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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

 

POLÍTICA

 

Psicanálise e política, ou Ubuntu: sou porque somos

 

Psychoanalysis and politics, or Ubuntu: I am because we are

 

Psicoanálisis y política, o Ubuntu: soy porque nosotros somos

 

Psychanalyse et politique, ou Ubuntu: je suis parce que nous sommes

 

 

Liana Albernaz de Melo Bastos

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Mestre em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em ciências humanas e da saúde pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora adjunta da Faculdade de Medicina da UFRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

Trechos do filme Praça Paris, da diretora Lúcia Murat, são usados como disparador para discutir as relações entre psicanálise e política. Recorre-se a aspectos históricos da reforma urbanística do Rio de Janeiro, entendendo-a como continuação de políticas de Estado excludentes, iniciadas no Brasil com a colonização portuguesa e mantidas até os dias atuais. O crescimento da população dos excluídos, submetida quotidianamente a situações traumáticas, traduz-se no Atlas da Violência 2018. Busca-se, via psicanálise, articular a teoria do trauma e da constituição subjetiva com a rede social. A psicanálise, tomada como ciência da singularidade, é teoria/prática política. Psicanalistas dispõem de instrumentos para ajudar a dar destinos criativos à espiral de violência resultante da exclusão social.

Palavras-chave: exclusão social, trauma, desmentido, violência, psicanálise, política


ABSTRACT

The author uses excerpts from the movie Paris Square (Praça Paris, 2017), directed by Lucia Murat, in order to spark a debate about the relationship between Psychoanalysis and Politics. She brings historical aspects of the urban remodeling of Rio de Janeiro. The author considers this urban remodeling a continuation of public politics of exclusion, which first started in Brazil with Portuguese colonization and have persisted ever since. The 2018 Atlas of Violence shows an increasing number of socially excluded people who are daily exposed to traumatic situations. The purpose of this paper is to connect, through Psychoanalysis, the theory of trauma and subjective constitution to social network. Psychoanalysis, as science of singularity, is political theory and practice. Psychoanalysts have tools to help in the construction of creative destinies to the violence spiral that results from social exclusion.

Keywords: social exclusion, trauma, disclaimer, violence, Psychoanalysis, Politics


RESUMEN

Se utilizan fragmentos de la película Praça Paris (2017), de la directora Lúcia Murat, como punto de partida para discutir las relaciones entre psicoanálisis y política. Se recurre a los aspectos históricos de la reforma urbanística de Rio de Janeiro, la cual se interpreta como continuación de políticas de Estado excluyentes, que tuvieron inicio en Brasil durante la colonización portuguesa y se han mantenido hasta los días actuales. El crecimiento de la población excluida sometida diariamente a situaciones traumáticas se traduce en el Atlas da Violência 2018. Se busca, a través del psicoanálisis, la articulación de la teoría del trauma y la constitución subjetiva con la red social. El psicoanálisis tomado como ciencia de la singularidad es teoría/práctica política. Los psicoanalistas poseen instrumentos para ayudar a dar destinos creativos a la espiral de violencia que resulta de la exclusión social.

Palabras clave: exclusión social, trauma, desmentido, violencia, psicoanálisis, política


RÉSUMÉ

Des extraits du film Praça Paris - Place Paris -, de la réalisatrice Lúcia Murat, sont employés comme démarreurs pour discuter les rapports entre psychanalyse et politique. On fait appel à des aspects historiques de l'aménagement urbanistique du Rio de Janeiro, que l'on entend comme la suite de politiques d'Etat d'exclusion, qui débutent au Brésil avec la colonisation portugaise et qui demeurent jusqu'à nos jours. On peut constater sur l'Atlas de la Violence 2018 la croissance de la population d'exclus, soumise quotidiennement à des situations traumatiques. On cherche, par la voie de la psychanalyse, articuler la théorie du trauma et de la constitution subjective avec le réseau social. La psychanalyse, prise comme une science de la singularité, c'est de la théorie / pratique politique. Les psychanalystes disposent d'outils pour aider à créer des destinations créatives à la spirale de la violence résultant de l'exclusion sociale.

Mots-clés: exclusion social, trauma, démenti, violence, psychanalyse, politique


 

 

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

(Manuel Bandeira, “O bicho”)

O honroso convite da Revista Brasileira de Psicanálise para que eu escrevesse sobre psicanálise e política lançou-me num mar de desafios. O prazo exíguo e a grave turbulência política do país fizeram-me perceber a urgência que temos em pensar e buscar contribuir - com a possibilidade instrumental da psicanálise - para os caminhos democráticos no Brasil atual. Na onda conservadora e fascistizante que nos assola, corremos o risco de ver afogada a liberdade necessária não apenas à nossa prática profissional, mas à nossa condição de cidadania. “Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo” (Ribeiro, 1995, p. 447). É preciso pensar nas tempestades. Navegar é preciso...

