SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 issue3Apresentação de Laurie Laufer: uma psicanalista inspirada por Michel Foucault e pelo feminismoTotalitarian mind author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

 

POLÍTICA

 

O sofrimento de origem social1

 

The suffering from social origin

 

El sufrimiento de origen social

 

La souffrance sociale

 

 

Luís Carlos Menezes

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Para além dos sofrimentos causados pelas forças da natureza e pela fragilidade do corpo, há aqueles causados no interior das relações sociais em que estamos inseridos desde o início da vida. Os valores que constituem uma cultura operam em sistemas de crenças socialmente partilhados, sendo introjetados pelos sujeitos como ideal do eu. Tanto as crenças como os valores cimentam a organização social e ordenam as relações entre seus integrantes, mas são suscetíveis de sofrer mudanças pela capacidade crítica e inovadora do pensamento, o que Freud chama de trabalho da cultura e de impulso à liberdade, em particular quando voltado para crenças e valores percebidos como causa de sofrimento social. Ocorre então uma reviravolta, em que estes passam a ser entendidos como preconceitos e intolerâncias, animados pelo ódio primário ao diferente, sendo questionados num processo político no interior da sociedade. Isso porque um período de mutação é desestabilizador e desperta reações regressivas violentas, que encontram uma descrição útil na noção de posição ideológica radical, de René Kaës. A conquista da cidadania nas democracias ocidentais, as mudanças no lugar da mulher e a evolução das mentalidades sobre a vida sexual, como a exigência da virgindade e a normatividade estrita sobre as orientações sexuais, ilustram o tema deste artigo.

Palavras-chave: intolerâncias, crenças, valores, diferenças sexuais, ideologias


ABSTRACT

There are, beyond sufferings that result from the forces of nature and the fragility of the body, those sufferings that are experienced within social relationships of which we have been part since the beginning of our lives. Cultural values operate in systems of beliefs which are socially shared. These values are introjected by subjects as the ego's ideal. Both beliefs and values consolidate social organization and they order relationships among the members of society. These beliefs and values, however, are likely to suffer changes due to the innovative and critical ability to think (i.e. thinking skills) which Freud called the work of culture and the drive to freedom, especially when it comes to beliefs and values that are perceived as the cause of social suffering. And then a turnaround happens: they turn out to be understood as prejudice and intolerance, which are strengthened by the primary hatred of what is different. At this point, they are questioned in a political process within society. This happens because a time of change destabilizes and causes regressive violent reactions, of which one may find a useful description in Rene Kaës's concept of radical ideological position. The achievement of citizenship in Western Democracies, changes in women's place, the evolution of ways of thinking about sexual life as the mandatory virginity and the strict rules about sexual guidance illustrate the subject of this work.

Keywords: intolerance, beliefs, values, sexual diversity, ideologies


RESUMEN

Además de los sufrimientos causados por las fuerzas de la naturaleza y por la fragilidad del cuerpo, existen aquellos causados en el interior de las relaciones sociales en las cuales nos encontramos insertados desde el inicio de nuestras vidas. Los valores que se constituyen en una cultura operan en sistemas de creencias socialmente compartidos, siendo introyectados por los sujetos como ideal del yo. Tanto las creencias como los valores consolidan la organización social y ordenan las relaciones entre sus integrantes, pero son susceptibles a sufrir cambios por la capacidad crítica e innovadora del pensamiento, lo que Freud llama de trabajo de la cultura y de impulso a la libertad, particularmente cuando están dirigidas a las creencias y valores identificados como causa de sufrimiento social. Ocurre entonces un giro en el que pasan a ser entendidas como prejuicios e intolerancias, animadas por el odio primario a lo diferente, siendo cuestionadas en un proceso que es político en el interior de la sociedad. Esto sucede porque un período de mutación es desestabilizador y despierta reacciones regresivas violentas, que encuentran una descripción útil en la noción de posición ideológica radical de René Kaës. La conquista de la ciudadanía en las democracias Occidentales, los cambios en el lugar de la mujer, la evolución de las mentalidades sobre vida sexual como la exigencia de la virginidad y la norma estricta sobre las orientaciones sexuales ilustran el tema de este artículo.

