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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

 

POLÍTICA

 

Os errantes, um desafio para a psicanálise: uma clínica da errância?

 

Wanderers, a challenge for Psychoanalysis: a clinical practice of “wandering”

 

Los errantes, un desafío para el psicoanálisis: ¿una clínica de la errancia?

 

Les errants, un defi pour la psycanalise: une clinique de l'errance?

 

 

Caterina Koltai

Professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), socióloga e psicanalista. Autora dos livros Psicanálise e política: o estrangeiro (Escuta, 2000) e Totem e tabu: um mito freudiano (Civilização Brasileira, 2010)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, a autora aborda um dos aspectos mais sombrios da globalização neoliberal, a presença cada vez maior de refugiados e errantes, assim como a particularidade de uma escuta analítica do traumatismo vivido por essas pessoas, que aceitaram morrer para poder viver. Seria possível falar de uma clínica da errância?

Palavras-chave: globalização, refugiado, trauma, errância


ABSTRACT

This article addresses one of the darkest aspects of neoliberal globalization, i.e. the increasingly massive presence of refugees and migrants. The author writes about the particularity of an analytic listening to the trauma that has been experienced by those who have agreed to die in order to live. Perhaps we could speak of a clinical practice of “wandering”?

Keywords: globalization, refugee, trauma, wandering


RESUMEN

Este artículo aborda uno de los aspectos más sombríos de la globalización neoliberal, la presencia cada vez mayor de refugiados y errantes, así como la particularidad de una escucha analítica del trauma sufrido por estas personas que aceptaron morir para poder vivir. ¿Podríamos tal vez hablar de una clínica de la errancia?

Palabras clave: globalización, refugiados, trauma, errancia


RÉSUMÉ

Le présent article se penche sur l'un des aspects les plus sombre de la mondialisation néolibérale, celui de la présence chaque fois plus massive de réfugiés et d'errants, ainsi que sur la particularité d´une écoute analytique du traumatisme enduré par ces personnes qui ont accepté de mourir pour pouvoir vivre. Pourrionsnous parler d´une clinique de l'errance ?

Mots-clés: mondialisation, réfugié, trauma, errance


 

 

Com frequência, temos ouvido falar das dificuldades da psicanálise na contemporaneidade. Ainda que certamente existam, elas não me parecem maiores do que as enfrentadas por Freud e seus primeiros discípulos. Essa velha senhora, já centenária, testemunha das duas guerras mundiais, do totalitarismo, do colonialismo e do imperialismo, vem de fato enfrentando percalços. Prefiro, porém, abordá-los como desafios, o que me convoca a manter a curiosidade aguçada para as novas questões que se apresentam no mundo, e consequentemente para a psicanálise. Mais do que nunca, é hora de ousar avançar clínica e teoricamente, à margem das categorias e dos conceitos teóricos de que dispomos, para dar conta de nossa experiência. Não é demais lembrar que uma das características de um trabalho de análise é nos permitir pensar, desconstruir certezas, modificando assim nossa maneira de ver o mundo e situar-nos nele.

A meu ver, o fato de o inconsciente ignorar o tempo - passado, presente e futuro - não significa que a psicanálise se situa fora do tempo; tampouco que o analista pode se permitir ignorar a configuração sociopolítica que caracteriza determinada época. Antes, o analista deve estar à escuta de seu tempo e levar em conta as transformações e os conflitos que o perpassam, assim como as atrocidades sociais e políticas que se desenrolam incessantemente no espaço que partilha com outros humanos. Isso porque tais transformações acarretam outras tantas no campo clínico e em suas práticas.

Não estou dizendo nada de original: a percepção de que tanto a clínica quanto a teoria psicanalítica não podem prescindir de uma leitura do social e do político já se tornou praticamente um consenso, como atestam este número da revista e vários encontros que vem sendo realizados.

