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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

 

DIÁLOGO

 

Apresentação de Laurie Laufer1: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismo

 

 

Luiz Eduardo Prado de OliveiraI; Beatriz SantosII; Tradução Vinícius Armilato

IPsicanalista, professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
IIPsicanalista e professora associada no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot.

 

 

Laurie Laufer é psicanalista, diretora do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot, onde é professora. Como tal, está na vanguarda da pesquisa e do ensino de psicanálise na França, contribuindo de maneira importante para suas novas orientações.

LPO: Solicitaram-me, do Brasil, que eu a apresentasse em duas palavras. Respondi que você era professora e feminista, entre Foucault e Lacan. Mas depois, lendo sua bibliografia, notei que Lacan não estava tão presente assim em sua obra. Engano meu? Você trata muito mais da morte e do corpo do que de Lacan, e não parece se apoiar no jargão lacaniano. Como você vê tudo isso?

LL: Psicanalista e feminista me convêm muito bem. Meu percurso é o seguinte: comecei minha tese com Fédida, o qual faleceu pouco depois. A tese era sobre o luto e o desaparecimento. Abordei os discursos normativos em torno do luto; também, a questão das normas, das injunções normativas. Ao preparar minha tese de habilitação para orientar pesquisas, com Alain Vanier,2 busquei analisar os efeitos dos discursos normativos sobre a sexualidade. Evidentemente, encontrei Foucault. Eu procurava renovar a vocação crítica da posição analítica. O que isso quer dizer? De certa forma, Foucault e Lacan sempre desconstruíram as normas de sua época. Em 1973, Lacan declarou à [rádio] France Culture: “Existem normas sociais em razão da ausência de qualquer norma sexual, eis o que diz Freud”. É isso o que me interessa. Nossa prática se baseia na transferência. Trabalhamos no caso a caso, mas inseridos em nossa época. Acredito que o risco para a prática analítica, se não nos interrogarmos sobre tudo isso, é transformar a psicanálise num discurso comum, ordinário; é reproduzir normas. Para mim, hoje, a vocação crítica da psicanálise implica o feminismo - um feminismo que trabalhe a questão da emancipação das mulheres por meio da psicanálise.

O que também me interessa é ver como o movimento de liberação vai se aproximar dos direitos LGBTQI+ a partir dos direitos civis. O movimento de liberação das mulheres na França, desde os anos 1960 e 1970, se inspirou na psicanálise. Houve a criação, por Antoinette Fouque,3 da psicanálise política [psychépo], ou seja, da ideia de dar visibilidade à questão política no interior da psicanálise. Essa questão era então relativa ao corpo e à sexualidade das mulheres. O feminismo francês teve algumas fases. A primeira dizia respeito aos direitos civis, à igualdade cívica. Era preciso que as mulheres pudessem votar. A segunda fase, por sua vez, referia-se à liberdade do corpo, à procriação, ao aborto, com efeitos consideráveis sobre a sexualidade, por assim dizer. Isso me interessou bastante.

A noção de liberdade é um pouco estranha para o psicanalista, e no entanto ela se apresenta através da noção de norma sexual. Não sei se estou sendo clara. Frequentei bastante a Escola Lacaniana de Psicanálise, a escola fundada por Jean Allouch,4 que é meu amigo. Tenho em relação a Lacan uma grande proximidade transferencial. Mas sempre fui um pouco resistente ao “estilo lacaniano”. Você compreende? Como minha transferência se deu com uma analista lacaniana, o estilo lacaniano é um pouco bizarro para mim. Fui formada num divã lacaniano, por assim dizer. Minha transferência me transformou nesse ponto. A transferência transforma.

BS: Tenho a impressão de que, apesar da extensão de seu trabalho e da importância da questão de gênero para você, seu pensamento é construído com referências lacanianas.

LL: Certamente. Eu me apoio muito no texto lacaniano, mas ao mesmo tempo sou muito crítica em relação a ele, assim como em relação a Freud. Meu pensamento é próximo ao de Lacan: o RSI, a estrutura, o mais além do Édipo, os complexos familiares, quando a família aparece como uma construção social. Meu pensamento se baseia na questão do amor em Lacan. Por outro lado, tenho muita dificuldade com tudo o que se apresenta como discurso dogmático, seja nos freudianos, seja nos lacanianos - com tudo o que se opõe à emancipação e impede de agir. O poder de emancipação me permite não ser completamente fagocitada pelo dogmatismo freudiano, kleiniano, lacaniano etc. É complicado não ousar criticar os mestres. Isso, diriam alguns, é a posição histérica das feministas. Entendo essa crítica, mas ela me faz rir. É uma crítica sem exterioridade em relação a certo discurso analítico. É complicado, não?