Palabras clave: intolerancias, creencias, valores, diferencias sexuales, ideologías


RÉSUMÉ

Au-delà des souffrances entrainées par les forces de la nature et par la fragilité du corps, il y a celles produites au sein des rapports sociaux dans lesquels nous sommes insérés depuis le commencement de notre vie. Les valeurs qui se constituent dans une culture agissent dans des systèmes de croyances socialement partagées, dont l'introjection est faite par les sujets en tant qu'un idéal du moi. Aussi bien les croyances que les valeurs cimentent l'organisation sociale et ordonnent les rapports parmi ses éléments constituants, mais elles sont susceptibles de souffrir des changements en raison de la capacité critique et innovatrice de la pensée, ce qui Freud appelle le travail de la culture et l'impulsion vers la liberté, en spécial lorsqu'elles s'adressent à des croyances et à des valeurs entendues comme la cause de la souffrance sociale. Il se passe alors un revirement, où elles commencent à être vues comme des préjugés et des intolérances, animées par la haine primaire contre ce qui est différent, questionnées dans un processus politique au sein de la société. Tout cela est dû au fait qu'une période de mutation est déstabilisante et elle réveille des réactions régressives violentes dont on trouve une description utile dans la notion de position idéologique radicale de Réné Kaës. La conquête de la citoyenneté dans les démocraties Occidentales, les changements du rang de la femme, l'évolution des mentalités concernant la vie sexuelle, telles que l'exigence de la virginité et la normativité stricte sur les orientations sexuelles, illustrent le sujet de cet article.

Mots-clés: intolérances, croyances, valeurs, différences sexuelles, idéologies


 

 

Depois de mencionar os sofrimentos causados pelas forças da natureza e os que decorrem da fragilidade do corpo, Freud dedica o essencial da obra O mal-estar na civilização ao sofrimento relacionado com nossa inserção social, submetidos que somos às “normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade” (1930/2010a, p. 43). Na difícil busca por felicidade, como nos arranjamos - cada um de nós - com essas normas que, uma vez interiorizadas, passam a operar em nossa vida psíquica como ideais que regulam a maneira de convivermos uns com os outros e, mais que isso, tornam possível esse convívio?

Os ideais, como valores, dependem do conjunto de representações e crenças partilhadas em cada cultura e promovidas pelos sistemas religiosos, morais e políticos vigentes, num processo passível de evolução histórica, ou seja, potencialmente aberto a transformações.

A palavra civilização ou cultura [Freud escreve Kultur] designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. (p. 49)

É no ordenamento das relações sociais que Freud parece encontrar o gérmen, como que a questão essencial, do que seja o cultural: “Talvez possamos começar afirmando que o elemento cultural se apresentaria como a primeira tentativa de regulamentar essas relações” (p. 56). A instituição de formas de poder inscritas numa ordem legal, com direitos e deveres aos quais todos devem se submeter, é o que tenta circunscrever a lógica da força bruta nas relações sociais.

A evolução cultural enquanto processo histórico é expressão daquilo que se faz sentir como impulso à liberdade, liberdade evocada nesse contexto como capacidade de revolta contra uma injustiça presente e que, apesar de violenta, se inscreve numa dinâmica que Freud considera compatível com a civilização, por propiciar uma maior evolução cultural.

Por outro lado, pode haver movimentos contrários à civilização, que são expressão de hostilidade contra ela, como recusa em submeter-se à ordem legal. Nesse caso, não se trata da revolta contra o sofrimento infligido a um grupo social, mas do modo de agir de um indivíduo ou um grupo de indivíduos que restaura a lógica da força bruta, da prepotência, em ações predatórias e violentas, que ignoram o respeito aos demais. Age-se com uma liberdade ilimitada, desregrada, pré-cultural, que Freud qualifica de sem valor; para ele, a única liberdade efetiva é aquela exercida no interior de uma ordem cultural partilhada.