Muitos têm se debruçado sobre o mal-estar de nossa sociedade neoliberal e globalizada, afirmando que seu funcionamento e sua racionalidade estão presentes em todos os campos da vida social, inclusive em nossas formas de amar e sofrer, com o que concordo. A meu ver, o sintoma é sempre histórico, muda com o tempo, acompanhando as transformações do outro, tanto no plano pessoal quanto no coletivo, e sendo a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo.

É o que vou tentar mostrar aqui, atendo-me a um aspecto específico da globalização neoliberal, talvez o seu lado mais obscuro: a presença cada vez maior de refugiados, exilados e errantes no mundo. Ao mesmo tempo, vou tratar da possível escuta analítica do traumatismo vivido por essas pessoas, que aceitaram morrer para poder viver. Seria possível falar de uma clínica da errância? Não sei ainda. Sei apenas que o refugiado, seja ele político, econômico ou climático, é uma das principais figuras de nosso século.

O número de pessoas forçadas a deixar seu local de origem por causa de conflitos, perseguições, violência ou violação de direitos humanos é o maior da história. O último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) a que tive acesso, referente ao ano de 2016, expõe um panorama aterrorizante: 65,6 milhões de refugiados, com 40,3 milhões de deslocados internos. Metade desse número global é composta de crianças. Ao contrário do que poderíamos supor, a grande maioria dos refugiados foi acolhida por países em desenvolvimento, como Turquia, Jordânia e Líbano. No Brasil, a demanda por refúgio cresceu 148% de 2010 para cá. Por essas contas, uma em cada 113 pessoas do planeta seria um refugiado (Acnur, 2017).

Entendo por refugiado alguém que foi obrigado a deixar seu país natal e procurar abrigo em outro país. Desprovido de cidadania, é ao mesmo tempo um incluído e um excluído, na medida em que está inscrito no direito, mas sob a forma da exclusão. Novo habitante dos limites, o refugiado encarna a figura absoluta do estrangeiro que solicita a hospitalidade de uma nova comunidade política. Sobrevive como um resto, representa o que resta da condição humana, e é sobretudo isso o que me interessa abordar neste trabalho.

De acordo com Ruiz (2014), a invisibilidade dos refugiados e exilados é uma forma de esconder a barbárie das estruturas econômicas e políticas que a produzem, o que personifica a afirmação de Benjamin de que não há monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie.

Tal realidade vem sendo estudada pela sociologia, pela economia, pelo direito e pela filosofia. A simples existência desses seres humanos, que vivem no exterior de uma ordem que não os reconhece como cidadãos de pleno direito, tem o poder ético e político de interpelar a ordem internacional atual. Já interpelara, aliás, Hannah Arendt, a primeira a relacionar a existência dos direitos humanos à ideia de Estado-nação, prevendo que o desaparecimento deste acarretaria o fim daqueles. Desde muito cedo, ela se deu conta de que os refugiados viriam a representar o paradigma de uma nova consciência histórica, tornando-se, de certa maneira e concomitantemente, a vanguarda de seus povos e a figura emblemática dos povos futuros.

Giorgio Agamben (1997), ao reler Arendt, avançou na questão e constatou que, em nossos dias, com a erosão dos Estados-nação (por exemplo, Iraque e Líbia) e das categorias políticas legais, o refugiado vem se tornando a própria figura do homem moderno, a condição futura de todos nós, a única categoria pela qual será possível imaginar os limites e as formas da comunidade política que virá. Segundo ele, a periferia interroga e põe em evidência os limites de nossas instituições, a ponto de a própria sobrevivência política do homem só ser possível se o cidadão entender que ele próprio é um refugiado.

Agamben estabelece uma analogia entre o processo de desumanização posto em prática pelo projeto nazista e a evolução das sociedades contemporâneas ocidentais, que vem multiplicando os lugares e as circunstâncias do que ele chama de estado de exceção, cujo paradigma é, em sua opinião, o campo de concentração e extermínio. A leitura de seus textos nos permite pensar o refugiado contemporâneo como um homo sacer, essa figura do direito romano arcaico que se materializa no humano que pode ser morto sem nenhum ritual e em toda a impunidade, o humano em relação ao qual não se aplica a proibição do assassinato. O homo sacer encarna a vida nua (zoé) e remete aos milhões de vidas exterminadas durante os genocídios, àqueles que foram abandonados tanto pelos deuses quanto pelos homens (Zaltzman, 1999).