LPO: Sim, por certo. Você frequentou a Escola Lacaniana de Psicanálise, mas não publicou com eles.

LL: Eu publiquei, na revista deles, CUnebévue, um artigo sobre Sidonie Csillag, a “jovem homossexual” de Freud. Publiquei também, em Chérir la Diversité Sexuelle, caderno da l'Unebévue, um texto sobre os trabalhos de Gayle Rubin, antropóloga estadunidense da sexualidade. O livro que estou escrevendo trata precisamente da questão da emancipação. Considero que os teóricos queer, gender, fizeram uma leitura muito interessante da psicanálise freudiana e lacaniana. É importante que os psicanalistas se abram aos discursos exteriores. Do contrário, fecham-se em algo endógeno. Freud sempre abriu a psicanálise para o exterior, para a literatura, para Leonardo da Vinci etc. Hoje, constatamos os perigos do enrijecimento e do fechamento em si dos discursos psicanalíticos.

BS: Quando meus alunos leem seu artigo sobre a “psicanálise foucaultia-na”, sempre perguntam: “Para que uma psicanálise foucaultiana?”. Respondo que seu trabalho é uma crítica a um discurso psicanalítico fechado, rígido, e que você procura algo ligado à confrontação, ao limite, sobretudo no texto “É possível uma psicanálise foucaultiana?”.

LL: Trata-se de uma questão levantada por Jean Allouch.

LPO: Sim, é Allouch quem traz esta noção: a psicanálise levará em conta a contribuição de Foucault ou cessará de existir, pois não terá nenhuma nova contribuição. Isso interessa porque é uma perspectiva que aparece em diferentes lugares do mundo, sem coordenação institucional. Existe uma convergência que leva a Foucault e a Deleuze.

BS: Para você, Laurie, confrontar os limites da psicanálise com outras teorias, como as relativas ao feminismo e as oriundas de Foucault, é uma maneira de criticar a excessiva normatização da psicanálise, especialmente no que diz respeito ao sexo?

LL: Parti da proposição de Jean Allouch, “Ou a psicanálise será foucaultiana, ou não será mais”, feita em 1998 e retomada em 2015 em nosso coloquio sobre Foucault e a psicanálise. Por que acredito ser importante interessar-se por Foucault? Porque ele foi, a meu ver, um dos primeiros epistemólogos da psicanálise, o primeiro genealogista da psicanálise a provocá-la, a fazê-la avançar. Em História da loucura, Foucault lembra que Freud rompeu com a teoria da degenerescência e transformou a abordagem da loucura, o que Lacan, aliás, retoma. O encontro entre Foucault e Lacan é um pouco estranho. Lacan assistiu a vários seminários de Foucault - por exemplo, à conferência “O que é um autor?”. Quando Foucault afirma que Freud e Marx são os fundadores da discursividade, imediatamente Lacan elabora sua teoria do discurso. Lacan absorvia tudo, o que por si só é genial. Precisaríamos de uma epistemo-logia lacaniana. Seria de fato interessante localizar todas as referências a outros autores em Lacan, o qual no entanto não cita, apenas raramente indica suas fontes. Ainda assim, Lacan foi alguém com uma força teórica genial, incrivelmente criativo. Outra coisa importante que Foucault diz acerca da psicanálise relaciona-se à questão da hermenêutica do sentido. Não é apenas Allouch que retoma o termo erotologia. Lacan já o havia feito no seminário sobre a angústia: “Não falo de psicologia, mas de erotologia”.

LPO: Mais precisamente, Lacan se refere a “um discurso desta realidade irreal que merece o nome erotologia” em 1962, quando desenvolve o grafo do desejo. A realidade irreal é um fio condutor que aparece ao longo do percurso dele e que lhe vem de Melanie Klein. É ela quem fala da realidade irreal do fantasma.

LL: A erotologia não é a scientia sexualis, ou seja, não é uma nosografia baseada nas sexualidades. Lacan mostra que as modalidades de transformação do sujeito passam pela questão do amor; ele se refere à invenção freudiana, ao amor de transferência. Lacan dedica um seminário inteiro a essa questão, mas trata disso em vários outros. O livro de Allouch Lamour Lacan é muito interessante. A psicanálise é uma forma de pensar o amor. Não a sexualidade, mas o amor. Não é a mesma coisa. Não? [Risos.] Não sei se respondi à sua questão.