É, pois, como revolta contra um sofrimento que lhe esteja sendo infligido pela sociedade que um indivíduo ou um grupo de indivíduos exercem de forma sustentada a liberdade. Isso só é factível na medida em que ele(s) se diferencia(m), saindo de uma condição massificada, acrítica, aderente a crenças sociais naturalizadas, e alcança(m) uma capacidade de discernimento e de nomeação, que lhe(s) permite reconhecer essas crenças como fonte de hostilidade e de destruição para suas possibilidades de vida, de modo que elas sejam destituídas, que percam o peso social de verdades partilhadas, nutridoras dos juízos e dos imperativos que pesam sobre os sujeitos. Vemos por que essa liberdade tem valor para Freud: porque ela acontece no interior da cultura, como trabalho fermentativo do pensamento portador de inovação e de ganhos civilizatórios.

É nessa perspectiva que encontramos a reflexão freudiana acerca do sofrimento causado no campo das relações sociais pela rejeição, pela intolerância e pelos preconceitos. Sendo em essência o terreno em que se negociam os conflitos, a cultura é criada e atravessada por eles, em particular pelos que dizem respeito às normas e aos valores como crenças coletivas, determinantes das maneiras de ser previstas e das que são socialmente admitidas. Essas crenças estão nos fundamentos do convívio social e são sólidas como tem que ser um alicerce.

No entanto, é próprio do trabalho da cultura ousar transgredir a “proibição de pensar” e chegar a um juízo lúcido que leve à renovação de valores, sempre que estes forem percebidos como opressivos e injustificados. Quando algo dos valores estabelecidos entra em crise, desestabilizado pela aptidão crítica para pensar de outro modo ao que até então fora objeto de crença coletiva, surgem tensões políticas no campo social e movimentos capazes de propiciar conquistas civilizatórias de novas configurações culturais, de forma que tais crenças, uma vez ultrapassadas, deixem de ser causa de sofrimento.

De fato, a desestabilização dessas referências desperta intensas reações na sociedade. Muitos se sentem vivamente ameaçados pela perda da velha crença, do “valor” transformado em “preconceito”, ao ser esvaziado de sua razão, de seu poder de evidência. Uma das consequências é um rearranjo que envolve perda da ascendência de uns sobre outros, em razão do declínio da linha de demarcação valorativa, com uma quebra desestabilizadora no horizonte das certezas.

“Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais” (Freud, 1930/2010a, p. 58). Essas passagens são, portanto, zonas de turbulência na evolução cultural que assustam, causam medo, angústia e violência, com embates que envolvem mudanças no interior do tecido social de crenças e valores.

Nosso tempo, se o pensamos incluído no que vem acontecendo nos últimos dois ou três séculos nas sociedades ocidentais, é rico em transformações dessa natureza. Antes de tudo, o poder irrestrito dos monarcas e da nobreza deu lugar à cidadania democrática. Essa conquista permanece um objeto de embate no interior da cultura, nos desdobramentos políticos de nossa história, em que a restauração de formas tirânicas de poder, em nome de ideais redentores, tem sido uma constante.

No ambiente atual de nosso país, temos podido ver com minúcia e em extensão indivíduos e grupos que, dentro do Estado e na interface com ele, vêm há muito tempo agindo em ruptura com o pacto cultural, de um modo predatório, baseado na lei do mais forte, deixando de se orientar pelo ideal democrático do respeito e da consideração pelas necessidades do conjunto da sociedade.

Outro eixo importante das grandes transformações históricas reside na queda do poder das religiões, especialmente o da Igreja Católica. As pessoas passaram a dispor de uma liberdade nova em sua vida privada, graças à atenuação das ideologias morais das igrejas e dos costumes severos que impregnavam os espíritos assombrados pelo obscurantismo religioso. A evolução cultural liberalizante, que tornou a vida mais respirável nas últimas décadas, foi com certeza determinante para o viés mais ameno do discurso e dos costumes religiosos tradicionais.