Foi pelos mares que chegaram os colonizadores portugueses. Foi também por eles que milhões de negros escravizados foram para cá trazidos e reunidos aos indígenas já escravizados.1 Ao genocídio dos brasileiros nativos, dizimados pelas doenças e pelas armas dos europeus, juntou-se o dos africanos. O borrão não foi apagado com a espuma da água do mar. Pelo contrário: ele se espalhou e hoje o vemos espraiado na iníqua desigualdade social no Brasil, que exclui imensa parcela da população de seus direitos humanos.

Precisaríamos de instrumentos muito esquisitos para avaliar a capacidade dos “excluídos” ou “desfiliados” ou “desconectados” de construir territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, ou dos territórios de miséria a que foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são capazes de transformar seus fiapos de vida em momentos de desespero coletivo. (Pelbart, 2003, citado por Reis & Gondar, 2017, p. 23)

Buscar esses instrumentos esquisitos na psicanálise é uma tarefa política. Praça Paris (2017), filme da diretora Lúcia Murat, nos ajuda nessa proposta.

 

Praça Paris: o lugar

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.

(Walter Benjamin)

O Rio de Janeiro, antes de 1902, estava longe ser a Cidade Maravilhosa. Era conhecido como Porto Sujo ou Cidade da Morte. Pela falta de planejamento urbano e de infraestrutura sanitária, era foco de inúmeras doenças. Com a imigração europeia e a migração de escravos recém-libertos, a população urbana cresceu significativamente. O caos na ocupação do espaço favoreceu a disseminação de doenças, tornando a cidade insalubre, panorama que se refletia na economia do país (SUPPia & Scarabello, 2014).

Por conta desse cenário, o governo federal e municipal deflagrou o processo de reforma do Rio de Janeiro. Com o objetivo de sanear a cidade, controlar a propagação de doenças e modernizar o tráfego e a comunicação entre as regiões da cidade, a Reforma Pereira Passos (1902-1906) consistiu numa demolição de casas, particularmente dos cortiços, que se multiplicavam (SUPPia & Scarabello, 2014).

Uma iniciativa de modernização excludente, a Reforma Pereira Passos criou a imagem de uma cidade moderna pela destruição de trechos urbanos e pelo deslocamento da população que ali vivia, em nome da higiene e do embelezamento.

Não se trata de negar a necessidade de saúde pública ou de criação de ambientes urbanos aprazíveis. Mas, por outro lado, creio que não se podem louvar essas intervenções justificando os danos colaterais provocados como se fossem questão de menor importância. (Castro, citado por SUPPia & Scarabello, 2014)

A adequação funcional e formal do centro da cidade, em particular da área portuária, atendeu principalmente à necessidade de inserir o país no mercado internacional. Todo o processo de gentrificação foi a expressão de interesses e valores das oligarquias dominantes daquele período.

O plano de reformas do Rio de Janeiro fez parte de um projeto nacional - oligárquico e excludente - de elevação da capital a um ideal europeu de civilização. Derrubar o Rio colonial, destruindo sua imagem feia e insalubre, era imperativo para impulsionar o papel do Brasil na economia internacional. Saneou-se e embelezou-se a capital com a abertura de avenidas e praças, a modernização do sistema de iluminação, o abastecimento de água e esgoto, a construção de prédios novos e a reforma do porto. Simultaneamente, o Estado passou a controlar práticas consideradas perigosas e insalubres, como o comércio de rua, a prostituição e o Carnaval. Foi um plano para domesticar a cidade material e moralmente (Cantisano, 2016).2

A Praça Paris, no Rio de Janeiro, foi feita no âmbito da Reforma Pereira Passos. Considerada uma obra-prima dos últimos tempos da Belle Époque carioca, tomou como padrão arquitetônico Paris. Com projeto do urbanista francês Alfred Agache, foi construída sobre um aterro na antiga Praia da Glória. Nela, há um grande monumento de bronze representando Pedro Álvares Cabral, feito por Rodolfo Bernardelli em homenagem aos 400 anos do Descobrimento do Brasil. Cabral está em posição de júbilo e de vitória, com os braços abertos, desfraldando na mão esquerda a bandeira portuguesa.

Bens culturais tem uma origem sobre a qual não se pode refletir sem horror, diz Walter Benjamin (1940/1987b). Eles devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, mas também à corveia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um monumento da barbárie. Se a cultura não é isenta de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão da cultura.