BS: Ao mesmo tempo, nesse texto sobre a psicanálise foucaultiana, você volta à afirmação de Foucault: “Não penso que Lacan fosse revolucionário. Jacques Lacan queria ser psicanalista”. Ser psicanalista é por definição ser revolucionário?

LL: Eu me lembro bem dessa afirmação. Foucault diz: “Não penso que Lacan teria gostado que disséssemos que é um revolucionário. Ele queria apenas ser psicanalista, o que já é muito”. Termina observando que Lacan queria fazer da psicanálise uma teoria do sujeito. Lembro ainda que Foucault comenta: “Sou um experimentador de mim mesmo”. É muito interessante. Lacan foi um experimentador da psicanálise e da teoria analítica, e ele sempre a transformava. Talvez seja um pouco excêntrico dizer isso, mas em todo caso, quando leio Lacan, não o levo sempre a sério. Porque ele mesmo, creio, tinha uma relação bastante irônica com seu próprio saber, um pouco como Sócrates... Às vezes, alguns lacanianos levam a sério demais as palavras de Lacan, como se ele fosse um profeta. Na verdade, acho isso complicado. Jean Allouch, por exemplo, com quem converso frequentemente, tem uma relação com o corpo, a voz e o olhar de Lacan, não só com seus textos. Não é a mesma coisa. Allouch foi analisado por Lacan. Então, quando escreve sobre Lacan, não tem a mesma relação transferencial com os textos de Lacan do que aqueles que o leem sem tê-lo conhecido. Eu abro um livro de Lacan e o leio. É diferente relacionar-se com um texto sem pensar no corpo a corpo com ele, sem poder rir dele. Allouch pode rir.

BS: Mas você acha que rir ajuda a compreender melhor o texto?

LL: Ajuda a compreender de maneira diferente. Em 1936, Lacan enviou seu artigo sobre o estádio do espelho a Freud. O que ele disse a Freud foi: “Eu gostaria de conhecê-lo”. Freud nem sequer respondeu; não aceitou o pedido de Lacan de encontrá-lo. Isso foi mais importante para ele do que se Freud o tivesse recebido. Em consequência, Lacan passou a vida “retornando a Freud”, insistindo nesse encontro que não aconteceu. Ele se autoproclamou herdeiro de Freud. Existem muitos analistas que se autoproclamam herdeiros de Lacan, mas pelo motivo contrário: acreditam tê-lo encontrado porque frequentaram seu divã, porque foram de sua família, porque foram não sei o que mais. Percebe?

BS: Sim. Nessa primeira geração, os analistas iam ao seminário de Lacan, mas não havia textos a ler. Então, escutavam Lacan e liam Freud. A segunda geração, por sua vez, lia Lacan, mas não mais Freud.

LL: Ou os jovens estudantes de hoje, que leem Lacan ou Freud a partir dos teóricos de gênero. É você quem dizia isso, o que acho muito interessante. Por exemplo, em sociologia, aqui na França, ou mesmo em psicologia, os jovens estudantes começam por Problemas de gênero, de Judith Butler. Com base nela, vão ler Lacan ou Freud. Assim, Lacan ou Freud tornam-se capítulos do livro de Butler. Não se pode dizer que isso não tenha sentido. De fato, nossa epistemologia se complexifica.

BS: E mais: é diferente ler Lacan no original ou traduzido. Em geral, na tradução, há apenas uma versão disponível de Lacan, enquanto na França existem três ou quatro versões, concorrentes, que podemos comparar. A tradução cria fenômenos de sectarismo, me parece.

LPO: Você começa com o luto, Laurie. Pode nos falar mais sobre isso? O que isso trouxe a seu pensamento sobre Freud e Lacan? Porque para nós trata-se de fazer o luto. Quando lemos os livros de Judith Butler, há um luto de Freud, há um luto de Lacan ou, ao menos, de certo Freud, de certo Lacan. E, ainda, Lacan é ambíguo. Afinal, ele faz o luto de Freud ou não? Mas partamos de seu trabalho sobre o luto.