Um fio significativo nessa evolução foram os embates e ganhos sociais em torno dos direitos das mulheres. O “equilíbrio cultural” diminuiu as restrições a que elas estavam submetidas, como seres da casa e dos filhos, abrindo-lhes a possibilidade de participar no debate e na ação política, com o direito de votar e de ser votadas para cargos de poder, assim como a possibilidade de ter interesses profissionais num leque crescente de atividades, dispondo das mesmas escolhas que os homens.

A erosão progressiva das crenças sociais que sustentavam a moral sexual, particularmente estrita no que dizia respeito às mulheres, levou a uma grande reviravolta na revolução contracultural do fim dos anos 1960, da qual resultou uma mudança irreversível nas concepções que regravam o lugar da mulher e do homem na família. Desde então, a estrutura familiar tendeu a se democratizar. O poder excessivo, quase total, do homem sobre a mulher e os filhos foi perdendo sua força. A família passou a ser vista, pelas pessoas e pelas leis, como um grupo formado por dois adultos que desejam viver juntos e que, se têm filhos, devem cuidar deles, de suas necessidades e de seu bem-estar, com obrigações basicamente iguais.

Como expressão da transformação de crenças que por muito tempo tiveram grande força sobre o espírito das pessoas, o tabu e a exigência da virgindade da mulher para poder casar deixou de existir em nosso modo de pensar, e o divórcio, outro tabu, tornou-se legal. São evoluções das mentalidades na cultura que desfizeram causas de sofrimento, vistas hoje como obtusas e desnecessárias, ao menos para a grande maioria da sociedade. A tendência ao afrouxamento do controle social rígido sobre a sexualidade de modo geral, mas sobre a sexualidade das mulheres em especial, tem dado margem a mudanças também no juízo preconceituoso, ou seja, condenatorio, de orientações sexuais consideradas desviantes da norma, aviltantes e degradantes, as chamadas homossexualidades.

São todos padrões ordenadores que, com base nos ideais normativos comuns, decidem se a pessoa será aceita na família e nos diferentes espaços sociais ou se será rechaçada. Esses ideais, introjetados como formações de ideal no superego, tornam-se além disso causa de conflitos intrapsíquicos, pois neles está contida a verdade sobre como as coisas são e como elas devem ser. Se uma pessoa se vir numa condição diferente da prevista socialmente, ela não só sofrerá a crítica de si, a desqualificação e a rejeição como objeto de escândalo, de zombaria, de censura e de punição pelos outros - isso podendo ocorrer desde a infância e a adolescência, na família e na escola -, como ela própria se sentirá culpada e envergonhada de si mesma.

A repressão social veiculadora dessas normas poderá deixar o sujeito, por muito tempo, perdido e confuso por não encontrar no repertório do discurso familiar e social em que vive a consideração, como parte dos possíveis, de modalidades de ser mais condizentes com a que se apresenta para ele, por exemplo, na elaboração psíquica e no entendimento de sua sexualidade. A evolução cultural, fruto do trabalho da cultura, na expressão de Freud, e de lutas políticas no campo social, ao deslocar crenças morais arraigadas em favor de possibilidades de pensamento mais abertas e flexíveis, capazes de reconhecer uma diversidade até então negada e recusada, aumenta a tolerância das normas sociais para acolher uma diversidade nos modos de ser inerente à vida e à humanidade das pessoas.

Lembro, a propósito, esta passagem de Freud:

O mesmo pai (ou instância parental) que deu a vida ao filho e o protegeu dos perigos dessa vida mostrou-lhe também o que deve e o que não deve fazer, instruiu-lhe a aceitar determinadas restrições a seus desejos instintuais, fê-lo saber que considerações pelos pais e irmãos se esperam dele, para que se torne um membro tolerado e bem-visto [itálico meu] do círculo familiar e, depois, de círculos mais amplos. (1933/2010b, pp. 329-330)

Sua segurança na vida, acrescenta Freud, depende disso.

De fato, a intolerância social é não só fonte de violência infusa e de exclusão moral do “desviante” como inviabilizadora de muitas de suas possibilidades de vida em sociedade, tornando-o objeto inclusive de agressão física, até mesmo mortal. Estão em jogo aí tanto a diversidade de tradições religiosas e culturais quanto as diferenças étnicas, sexuais e de condição social.