Agamben propõe uma interrogação radical da própria definição de vida humana e de suas possibilidades, reencontrando questões que já nos haviam sido postas pela chamada literatura de testemunho, em obras como A espécie humana, de Robert Antelme, É isto um homem?, de Primo Levi, e Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov, que descortinaram a figura da testemunha sobrevivente. Todos esses livros foram escritos em nome de uma exigência comum: não trair os mortos. Chalámov (1986) observa que o escritor escreve na língua daqueles em nome de quem escreve, os mortos, correndo o risco de não ser entendido por aqueles para os quais escreve, os vivos. O fato é que esses autores se perguntaram o que significa pertencer à espécie humana, o que é ser um homem e como permanecer sendo um.

Num artigo publicado em 16 de agosto de 2018 no jornal Le Monde, Etienne Balibar dá um passo à frente ao questionar a quem efetivamente nos referimos ao falar de refugiados e emigrantes, sugerindo antes incluí-los numa categoria mais ampla, a dos errantes. A seu ver, e concordo com ele, a maneira como nomeamos essa população define os direitos que lhe reconhecemos e aqueles dos quais a privamos. Cita como exemplo o fato de o governo de diferentes países usar a categoria refugiado não para acolher os que fogem da crueldade de sua existência, mas para deslegitimar os que não correspondem a alguns critérios formais ou que não sabem responder a um interrogatório. Por essa razão, prefere chamá-los de errantes e falar de errância migratória no lugar de migração.

Balibar diz que os errantes não são uma classe nem uma raça; tampouco representam a multidão. Para ele, os errantes são a parte móvel da humanidade, acossada pela violência do desenraizamento e da repressão; são a parte da população cuja condição concentra os efeitos de todas as desigualdades do mundo em que vivemos. Tendo novamente a concordar com ele, razão pela qual me pergunto se também não poderíamos dar um passo à frente e falar de uma clínica da errância.

Para tentar responder a essa pergunta, preciso formular, se não propriamente uma hipótese, uma nova pergunta, a saber: a atual crise migratória, com seus milhões de refugiados, não nos apresentaria, enquanto analistas, e guardadas as proporções, questões da mesma ordem que a Primeira Guerra Mundial e a desilusão causada por ela apresentaram a Freud, e que a Segunda, com seus campos de extermínio, apresentou a Lacan? Se é que a comparação se sustenta, de que modo o sofrimento dos refugiados interpela a escuta do analista, ainda que não necessariamente em seu consultório? Minha experiência de apátrida na infância me sensibilizou desde cedo para essas questões, nas quais fui me aprofundando ao longo do tempo, como supervisora de um belo trabalho feito com migrantes em São Paulo por um grupo de jovens, competentes e implicadíssimos analistas paulistas. Outra fonte para minha reflexão são os analistas da associação Paroles Sans Frontières, que há mais de duas décadas vêm desenvolvendo um importante trabalho em Estrasburgo, patrocinados pela Comunidade Europeia.

Vejamos. Freud remanejou constantemente sua teoria em função daquilo que lhe ensinava a grande história. Já em 1915, apenas seis meses após a eclosão da Primeira Guerra, escreveu “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (1984b). Ao refletir sobre a crueldade humana e seu desejo de destruição do outro, foi obrigado a constatar que o mal estava na essência do humano e que nenhum progresso era possível na vida psíquica da humanidade. Nesse texto, Freud diz que, quando os mortos são tantos que já não podem ser reconhecidos individualmente, torna-se impossível nomear a morte e viver o luto, o que por sua vez não tem como não acarretar uma mudança na humanidade da ordem da transformação da linguagem. Como se previsse o que viria, perguntou-se se a humanidade, constituída no crime e pelo crime, não estaria se dirigindo inevitavelmente para a destruição, questão cada vez mais atual.