LL: Então, meu trabalho sobre o luto está agora muito distante... Fui obrigada a fazer o luto. Entre as determinações necessárias e os encontros contingentes, não sabemos bem como as coisas se passam. Em dado momento da minha vida, precisei trabalhar essa questão, porque descobri coisas na minha análise, e depois por viver pessoalmente certas coisas. Ao terminar a graduação em psicologia, quis estudar isso, sobretudo a questão do desaparecimento na melancolia. Era isso o que me interessava, foi por isso que busquei naquele momento Pierre Fédida, que escrevera muito sobre a ausência. Em seguida, estudei “Luto e melancolia”. Li também o livro Erótica do luto: no tempo da morte seca, de Allouch. Tudo isso começou a se misturar. Fiz então uma tese sobre esse tema, intitulada Psicopatologia do desaparecimento. Minha forma de trabalhar o assunto estava mais ligada ao desaparecimento dos corpos, em especial nas guerras, e ao luto vinculado a um desaparecimento, a uma morte traumática, acidental, da noite para o dia, algo de invasor. Abordei a questão do fantasma, da fantasia... Se bem me lembro, eu me inscrevi no doutorado em 2000. Fédida me havia dito: “Trabalhe com Didi-Huberman”,5 autor de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg.6 Fédida tinha umas fulgurâncias. Ele me disse que era esse o meu tema de doutorado. Eu não percebia de forma alguma que trabalhava sobre isso, e então Fédida... Você conheceu Fédida?

Aí encontrei Didi-Huberman, Warburg etc. Fédida morreu dois anos depois, no meio da minha tese sobre o desaparecimento e o luto. O que me interessava muito era a questão da melancolia, essa suspensão temporal, esse momento em que a morte não existe mais, basicamente. Algo bastante paradoxal. Foi isso o que me interessou. Depois, em minha tese, eu me aproximei bastante do pensamento de uma filósofa da imagem, Marie-José Mondzain,7 que se tornou uma amiga. Quando terminei o livro sobre o enigma do luto, pedi a Marie-José Mondzain que o prefaciasse, e ela muito amavelmente aceitou. Convidei-a porque tinha me orientado, naquele momento do meu trabalho, por uma de suas frases, que, se bem me lembro, dizia: “É apenas pela visão que o irrepresentável pode ser simbolizado”. Essa frase um pouco enigmática me fez trabalhar, e eu me disse: “Essa frase é RSI”, ou seja, o irrepresentável da morte, que mostra algo de inominável, de impossível, que mostra o real. É a visão que vai mostrar o imaginário, é a simbolização que vai mostrar algo da ordem. Passei então a trabalhar com Freud, levando em consideração o conflito, a ambivalência, a morte etc., mas também com o que se amarra e se desamarra. Comecei a tricotar com meus próprios fios, de fato, o pensamento lacaniano, o pensamento freudiano. Como eu estava na questão da melancolia, obviamente encontrei também tudo o que aparece da crueldade do supereu... Não sei se respondi, mas...

LPO: Sim, sim. Mas e o enigma do luto, o enigma para você?

LL: É uma expressão freudiana: o enigma do luto. Freud diz que nunca faremos luto algum. Quando morre sua filha Sophie, diz que jamais substituiremos alguém. Esse é o enigma. A dor do luto permanece um enigma. E é Freud quem o diz. Então, se é Freud, ele tem razão. [Risos.] Mas o enigma... é a pura perda. É isso. A perda seca, na expressão de Allouch. E depois o que se passa? A partir das minhas interrogações, comecei a ler o que diz Judith Butler sobre a melancolia do gênero. Evidentemente, isso me interessa. Penso que ela aborda o assunto de forma muito inteligente; discorre sobre a melancolia em relação ao gênero, à heterossexualidade, à homossexualidade, aos objetos. Trabalhei com essas questões.

BS: É interessante pensar que, para Butler, os textos fundadores de Freud são “Luto e melancolia” e O eu e o isso. A obra Problemas de gênero começa por essas duas leituras psicanalíticas. Segundo Butler, o luto é uma certeza e a melancolia uma questão. Diz ela que Freud distingue o luto, reação a uma perda inevitável, da melancolia, quando o sujeito não sabe o que perdeu. Para Butler, não se trata de um luto do gênero, mas de uma melancolia do gênero. De acordo com ela, não sabemos nada, não sabemos como vamos continuar, não sabemos o que vamos fazer. Uma explicação tal qual Butler propõe, ou seja, pensar o “tornar-se” homem ou mulher através de alguma coisa que perdemos e que não poderemos ter, é isso o que interessa a você? Ou isso lhe parece excêntrico, como a vários psicanalistas que consideram que Butler não compreendeu a psicanálise nessa questão?

LL: Veja, quando leio lacanianos afirmando que Butler não compreendeu Lacan, tenho vontade de acrescentar: Butler não compreendeu o Lacan de vocês; compreendeu outro Lacan. Ela inverte uma proposição: é o tabu da homossexualidade que lhe interessa em primeiro lugar, não o do incesto.