Podemos, agora, nos questionar sobre a natureza das disposições psíquicas implicadas nas crenças constituintes da organização social, assim como na intolerância que delas decorre, sobretudo quando entram em declínio e tendem a se transformar.

O fundo conformista que nos modela como iguais aos demais e a aspiração a ser “mesmos”, parte de um todo, nos grupos sociais foi o fio condutor que, num trabalho anterior, segui na interrogação sobre os movimentos que envolvem atos de lucidez alcançados pela força do julgamento e que se fazem à contracorrente do apelo massificador de base, cimento da formação social (Menezes, 2006).

A esse propósito, lembro a afirmação de Freud de que “a psicologia da massa é a mais velha psicologia humana; aquilo que, negligenciando todos os vestígios da massa, isolamos como psicologia individual, emergiu somente depois, aos poucos, e como que parcialmente ainda, a partir da velha psicologia da massa” (1921/2011, pp. 85-86).

A questão se desloca agora para a condição psicopatológica das pessoas e dos grupos sociais quando um valor de referência solidamente estabelecido se desfaz. Com isso, as formas corriqueiras da hostilidade socialmente partilhada contra os desviantes tornam-se agressividade franca, aberta, agora injustificada, contra membros do grupo social que estão deixando de ser considerados desviantes.

Já não mais socialmente camuflado como parte do que até então fora tido por natural, o ódio vem à tona como tal, ou seja, como a tendência mais arcaica no funcionamento narcísico do eu e que, segundo o mito freudiano de Totem e tabu (1913/2012), é o objeto crucial do pacto fraterno que dá origem ao cultural e o sustenta em torno de um ideal comum.

De fato, antes de introduzir no psiquismo a concepção de uma pulsão de morte, tendente à redução das diversidades e das complexidades engendradas pela vida e pelo pensamento, Freud já havia chegado à teoria de uma condição primeira na economia narcísica em que apenas o que coincidisse com o próprio eu seria aceitável, sendo o restante, o que não fosse eu, rechaçado e aniquilado como causa de desprazer e de ameaça ao eu, nisso consistindo o ódio. O ódio e o diferente coincidiriam, pois, nesse nível mais arcaico de nosso funcionamento (Freud, 1915/2013). Em outro plano, as comunidades culturais reforçam os laços sociais, em torno de um ideal comum, pelo ódio votado em conjunto contra o estrangeiro, contra o diferente, contra todo aquele em descompasso com esse ideal, mesmo que ele faça parte da comunidade (Freud, 1921/2011).

Deixo de lado os desenvolvimentos dessa problemática em Freud, retomada principalmente por Melanie Klein e depois por Lacan, para mencionar alguns aportes de René Kaës, baseados em experiências com terapia de grupo, iniciadas por Pichon-Rivière e Bleger na Argentina, e seguidas por Foulkes, Rickman e Bion na Inglaterra.

Essa abordagem permitiu o estudo de funcionamentos primários, de natureza psicótica, induzidos pela inserção de um indivíduo na vida de um grupo, que mostra ter uma dinâmica específica. Tais funcionamentos envolvem o surgimento de certezas violentas e redutoras, partilhadas pelos integrantes, movimentos flagrados como que in statu nascendi, dando origem a elaborações e formulações teóricas específicas, como o conceito de posição ideológica, de Kaës (1980/2016).

Vou me ater a essa configuração. Ela dá uma medida da natureza do que está em jogo nas transformações dos valores culturais de que falamos, e também do que as torna tão difíceis, inquietantes e disruptivas para muitos, suscitando tensões sociais e reações fortemente agressivas.

