempo ou sempre há tempo" (p. XXI). O trabalho analítico é possível, e a escuta e o acolhimento são elementos fundamentais para a superação do traumático. Nas palavras de Dal Molin:

O psicanalista parece, assim, ter dois papéis a desempenhar. Eles se relacionam a duas figuras diferentes, mas ligadas ao trauma e à cisão do eu decorrente dele; e envolvem diferenciar-se, por contraste, da atitude dessas duas figuras. A primeira é o agressor, e o analista não deve ... comportar-se como figura ameaçadora e autoritária. ... A segunda é o outro ... a quem o analista não deve repetir ao invalidar as percepções do paciente. ... Para Ferenczi, é importante notar, o trauma psíquico decorre tanto do excesso quanto da falta de afeto. (p. 213)

Um pouco mais adiante, o autor observa:

Podemos dizer que é tanto a criança quanto o adulto que comparecem à sessão. ... Consequentemente, para o trabalho analítico é preciso ... um ajustar-se às necessárias ausências e às necessárias presenças, que fazem o paciente saber que não está sozinho. (p. 214)

Apropriando-nos do texto de Marías, é possível pensar que há um tempo diante do traumático em que, como afirmava Cervantes, tudo o que se pode dizer parece recomentar: "Ter paciência e continuar embaralhando as cartas". O tempo do jogo retornará pela presença mais ou menos intensamente fugaz da criança e do adulto e do analista no tempo da sessão/do trabalho analítico. Assim é que nos resta apenas sublinhar: é preciso ler O terceiro tempo do trauma e, em muitos sentidos, deixar-se formar por ele.

 

Referências

Marías, J. (2004, 19 de setembro). Como lembrar, como esquecer. O Estado de S. Paulo, p. A25.         [ Links ]

Meira, A. C. dos S. (2016). A escrita científica no divã: entre as possibilidades e as dificuldades para escrever. Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

Tanis, B. (2014). A escrita, o relato clínico e suas implicações éticas na cultura informatizada. Psicanálise, 16(1),29-43.         [ Links ]

Uchitel, M. (2011). Neurose traumática. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Júlia Catani
Rua Dr. Albuquerque Lins, 818, ap. 21
01230-000 São Paulo, SP
juliacatani@usp.br

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