BS: Exatamente. Estou de acordo. O que me interessa é que ela diz que o tabu da homossexualidade antecede o tabu do incesto. É curiosa essa construção teórica da interdição de amar alguém do mesmo sexo para a imagem edipiana advir.

LL: Sim, isso significa que a história do tabu do incesto é a questão da construção da família, a qual seria posterior à questão das “identidades sexuais”; significa que o incesto é um dispositivo familiar - logo, é uma construção que vem depois.

BS: Mas me parece que, se acompanhamos seu trabalho, não é necessário chamar isso de melancolia do gênero para compreender o que ela fala. Para você, a construção do gênero é melancólica?

LL: Creio que não. O que é melancólico é a emancipação, acompanhada pela satisfação. Colocamos a psicanálise excessivamente ao lado do trágico. Há pouco, não lembro onde, li esta frase de Lacan: “O sexual ressalta o cômico”.

LPO: Sim, Lacan diz isso. Talvez não o sexual, mas o falo. O pênis é o falo triste, algo assim. No seminário sobre o RSI, Lacan diz: “O falo é outra coisa, é um cômico como todos os cômicos, é um cômico triste. Quando vocês leem Lisístrata, vocês podem pegá-lo pelos dois lados. Rir ou achar amargo. Deve-se dizer também que o falo é o que dá corpo ao imaginário”. É a lição de 11 de março de 1975.

LL: Mas ele o diz várias vezes e de maneiras diferentes. Diz que é preciso abandonar o trágico, uma espécie de herança, digamos, romântica da sexualidade, da psique, do desejo, da falta etc., como se fosse necessária uma autopunição melancólica com relação a isso, algo bastante curioso. Por isso, Lacan é muito mais libertador. Penso que ele sublinha muito mais o cômico, contrariando a imagem que usualmente se tem dele, fixada na questão do desejo - na verdade, um tipo de pregação em torno dos dramas da castração, da falta. A clínica é muito mais inventiva que isso. Por exemplo, estou ministrando um curso sobre identidade social e identificação psíquica. Falamos muito da questão da identidade de gênero, da identidade sexual, da sigla LGBT. Fiquei sabendo que existem na França 70 possibilidades de identidade de gênero. Pedro Ambra defendeu uma tese, orientada por mim e por Nelson da Silva Júnior, em que comenta coisas bastante interessantes a respeito desse assunto, uma tese muito criativa. Digo aos estudantes: “Escutem, eu aprendo com vocês. É preciso que vocês me ajudem para que eu aprenda”, lgb, na verdade lésbica, gay e bissexual, corresponde às práticas sexuais de fato, à orientação sexual. Todo o resto, nas siglas, é a questão da identidade de gênero: trans, queer, questioning, assexual, poliamor, kink etc.

BS: E tudo isso se mistura, você tem razão. É possível ser lésbica e trans...

LL: Um estudante me enviou um e-mail dizendo: “A senhora nos falou da sigla LGBTQQ. Existe outra, ainda mais longa, que faz referência a outros gêneros: LGBTQQIPZSAA”. Ela reúne lésbica, gay, bissexual, transgênero, queer, questioning, intersexual, pansexual, dois-espíritos, assexual e aliados. Outro estudante hoje me escreveu: “Não podemos esquecer poliamor e kink”.

BS: Kink é o oposto de vanilla, ou seja, o oposto de práticas sexuais menos perigosas, menos “apimentadas”, mais tradicionais. Mas o que define o que é tradicional é outra questão.

LPO: Kink quer dizer simplesmente sexo um pouco sujo, escatológico, talvez um pouco violento, bizarro.

LL: É muito interessante.

BS: É interessante também na sua incoerência.

LL: Certamente. Acho engraçado, cômico. E então ouço lacanianos falando coisas terríveis sobre isso. Dizem: “É a captação imaginária... É a onipotência, blá-blá-blá... É preciso parar... É preciso limitar... Estão dessimbolizando... E a lei... E patati, patatá, e não sei o que mais”. É um jargão. Acho que Lacan não o teria aceitado. Talvez esteja enganada, mas ouso pensar que Lacan teria visto o lado cômico disso tudo.

LPO: Você escreveu sobre a pornografia, sobre o humor e sobre a prostituição. Quais relações você vê entre pornografia e humor?