A Primeira Guerra Mundial, com seus 9 milhões de mortos, questionou a maioria dos psicanalistas da época, como podemos constatar nos anais do 5.° Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Budapeste em 1918, numa Europa recém-saída da guerra, num momento em que o armistício nem sequer fora assinado. Ali reunidos em torno de Freud, eles tentaram entender os efeitos da guerra sobre sua prática e sua teorização. As contribuições de Ferenczi, Abraham, Simmel e Jones, editadas sob o nome de A psicanálise e as neuroses de guerra (1921/2017), continuam bastante atuais, e são especialmente relevantes para o caminho que estou tentando trilhar neste trabalho, o do traumatismo, entendido não como o acontecimento em si, mas como sua consequência psíquica - a maneira pela qual o acontecimento foi acolhido e elaborado pelo psiquismo - e como o conjunto de suas consequências sintomáticas.

Obrigados a reconhecer que as neuroses de guerra e as neuroses traumáticas divergiam das neuroses de transferência em vários aspectos, os autores mencionados, apesar do mal-estar provocado neles, avançaram por essas manifestações psicopatológicas, em que a dimensão sexual parecia ausente. Insistiram em entender os novos sintomas e logo se deram conta de outra diferença importante: em vez da já conhecida amnésia das neuroses de transferência, nos novos casos encontravam um excesso de memória. O problema dos pacientes traumatizados residia justamente em não poderem esquecer nem a cena nem os acontecimentos aos quais foram expostos, que não cessavam de assombrá-los, tanto em sua consciência quanto em seus sonhos. A conclusão foi que, na neurose traumática, o vivido traumático inicial não é recalcado, nem entra em ressonância com a rede simbólica que caracteriza nesse momento a posição e a estrutura do sujeito. A lembrança permanece presente, sem modificações e sem se fragmentar em vários fantasmas.

Quanto a Freud, a necessidade de integrar as particularidades clínicas e psicopatológicas das neuroses de guerra o levou a reelaborar toda a sua teoria, o que desembocou na introdução da pulsão de morte e de um novo dualismo pulsional. O conflito entre Eros e Tânatos passou a atravessar tanto o processo civilizatório quanto o desenvolvimento individual. Particularmente no que se refere ao trauma, a partir de Além do princípio do prazer (1920/1984a) surgiu em Freud uma nova concepção do traumatismo, na qual fica claro que, o que a neurose de transferência recalca, a neurose traumática torna presente, uma presença terrível, que faz o sujeito não cessar de reviver a cena traumática, razão pela qual, em vez da angústia como mecanismo de proteção contra o perigo, o afeto predominante é o pavor, o terror, visto que o acontecimento traumatizante atinge um psiquismo não preparado para ele, e portanto mais vulnerável.

Nas neuroses traumáticas, a dimensão do atual parece ocupar toda a cena, a temporalidade se modifica, e o traumatizado deixa de se inscrever numa continuidade histórica em que o presente se tece de impressões deixadas pelo passado e de projeções no futuro. O acontecimento traumático introduz um corte radical entre um passado que se tornou inacessível, em que a vida era normal, e um presente que se eterniza, sem nenhuma possibilidade de antecipar o futuro. Todas essas questões se reatualizam na escuta dos refugiados. Voltarei a isso adiante. Por ora, sinto a necessidade de seguir um pouco mais nas questões que a grande história apresentou aos analistas e me debruçar sobre as reformulações teóricas que desencadearam.

Freud reformulou sua teoria com as lições da Primeira Guerra, mas não viveu o bastante para tirar conclusões da Segunda Guerra, com seus 70 milhões de mortos; da morte científica e programada dos campos de extermínio nazistas, nos quais morreram duas de suas irmãs. Outros o fizeram em seu lugar. Entre eles, gostaria de destacar Jacques Lacan, Nathalie Zaltzman e Anne-Lise Stern.