Seguindo Benjamin, pode-se dizer que há duas formas de barbárie: a que se aproveita da crise econômica e da sombra das guerras, e a que enlouquece por não conseguir falar quando a violência invade o quotidiano. A barbárie não é o contraponto da cultura, não é o avesso da civilização, nem está no seu exterior, mas é um de seus pressupostos. O bárbaro é aquele que se vê impelido, pela pobreza da experiência, a ir em frente e começar de novo a construir com pouco, de maneira implacável, sem olhar para os lados nem para trás (Benjamin, 1933/1987a). Todos os que vencem participam de um cortejo triunfal, em que os dominadores espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Há um preço de infâmia em cada monumento da civilização.

Quando menina, eu brincava na Praça Paris, e era capaz de dizer a data do Descobrimento do Brasil e quem o fizera, Pedro Álvares Cabral. A história, bem sabemos, é contada pelos vencedores. A outra história, a dos vencidos, fica foracluída. Desmentida, permanece produzindo mortíferos efeitos, como violência traumática.

É pela história contada no impactante filme Praça Paris (Murat, 2017) que abordarei alguns aspectos da violência traumática e de suas consequências sociais.

 

Praça Paris: o filme

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história.

(Walter Benjamin)

Camila (Joana de Verona), uma psicóloga portuguesa, está fazendo sua tese na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atende Glória (Grace Passô), ascensorista da UERJ, nas dependências da universidade. Ambas são jovens; Camila é branca, de classe média, moradora da zona sul; Glória é negra, pobre, moradora da favela.

A mãe de Glória abandonara o marido alcoólico e os dois filhos pequenos. Glória diz que o pai não era mau, mas em seguida conta que, durante anos, fora repetidamente estuprada por ele. Fala da impotência do irmão mais novo diante dos abusos. Agora, o irmão está preso por tráfico de drogas, e ela vai regularmente visitá-lo na prisão. Leva-lhe comida - frango desfiado com quiabo -, a mesma de que, como recorda o irmão, o pai tanto gostava. Amorosa com o irmão, sempre é lembrada por este de que só ele cuida dela.

Aos poucos, a morte do pai vai sendo revelada. O irmão o teria matado, com uma barra de ferro, quando ele, mais uma vez, a estuprava. O irmão fora preso e enviado a um reformatório, de onde acabou fugindo. Glória fala da cabeça do pai esmigalhada e do sangue jorrando. Em outro momento, afirma que o irmão o golpeara, mas que fora ela que, com um tijolo, esmigalhara a cabeça do pai. O irmão assumira a culpa.

Com os relatos de Glória, entreabrem-se para Camila as cortinas de um impensável mundo de horror. Seu mundo, até então, parecia estar no lugar. Em meio ao passeio que faz com o namorado à Praça Paris, às fotos que tira, à imagem do monumento de Pedro Álvares Cabral ao fundo, Camila segue seu caminho como se a barbárie só existisse no mundo de Glória.

Voltando de uma visita ao irmão na penitenciária, Glória é detida por vários policiais militares. Eles a interrogam e a espancam. Glória falta à sessão.

Na sessão seguinte, com o rosto ferido, relata a Camila a violência policial. A psicóloga fica indignada; diz que Glória deveria denunciar o ocorrido. Com riso irônico, Glória afirma que a questão já fora resolvida. Ela não se instalou no lugar de vítima. Uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) fora atacada, com um policial morto e outro ferido. No noticiário, aparece que a ordem do ataque viera de dentro do presídio.

No celular de Glória, esquecido na sala de atendimento, Camila encontra o vídeo de um estupro coletivo cometido contra uma mulher por jovens negros e armados. Ao confrontar Glória, esta lhe diz que contara ao irmão que uma mulher a chamara de puta, e o irmão, que sempre a defendia, dera uma lição nela. Exagerara um pouco; não precisava tanto. Glória compartilhara o vídeo na internet porque já se passara algum tempo do acontecido. Não entende por que Camila se horroriza.

Camila começa a ter/viver pesadelos de perseguição. Ao ser procurada em sua casa por Glória, alerta-a de que não pode atendê-la fora do consultório. Como conseguira seu endereço? As fronteiras arrombadas/estupradas do setting lançam-na num clima paranoide.

Camila decide romper o contrato e encaminhar Glória para outra terapeuta, mas o que já está rompido é certa ordem do mundo: a dos jardins de Versalhes no Rio de Janeiro. Estamos em tempos de queda da Bastilha. As leis do mundo “civilizado” já não valem mais. Os bárbaros - nome inventado pelos gregos para os estrangeiros, que vinham de fora de sua cultura, de sua ordem, de sua lei - não reconhecem limites e fronteiras.

Não adiantarei o restante do filme, em seu crescendo emocional. Para efeito desta discussão, já temos vários elementos a considerar.