Na formulação do conceito mencionado, Kaës aproveita o que foi elaborado por Freud em relação ao supereu como depositário dos ideais culturais. Na 32.ª das Novas conferências introdutórias à psicanálise, ele afirma que o supereu é portador “da tradição, de todos os constantes valores que assim se propagaram de geração em geração”, acrescentando que “o passado, a tradição da raça e do povo, prossegue vivendo nas ideologias do supereu, e apenas muito lentamente cede às influências do presente, às novas mudanças” (1933/2010b, pp. 205-206)

O uso da palavra ideologia aparece nessa passagem marcando a divergência de Freud com a ideologia marxista. Há de fato uma reflexão bem mais ampla de Freud, em sua obra, voltada para os sistemas religiosos e filosóficos e para as visões de mundo, para as funções que estas atendem e para os ideais sociais que prescrevem. A 35.a conferência começa com uma tentativa de definir o que é uma visão de mundo, tentativa essa que pode ser considerada uma primeira aproximação do que Kaës desenvolve como posição ideológica:

Uma visão de mundo é uma construção intelectual que, a partir de uma hipótese geral, soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência, na qual, portanto, nenhuma questão fica aberta, e tudo que nos concerne tem seu lugar definido. (Freud, 1933/2010b, p. 322)

O conjunto de representações estabelecidas pela tradição e inscritas no supereu inclui prescrições reasseguradoras como formações de ideal e como visão de mundo, que orientam “sobre a que devemos aspirar e como alocar da maneira apropriada os nossos afetos e interesses” (p. 322). As prescrições e os sistemas de premiação e castigo das ideologias religiosas são o seu modelo principal.

A ideologia assim entendida corresponde ao vínculo social nas comunidades culturais, e sempre que esse vínculo fica ameaçado de ser rompido ou alterado a posição ideológica é reforçada, pois a mudança ameaça por sua vez a identidade pessoal apoiada nessa ligação, baseada em crenças comuns a todos (Kaës, 1980/2016).

O entendimento que encontramos num artigo de Adam Phillips (2008) segue nesse sentido. De acordo com o autor, a exacerbação dos fundamentalismos religiosos - entre os quais tem se destacado, na atualidade, o furor fanático islâmico - corresponde a uma reação contra a cultura científica e secular que se impôs no Ocidente e transformou o mundo. Trata-se de uma guerra santa, de uma luta de vida ou morte pela reafirmação dos costumes, das crenças e da moral islâmica contra mudanças que despertam o sentimento catastrófico de aniquilamento. Nesse movimento, dominado pelo fanatismo, verdadeira loucura do ideal, a desconfiança torna-se generalizada, voltandose até mesmo para povos islâmicos mais tradicionais, também tratados como ameaça mortal em razão de pequenas diferenças culturais ou pessoais, sendo igualmente visados pela violência brutal e imediata da guerra santa.

A posição ideológica é modulada por Kaës entre a referência ao eu ideal, no registro do narcisismo primário, descrito antes como amor de si mesmo, o qual, sob o primado exclusivo do princípio do prazer, leva ao ódio mortal daquilo que o contraria e ameaça, por não coincidir com ele, e a referência ao ideal do eu. Este supõe a capacidade de reconhecimento das próprias insuficiências, toda realização tendo que passar por identificações com as pessoas amadas. A posição ideológica fundada sobre o ideal do eu tem um papel decisivo na vida relacional das instituições e das comunidades culturais; é aberta aos processos de transformação e à negociação de compromissos, baseados no princípio de realidade.

Diferente é o que Kaës descreve como posição ideológica radical. Esta é regida pela lógica de funcionamento do eu ideal. Fundada em certezas absolutas, não tolera nenhuma transformação. Afirma-se contra a incerteza e o desconhecido, como um pensamento contra o pensar ou como

uma autêntica inaptidão a pensar; nela há uma prevalência dos mecanismos de recusa da percepção da realidade e do desmentido. Comanda uma ação e a justifica. É imperativa, desconfiada, não admite nenhuma diferença, nenhuma alteridade, e impõe proibições de pensamento. Está subentendida por angústias de aniquilamento iminente e por fantasias grandiosas de tipo paranoico. É também uma medida defensiva contra os momentos caóticos. (1980/2016, pp. VII-VIII)

Podemos perceber esses dois modelos de funcionamento operando em nós, entre nós, tensionados um em relação ao outro, o predomínio de um ou de outro favorecendo ou desfavorecendo o trabalho da cultura. Temos, assim, alguns elementos para pensar a raiz das reações sádicas e destrutivas em nós e entre nós contra as pessoas que se mostram diferentes, fora dos padrões correspondentes aos ideais normativos da cultura em que vivemos, e contra os movimentos de oposição no plano social, quando a evolução cultural passa a tornar inaceitável humilhar, discriminar e estigmatizar certos modos de ser.