Lacan (1968) foi o primeiro a chamar a atenção para a mudança que representou para a subjetividade a passagem de um mundo organizado em torno da religião para um mundo organizado em torno da ciência. Percebeu muito rápido que o nazismo, com seus campos de extermínio racional e tecno-logicamente organizados, anunciava o que estava por vir. Para ele, a tragédia do Holocausto, longe de ser um acidente único na história, que nunca mais se repetiria, mostrava que “nosso futuro de mercados comuns seria necessariamente contrabalanceado por uma extensão cada vez maior dos processos de segregação” (p. 29).

Zaltzman (1999), por sua vez, explicitou melhor que ninguém o fato de que, ao atacar a noção de espécie humana, o regime nazista demonstrou que valores considerados definitivamente inscritos na história podiam se desfazer de uma hora para outra, levando a humanidade a adentrar um novo patamar do mal, de que ainda somos os tristes herdeiros, uma vez que a realidade totalitária e concentracionária nos pôs diante de um acontecimento maior, coletivo e individual, posterior à metapsicologia freudiana da psicologia das massas: o desmoronamento da civilização ocidental em sua função de proteção do indivíduo contra o reino do assassinato, desmoronamento esse que passou a integrar cada um de nós e a herança da realidade humana.

Os milhões de refugiados que circulam pelo mundo interpelam a ordem internacional de nossos dias, vivendo na fronteira do direito, num espaço em que o direito jurídico permite que a exceção, no sentido agambeniano do termo, se torne a regra e que sua vida se reduza à de um simples ser vivo, ao qual é negada a condição de humano.

A terrível situação vivenciada por esses seres humanos, forçados a fugir e a abandonar seu país, sua casa, sua língua, para errar por um mundo cada vez mais inóspito, esperando acolhimento lá onde só encontram muros, interpela ética e politicamente nosso mundo. O refugiado, quer tenha fugido da miséria, quer tenha sido banido por suas crenças ou ideologias, seja ele um apátrida fruto do desaparecimento de certas nações, um imigrante clandestino ou um exilado, situa-se sempre na fronteira do direito, interrogando a própria validade dele; é obrigado a sobreviver no limiar da exclusão de direitos, na fronteira exterior das instituições modernas, como um elemento estrangeiro, tolerado mas não integrado, sem que se lhe reconheçam os mesmos direitos que aos demais.

Dito isso, não posso deixar de considerar que a mera existência desses refugiados também nos interpela, enquanto analistas, e exige de nós uma clínica inventiva, que nos impeça de cair numa antropologia de quinta categoria, enclausurando-os numa personalidade étnica.

Para nos mantermos analistas e pensarmos como tudo isso incide na teoria e na clínica psicanalítica de nossos dias, temos que aceitar o desafio de acolher e ouvir pessoas que vivem o sentimento de terem sido excluídas do pertencimento à espécie humana. Se ouso formular a questão dessa maneira, que pode parecer pouco analítica para alguns, uma vez que espécie não é exatamente um conceito psicanalítico, é porque tenho em mente tanto o já mencionado livro de Antelme, no qual ele afirma que “o questionamento da qualidade de humano provoca uma reivindicação quase biológica de pertencimento à espécie humana” (2010, p. 11), quanto um comentário de Zaltzman (1999) sobre a literatura de testemunho, segundo o qual essa literatura evidencia a existência de uma referência inconsciente que, em situações extremas, assume a forma consciente ou não de que cada vida representa, de modo impessoal, a vida humana, a condição humana em seu conjunto. Tal pertencimento foi nomeado por ela de identificação sobrevivente, remetendo ao que resiste no humano, não perde o rumo, não descola de sua inscrição na realidade, mesmo quando esta deixou de ser inteligível nos termos legados pela história humana.

Volto agora à última analista antes citada, Anne-Lise Stern. No livro O saber-deportado (2004), escrito no après-coup de Auschwitz, ela chama a atenção para a longa resistência dos analistas em ouvir o inominável da solução final, surdez essa que talvez persista hoje em dia na escuta de outras tragédias e de outros horrores, que acompanhamos cotidianamente, nas imagens dos refugiados em seus barquinhos, tentando acostar em terra firme, ou atravessando planícies e se deparando com muros e cães.