LL: Fui a um maravilhoso museu em Genebra, a Fundação Bodmer, onde havia manuscritos de Sade (Os 120 dias de Sodoma), manuscritos antigos e também uma pequena carta de Freud. Foi lá que me dei conta de que os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e O chiste e sua relação com o inconsciente foram escritos ao mesmo tempo, em 1905. Acredito que isso seja importante de um ponto de vista epistemológico. Quanto à pornografia, escrevi o prefácio para um livro de Eric Bidaud8 sobre pornografia e psicanálise. A respeito da prostituição, eu a abordei num artigo para uma exposição no Museu d'Orsay há dois anos. Alguns fenômenos, como a prostituição e a pornografia, são debatidos de maneira muito dura, violenta, no âmbito do feminismo. Creio ser muito difícil pensá-los. Assim, um pouco de humor... Rir sempre ajuda. O humor é como o amor. O que me interessa no humor é a possibilidade de deslocar o sujeito. Eu utilizo o humor na minha clínica, interpretações que podem parecer divertidas. Evidentemente, isso não é calculado. Com uma gargalhada no momento certo, o que é trágico pode, sem dúvida, se deslocar. Penso que Lacan foi uma pessoa engraçada. E Freud também. Seria preciso retomar as questões relativas ao humor e ao riso do ponto de vista da psicanálise. Porque Freud escreveu dois textos ao mesmo tempo. Então, ele tricotou um com o outro.

BS: Gostaria de falar agora sobre a escrita de casos clínicos. Você fez um seminário sobre isso, e lembro que você chamou Guy Le Gaufey,9 um analista que questiona o uso de vinhetas clínicas e para quem “a maior parte das vinhetas clínicas, em seu valor ilustrativo, longe de serem pragmáticas e ingênuas, por se apresentarem em língua natural, revelam-se mais frequentemente como hinos, saudações, reverências a professores, autores, autoridades quaisquer. São muitas vezes a expressão de transferências maciças e significativamente pouco questionadas”. Você está de acordo?

LL: Sobre a escrita de casos clínicos, publiquei na revista Psychologie Clinique. Na verdade, evoluí bastante a esse respeito. No meu livro O enigma do luto, eu me refiro a casos clínicos. Hoje, não o faço mais, porque percebi que era sempre insatisfatório. É difícil escrever acerca dos efeitos da transferência. Pode-se dizer que é uma ficção. Freud, inclusive, sempre disse, ao evocar seus casos, que eram como romances. Talvez esteja enganada, mas acredito que pensar na psicanálise de forma epistemológica tenha um alcance clínico muito maior do que contar o que se passa numa cura. Não tenho talento para isso. É bastante difícil fazê-lo. Lacan expõe um caso clínico, um único caso clínico, o de Marguerite. Na verdade, não o faço porque não consigo fazê-lo e porque, quando o faço, não me transmite nada, não sou criativa. Quando escrevo, tento pensar nos textos de Foucault, Butler, Lacan etc. Eu me transformo mais quando quebro a cabeça com os textos deles, tentando verificá-los na minha clínica, do que quando escrevo um texto pretendendo descrever minha clínica, o que me transforma menos, me faz avançar menos, por assim dizer. A exceção é quando trabalho com um romance, uma narrativa, uma ficção, a autoficção de Jane Sautière, por exemplo. O livro Nullipare é uma ficção. Eu me sinto mais à vontade para trabalhar a partir de um romance.

Creio ainda que a escrita de vinhetas clínicas possa ter o efeito de certa violência. Por exemplo, Catherine Millot,10 que é alguém de quem gosto. A meu ver, ela foi tomada pelo jargão lacaniano de sua época quando lançou um ensaio sobre a transexualidade intitulado Horsexe. Eram os anos entre 1975 e 1985. Para as pessoas de que trata, a leitura desse livro é extremamente agressiva. Lembro-me de um colóquio coorganizado pela Escola Lacaniana e por uma associação de transgêneros que hoje não existe mais, Caritig, creio. Nunca vi um colóquio tão violento. Catherine Millot estava lá, e também Marie-Hélène Bourcier11 (na época) e Tom Reucher, um psicoterapeuta trans-gênero. Catherine Millot foi fuzilada, foi insultada a ponto de ter que deixar o anfiteatro. E por quê? Porque seu livro era uma aplicação dogmática da língua lacaniana à transexualidade.

BS: Sim, com certeza. Mas penso que, entre o que fez Catherine Millot e o que pode fazer alguém como Ken Corbett,12 que é um analista gay, ou Tim Dean,13 que não é psicanalista, mas escreve sobre e a partir da psicanálise...