Consideremos o caso da chamada homossexualidade, estigma social criado com base nas fantasias e na aversão em relação a flutuações da orientação sexual, quando o desejo sexual e a ligação amorosa ocorrem entre pessoas do mesmo sexo. O psicanalista Jurandir Freire Costa dedica o livro A face e o verso à problematização de uma pergunta suscitada pela palavra homossexualidade em nossa cultura:

O que nos faz ... dizer, reconhecer, saber, definir ou descrever alguém como homossexual? E o que faz com que alguém que se identifique ou seja identificado como homossexual venha a ser visto como uma espécie de homem à parte? Homens que só conseguimos perceber, julgar, avaliar pondo em primeiro plano suas inclinações eróticas. O que nessa figura do sujeito captura tanto o nosso imaginário? (1995, p. 53)

O autor, curiosamente, não inclui as mulheres, cuja orientação sexual confronta-se com as mesmas questões.

Na sequência, Costa realiza uma interpelação exigente, solidamente argumentada, ao que está no centro dessas interrogações. Seu estudo volta-se para a contextualização histórica do surgimento da palavra homossexual e do “ser” que ela constitui ao designar, efeito que é questionado pelo autor. Acompanhando o levantamento feito por ele, vemos que o “ser homossexual” foi objeto de inúmeros trabalhos psicanalíticos ao longo do século XX, todos impregnados pelo preconceito social que implica a certeza de haver algo muito errado a ser explicado e tratado em pacientes com essa orientação sexual, o que aliás aparece nas hipóteses teórico-clínicas. As honrosas e poucas exceções na literatura, segundo o autor, além de Freud, claro, são seus contemporâneos Ferenczi, Rank e Brill e, no período posterior a ele, Marmor, Stoller e Lacan, basicamente.

A menção ao livro de Costa, publicado em 1995, nos interessa aqui não só por dizer respeito diretamente a nossa comunidade de trabalho, mas por ser uma ilustração impressionante do poder de convicção que uma formação preconceituosa pode ter sobre o pensamento - no caso, levando-o a ir na contracorrente do próprio método psicanalítico, baseado na escuta das singularidades do analisando, sejam elas quais forem, embora saibamos que os preconceitos do analista são uma das causas de sua resistência na escuta; e também levando-o a ir na contracorrente das descobertas profundamente inovadoras sobre a sexualidade humana feitas por Freud nos primeiros tempos de sua obra.

Desde 1905, Freud mostrou que o desejo inconsciente, que move o psiquismo, é a encarnação das pulsões sexuais, as quais não trazem em si os objetos de sua satisfação, sendo estes criados, achados, mudados, numa história em aberto, a ser traçada no interior do complexo de Édipo. Segundo essas formulações, a escolha por alguém do outro sexo é tão problemática quanto a escolha por alguém do mesmo sexo, não havendo, portanto, nada de automático, de natural, de preestabelecido definindo que a preferência sexual seja por pessoas do outro sexo. O que há é uma condição dos ideais sociais que leva à (auto)valorização quando a tendência dominante se volta para o outro sexo, e à (auto)depreciação quando ocorre o contrário.

Durante todo o século XX, as crenças preconceituosas envolvendo essa orientação da vida amorosa e sexual fundamentaram a recusa, vivida como natural, em admitir tais colegas na comunidade psicanalítica e em reconhecê-los como aptos para exercer a psicanálise. Dois artigos recentes, publicados um na revista Ide (Martins, Leite, Porto & Leite Netto, 2014) e o outro na Revista Brasileira de Psicanálise (Leite Netto, 2014), são bastante ilustrativos e informativos sobre isso entre nós. No primeiro deles, somos lembrados de que foi somente em 2002 que a Associação Psicanalítica Internacional desfez a norma de exclusão, ao aprovar uma regra de não discriminação (!), formulada assim: “A seleção de candidatos para o treino em psicanálise será feita somente com base em qualidades diretamente concernentes à sua habilidade de aprender e funcionar como psicanalista” (citado por Bulamah & Kupermann, 2013, p. 161).