A verdade é que os refugiados, em sua grande maioria, passaram por acontecimentos de uma violência ímpar, no limite do humano, o que nos propõe outra questão: como adaptar a psicanálise ao acolhimento de sujeitos envergonhados de viver? Bertrand Piret se fez essa questão em 2011 e foi um dos primeiros a procurar adaptar a psicanálise ao acolhimento de sujeitos tomados por uma vergonha primordial e fundamental. Ele tentou evitar a surdez apontada por Stern buscando entender melhor essa vergonha, que parece ser o afeto comum ao conjunto das situações traumáticas, muito mais visível e audível que a angústia ou a culpa, e anterior a elas. O autor a situa no momento da formação do eu no olhar do outro, tratando-se de um desnudamento do humano, no sentido agambeniano de vida nua, uma destruição do sentimento de humanidade no humano, a qual o reduz a uma existência quase biológica, desatada das filiações simbólicas, que são o próprio do humano.

A vergonha ressentida por eles tem pouco a ver com o pudor e suas raízes sexuais. Segundo Piret, corresponderia ao momento arcaico em que o eu ainda não se separou do outro, o que talvez explique por que nessas situações podemos constatar um vai e vem entre a vergonha de si, a vergonha do outro e a vergonha pelo outro. Nesses casos, a transferência, se e quando ela se estabelece, representa muitas vezes um apelo lançado ao outro para reintegrar o laço social. A fim de sustentá-la, creio ser fundamental articular a escuta da história que ouvimos com a da história do mundo. Caso contrário, contribuiremos para criar no analisando o sentimento ilusório e tóxico de o estar abandonando a uma solidão de exceção. Mas como fazê-lo?

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente a já mencionada distinção do traumatismo próprio das neuroses de transferência, em que encontramos basicamente o eco do infantil, daquele no qual a sintomatologia traumática é desencadeada por um acontecimento que desperta desejos tão inconfessáveis que os fantasmas por ele reativados permanecem isolados do sujeito (síndrome do sobrevivente ou sentimento de culpa, sentimento de que a morte do companheiro foi desejada) - sobretudo daquele que mais me interessa aqui, em que o sujeito é exposto a uma dimensão do real inassimilável, submetido a um além do que é possível representar, mesmo em fantasia. Não por acaso, os refugiados se sentem abandonados pela humanidade e, frequentemente, se vivem como mortos-vivos.

Pode-se imaginar o quanto o acolhimento e a escuta dessas neuroses traumáticas são peculiares, o quanto exigem do analista, que precisará saber acolher uma palavra hesitante, quase sempre envergonhada e centrada nos acontecimentos desencadeadores, quando não apenas em queixas corporais. A transferência é difícil, e o vivido do acontecimento costuma justificar uma lógica avassaladora da evidência, em que nenhum saber para além da evidência do horror vivido pode ser interrogado. Isso não ocorre por acaso. Como lembram Davoine e Gaudillière (2006), toda catástrofe implica uma perda de confiança radical nas leis que regem os humanos e, por conseguinte, uma ruptura da confiança na palavra e no outro, principalmente nos casos em que o Estado se torna cúmplice do terror.

Por isso, para que algo aconteça nesses encontros terapêuticos, diante de sujeitos que estão à espera de um reconhecimento simbólico do outro, o analista (ou o terapeuta, se preferirem) não pode se proteger atrás de uma neutralidade absoluta e um silêncio glacial, não pode se contentar em sentarse na poltrona do analista - triste caricatura de analista. Muito pelo contrário, precisa estar presente e deixar claro que o outro é importante para ele.

Não há nada de novo no que estou dizendo. Isso já foi ressaltado por todos os que se dispuseram a escutar esses sofrimentos extremos, a começar por Ferenczi, talvez o primeiro a chamar a atenção para um tipo de traumatismo que, como aponta Pestre (2014), frequentemente produz uma sintomatologia repertoriada por ele, que lembra muito aquela com a qual nos deparamos no tratamento dos refugiados.