LL: O grupo de trabalho que juntas vamos iniciar, com você, Thamy Ayouch e outros, terá por objeto o que é o saber localizado para um psicanalista. O que isso quer dizer? Não é simplesmente explicitar de onde falamos. É mais complexo. O que nos faz hoje propor essa questão? De fato, é muito complicado. Atualmente, nos Estados Unidos, vemos um momento um pouco difícil, em que tudo pode ser vivido como uma cultural appropriation, como uma apropriação cultural. Por exemplo, Kathryn Bigelow, que fez Detroit. Não sei se vocês viram esse filme sobre a violência perpetrada contra os negros nos anos 1960, nos Estados Unidos. Ela foi interpelada: como uma mulher branca, burguesa, de classe média alta etc. podia fazer um filme sobre negros pobres, violentados, descendentes de pessoas escravizadas? Nas palavras de Jean Allouch: “Agora, calma! Isso quer dizer o quê? Isso quer dizer que só as tartarugas podem falar das tartarugas?”. É complicado, muito complicado. Um pouco ridículo, caricatural. Parece afirmar que nós essencializamos as posições. Entretanto, isso também põe em cena a questão da legitimidade do discurso. Que discurso é legítimo para dizer algo pelo outro, do outro ou no lugar do outro? Houve um verdadeiro confisco da palavra das ditas minorias. Agora há uma reapropriação da palavra pelas pessoas envolvidas. Evidentemente, poderiam me replicar que um psicanalista não fala no lugar do paciente, a menos que escreva algo fazendo-o falar. Então, é complexa essa questão da escrita de caso. É complexa. Não é simplesmente uma pequena transcrição clínica... É uma edição, você escolhe momentos... Estou falando demais... [Risos.]

LPO: Não, não. Eu diria que você é uma das raras psicanalistas a dizer coisas complexas sem enquadrá-las nos discursos tradicionais, segundo Freud ou segundo Lacan. Penso ser Winnicott quem diz que a psicanálise deve apresentar paradoxos cujo destino deve permanecer insolúvel. É bem oriental...

LL: Isso é um elogio, eu vou tomar como um elogio.

LPO: Sim, exatamente. Isso abre as portas ao invés de fechá-las.

LL: A emancipação para mim é isso; ela é válida tanto no que diz respeito à clínica quanto no que diz respeito à teoria. Tudo o que teoricamente abre as portas me parece importante, na verdade. Tenho uma experiência bastante singular no exercício da psicanálise. Não é simplesmente fazer uma psicanálise, mas exercer a psicanálise. Apesar de tudo, é um ofício divertido. É preciso levá-lo à sério, mas não muito. Ou levar a sério esse ofício, mas sem se levar a sério. Não é uma tarefa fácil.

LPO: Você abre portas. Fiz uma pesquisa sobre os assuntos que você abordou e me deparei com este site: lavieenqueer.wordpress.com. É um blog muito interessante, aprendi um monte de coisas. Existe um debate a respeito de como se dirigir a alguém segundo seu gênero. Aprendi a palavra mégenrer, por exemplo. Há um link para um dicionário de gênero... Como você vê o ensino da psicanálise na França hoje?

LL: É uma questão que ultrapassa a própria disciplina universitária. Hoje é uma questão política. Aliás, o ensino da psicanálise sempre foi uma questão, desde Freud. Como ensinar psicanálise? Como transmiti-la sem ser tomado pelos discursos universitários, dogmáticos, de escola, sem estar em uma mitologia do caso etc.? Apesar da impossibilidade de seu ensino, creio ser importante a psicanálise estar presente na universidade. É uma questão de estratégia, ou de tática, diante das ditas ciências cognitivas, do ensino de terapia cognitivo-comportamental (TCC) etc. Há na França uma verdadeira aversão à psicanálise na universidade. É um bom sinal e é por isso que é preciso ampliar sua presença. Existem ainda verdadeiras questões epistemológicas quanto à afiliação do “campo disciplinar”. Nos Estados Unidos, a psicanálise não é ensinada dentro da psicologia. E na França? Deve-se ensiná-la com as ciências da vida? Como ciência humana? Em suma, Freud e Lacan acertaram: ela é intransmissível e indeterminável [inassignable]. Então, continuemos a ensiná-la.

LPO: Era uma posição geral de Freud: a psicanálise é impossível, mas continua-se a ensiná-la; é impossível, mas continua-se a praticá-la; os charutos seriam o melhor remédio para o tumor na boca... Você acha que propõe novos paradigmas?