A simplicidade e a lógica evidente dessa formulação, até então submetida entre tantos psicanalistas e por tanto tempo ao que Freud chama de interdição de pensar (Denkverboten), dá a medida do poder de recalcamento da crença preconceituosa. E alguém de grande prestígio entre os psicanalistas, o próprio Freud, já o havia dito 81 anos antes, numa carta de teor semelhante, enviada para Jones em 1921 e assinada também por Otto Rank, opondo-se à decisão apoiada por Jones de recusar uma pessoa que pretendia ser analista sob a alegação de que “seu homossexualismo era intratável”: “Querido Ernest, no que diz respeito à filiação de homossexuais, consideramos o assunto e discordamos de você. ... A decisão em tais casos deve depender de um exame acurado de outras qualidades do candidato” (citado por Costa, 1995, p. 52).

Com certeza, nesse meio-tempo, as ideologias psicanalíticas variaram de um lugar para outro e de um analista para outro em sua prática clínica. Vimos que o modo de inserção de cada um na relação com os preconceitos culturalmente dominantes pode ser bastante diferente. Em 1965, a psicanalista Judd Marmor questionou a tendência, segundo ela frequente na época, de delinear o que seria uma “personalidade homossexual”:

Certas generalizações de características de personalidade dos homossexuais virão a ser compreendidas como parte de uma tessitura total, que inclui um tipo específico de costumes e valores sociais, o qual reprova e condena o comportamento homoerótico e faz a vida mais difícil e arriscada para os homossexuais. (citada por Costa, 1995, pp. 284-285)

Em seguida, ela pergunta se essas pessoas teriam os mesmos caracteres se vivessem numa sociedade que os tivesse em alta estima.

Apesar do fechamento das instituições psicanalíticas, impregnadas por esse preconceito, a sensibilidade para o sofrimento psíquico de causa social que daí provinha expressava-se aqui e ali entre psicanalistas, assim como na intimidade de seu consultório e de sua escuta, testemunhando o trabalho da cultura, que, apesar de todas as mudanças alcançadas pela ação política, é condição para a erosão de posições ideológicas que permanecem bastante vivas sobre essa questão.

 

Referências

Bulamah, L. C. & Kupermann, D. (2013). Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico. Estudos da Língua(gem), 11(1),147-164.         [ Links ]

Costa, J. F. (1995). A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (2010a). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 13-122). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (2010b). Novas conferências introdutórias à psicanálise. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 123-354). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1933)        [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2013). As pulsões e seus destinos (P. H. Tavares, Trad.). São Paulo: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Kaës, R. (2016). L'idéologie: l'idéal, l'idée, l'idole. Paris: Dunod. (Trabalho original publicado em 1980)        [ Links ]

Leite Netto, O. F. (2014). Psicanalistas diante da questão homossexual: perplexidade? Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1),81-92.         [ Links ]

Martins, E. S. T., Leite, R. L., Porto, T. S. & Leite Netto, O. F. (2014). Psicanálise e homossexualidade: da apropriação à desapropriação médico-moral. Ide, 57(36),163-177.         [ Links ]

Menezes, L. C. (2006). Preservem as flores selvagens: aderência, adesão e lucidez. Revista Brasileira de Psicanálise, 40(2),73-81.         [ Links ]

Phillips, A. (2008). Sobre o fundamental. Ide, 31(47),16-23.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luis Carlos Menezes
Rua Deputado Lacerda Franco, 300/134
05418-000 São Paulo, SP
luismzes@hotmail.com

Recebido em 17/9/2018
Aceito em 1/10/2018

 

 

1 Versão revista de um trabalho apresentado no 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza (CE), em novembro de 2017.

Creative Commons License