Em seu belíssimo livro História e trauma (2006), Davoine e Gaudillière afirmam que o trauma se refere menos aos horrores vividos do que à sensação de ter sido traído pelos seus, e que a falta de palavras remete menos à possibilidade de dizê-las do que à ausência de alguém para escutá-las. Nos casos em que o sujeito se vive identificado com o dejeto, tendo sido atingido tanto na construção de sua imagem de humano quanto na significação simbólica de seu pertencimento à humanidade, a responsabilidade de que algo aconteça cabe ao analista, ao seu desejo e à sua curiosidade em face de um paciente que se vive de forma tão negativa, de um paciente que nem consegue imaginar que possa interessar a alguém. Acredito que, enquanto analistas, não podemos hesitar em manifestar nosso desejo e nossa crença no poder da palavra. Cada um de nós precisa encontrar a justa distância que permita evitar reduzir o paciente a seus sintomas.

Na escuta de seres que viveram um desmoronamento dessa ordem, parece-me fundamental, como diz Zaltzman (1999), que o analista trate o homem, o ser psíquico, o sujeito, como sujeito da condição humana, portador de uma realidade psíquica, que é concomitante à sua e à do conjunto humano ao qual pertence, e que faz dele o que ele é.

Todo esse percurso me serviu para retornar a certa articulação entre a psicopatologia individual e seus múltiplos determinantes históricos, sociais e políticos, mostrando a importância de tal fato. Antes de concluir, gostaria de chamar a atenção para uma última questão no que diz respeito aos refugiados e que ilustra perfeitamente a imbricação entre o social, o político e o psicanalítico. Desde sempre, os humanos fugiram (ou tentaram fugir) das perseguições, partindo à procura de refúgio para eles e para sua família, sabendo que, de certo modo, podiam contar com a milenar instituição do asilo. Esta, nos dias de hoje, parece funcionar de maneira inversa ao que foi um dia sua finalidade. Na maioria dos países, o Estado vem ampliando o exercício do poder de rejeitar e expulsar o estrangeiro de seu território, estrangeiro esse cada vez mais estigmatizado, visto como um refugiado-criminoso, quando não como um invasor-mentiroso (Pestre, 2014).

Para integrar essas pessoas em suas diferenças, Balibar (2018) propõe uma reformulação do direito internacional, no sentido do reconhecimento da hospitalidade como um direito fundamental, o que limitaria a aparente obsessão de vários países em reprimir a chamada imigração clandestina, que acaba produzindo refugiados sem refúgio, condenados a um eterno vagar entre um acampamento e outro.

A proposta de Balibar é de uma real oferta de hospitalidade, que obrigaria os Estados soberanos a levar em consideração a dignidade e a segurança dos errantes e daqueles que os ajudam. Disso podemos concluir que a clínica com os refugiados tem suas particularidades. É uma clínica da errância e da hospitalidade, na qual o analista terá

que emprestar ao paciente seu aparelho de pensar, suportando ao mesmo tempo os riscos que isso acarreta, os momentos de tensão nos limites do tolerável, nos limites do humano. Ele terá que resistir à destrutividade maciça da qual se faz receptáculo para encarnar uma superfície de projeção a partir da qual o paciente seja capaz de sentir afetos. (Pestre, 2014, pp. 257-258)

Em outras palavras, ao se dispor a escutar pacientes que viveram um desmoronamento absoluto do seu ser, que abandonaram todos os seus investimentos anteriores, o analista deverá imaginar o inimaginável. Como disse Fédida em seu último seminário, não imaginar significa negligenciar que o horror possa ter acontecido.

 

Referências

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Correspondência:
Caterina Koltai
Rua Ministro Gastão Mesquita, 419, Perdizes
05012-010 São Paulo, SP
caterina.koltai@gmail.com

Recebido em 23/8/2018
Aceito em 06/9/2018

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