LL: Não tenho a pretensão de dizer que proponho. O que tento é pensar a extensão, a miscigenação, o hibridismo (peço emprestado esse termo a meu amigo Thamy Ayouch), o apatridismo da psicanálise. Como exercer a psicanálise num mundo globalizado? O que me interessa é o diálogo com Foucault, Deleuze, Laclau,14 os pensadores da teoria queer e dos estudos de gênero, que impulsionam o questionamento da psicanálise nos pontos que me atraem a atenção. Freud inventou as ferramentas para ultrapassar a psicanálise. É possível uma psicanálise para além do Édipo, como quis Deleuze? Para além da diferença sexual? Pode a psicanálise sobreviver fora do dispositivo discursivo da sexualidade, aquele mesmo que a viu nascer? Essa foi uma tentativa de Lacan, que queria, segundo dizia, “renovar o domínio de Eros”. Há muito ainda para pensar.

A ferramenta do gênero favorece a atualização do saber como um campo que constitui uma verdade partilhada, com normas, usos, lugares-comuns, notadamente sobre a diferença sexual. Quer isso se dê pela noção de indecidibilidade de Derrida, de problema de Butler, de análise discursiva dos dispositivos disciplinares de Foucault, de dilema insolúvel de Joan Scott,15 de práxis do irrepresentável de Françoise Collin,16 como repensar todas essas questões? Freud dizia que a psicanálise deveria ser open to revision. Então, como evitar uma psicanálise “fechada”?

LPO: Você poderia nos falar um pouco da articulação entre as questões ligadas à ética e as questões relativas às mulheres, para além de qualquer moralisme? Creio que se tenha confundido muito ética e moralismo em psicanálise. Houve aqui uma lacanagem de posições contrárias aos homossexuais - por exemplo, ao casamento deles.

LL: Sempre pensei que a psicanálise teve uma história paralela à dos movimentos feministas, inclusive com alguns cruzamentos; que a psicanálise foi um método de emancipação. Não sei como articular ética e feminismo. Houve, sim, essa confusão da qual você fala. Prefiro às vezes, no lugar do termo ética, o termo técnica. Talvez a liberação da palavra das mulheres tenha trazido algo à técnica analítica, mas é bastante curioso dizer isso, porque essencializa essa palavra. É algo que lida mais com a questão dos subalternos (tratada por Gayatri Spivak).17 Houve um confisco da palavra das mulheres e do uso de seu corpo. O que se passa hoje diante desta ou daquela forma de emancipação de tal palavra e de tal uso do corpo? Quais efeitos isso produz nos desejos, na vida em coletividade, na sexualidade, nas políticas de emancipação? É isso o que me interessa hoje na articulação entre psicanálise e emancipação.

LPO: Obrigado, Laurie. Espero que tenhamos a oportunidade de retomar nossa conversa a respeito desse assunto com os leitores brasileiros.

 

 

1 Entrevista realizada em Paris, na casa de Laurie Laufer, em março de 2018.
2 Alain Vanier, psiquiatra e psicanalista francês, doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise, ex-presidente do Espace Analytique e atual diretor do Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot.
3 Antoinette Fouque (1936-2014), psicanalista francesa, cofundadora do Movimento de Liberação das Mulheres (mlf) na França, ativista e teórica dos direitos das mulheres.
4 Jean Allouch, psicanalista francês, foi aluno e paciente de Lacan.
5 Georges Didi-Huberman, filósofo, historiador e crítico de arte francês, professor da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, em Paris.
6 Aby Warburg (1866-1929), historiador da arte alemão.
7 Marie-José Mondzain, filósofa e escritora francesa, nascida na Argélia.
8 Eric Bidaud, psicólogo clínico e psicanalista.
9 Guy Le Gaufey, psiquiatra e psicanalista francês.
10 Catherine Millot, psicanalista e escritora francesa.
11 Marie-Hélène Bourcier, socióloga francesa, conhecida por seu ativismo na comunidade LGBT.
12 Ken Corbett, psicanalista e professor assistente na Universidade de Nova York.
13 Tim Dean, filósofo inglês, autor conhecido no campo das teorias queer.
14 Ernesto Laclau (1935-2014), teórico político argentino pós-marxista.
15 Joan Scott, historiadora estadunidense, trabalha com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero.
16 Françoise Collin (1928-2012), romancista, filósofa e feminista belga que viveu em Paris.
17 Gayatri Spivak, crítica e teórica feminista indiana.

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