 

O pacto social

Apesar de sofrermos com o nosso corpo “destinado à ruína e à dissolução” e com a fúria destruidora da natureza, diante da qual s omos impotentes, são os vínculos com os outros seres humanos nossa maior causa de sofrimento.

(Sigmund Freud)

Desde sempre, os filósofos da tradição ocidental preocuparam-se com a governabilidade, isto é, com as formas de organizar a sociedade para controlar o ódio entre os homens.

Na modernidade, Maquiavel inaugurou o realismo político divorciando a virtude laica do príncipe da moralidade religiosa. Não se tratava mais de pensar uma sociedade ideal (como Platão fizera) ou as virtudes morais dos homens e dos governantes, mas a realidade das sociedades. A ele, seguiram-se Hobbes, com a guerra de todos contra todos e o contrato social, Spinoza, com a liberdade do autogoverno democrático, e Kant, com a insociável sociabilidade humana e a paz.

A história foi trazida à filosofia por Hegel, com a dialética do progresso até a liberdade racional, Marx, com a luta de classes entre a burguesia e o proletariado, e Tocqueville, com o futuro igualitário da democracia e o controle da corrupção. No Romantismo alemão, Schiller e Goethe fundaram o classicisme de Weimar, buscando a salvação poética da sociedade pela cultura, numa crítica ao Iluminismo pelo sacrifício da sensibilidade à razão.

O pacto social que Freud propõe vincula-se a essa tradição filosófica. A racionalidade iluminista foi ferida em seu âmago com a descoberta do inconsciente. O amor e o ódio, expressões do dualismo pulsional, fazem do humano um ser de afetos, indissociado e indissociável da rede social. Sociedade, história e psique humana não podem ser entendidas separadamente (Castoriadis, 1999).

Em Totem e tabu (1913/1986c), Freud nos conta a saga dessa indissociação. Ainda sem o suporte teórico da pulsão de morte, ele mostra como o amor e o ódio encontram-se fusionados no assassinato do pai e na refeição totêmica. Estão presentes aí, ao mesmo tempo, o aniquilamento do pai e a identificação com ele na apropriação de sua força por meio da incorporação. O mito freudiano da horda primitiva, ao conferir centralidade aos processos afetivos, implode o otimismo de uma sociedade racionalmente organizada e sem conflitos.

Na esteira dessa teoria, e considerando o segundo dualismo pulsional, em O mal-estar na civilização (1930/1986a), ao tratar a ética humana como derivada do sentimento de culpa, Freud rompe com as teorias contratualistas (Hobbes, Locke, Kant) que justificavam o pacto social pela razão. A ambivalência afetiva em relação ao pai da horda, amado e odiado, e seu assassinato, com a culpa subsequente, criam o lugar da lei como expressão da vontade da fratria, o que não significa paz.

Há uma luta permanente na cultura humana, gregária, entre a força unificadora de Eros e a hostilidade entre seus membros. Essa luta revela a presença da pulsão de morte, ainda que mitigada e controlada por uma consciência moral, o superego. A renúncia à pulsão agressiva - um derivado e principal sub-rogado da pulsão de morte - seria a condição de formação da coesão dos grupamentos (função de Eros) e se constituiria na fonte pulsional da consciência moral.

A cultura se faz a partir da renúncia pulsional. A história genética da consciência moral é o que determina a ética humana. Se não há no homem, desde sempre, a distinção entre o bem e o mal, há, desde o início, o amor e ódio. Na gênese do sentimento de culpa reside a compreensão da constituição dos grupamentos humanos. A agressividade projetada no pai totêmico, ao levar ao parricídio, é introjetada sob a forma de sentimento de culpa ou consciência moral, o que dá origem ao superego.

Poderíamos dizer, retomando o filme Praça Paris, que era este o mundo que Camila habitava, o de todos os sujeitos igualmente subordinados à lei, até Glória trazer à luz o seu estranho aterrorizador.

O estranho (Unheimliche)3 pertence à ordem do terrorífico, daquilo que excita angústia e horror; é um terror que remonta a alguma coisa antiga, familiar (heimlich): o duplo. “Quando se borram os limites entre a fantasia e a realidade, quando aparece diante de nós algo que tínhamos como fantástico, quando um símbolo assume a plena operação e o significado do simbolizado, irrompe a estranheza aterrorizadora” (Freud, 1919/1986b, p. 244).

 

A violência traumática

Esses polícia é tudo covarde mermo, dando baque no feriado, com geral na rua, em tempo de acertar uma criança. Tem mais é que encher esses cu azul de bala. Papo reto.

(Geovani Martins, O sol na cabeça)

Há uma confusão de línguas entre Camila e Glória. Elas partilham um tempo e um espaço. Ambas trabalham, cumprem horários, cuidam de suas casas. Contudo, rompida essa intersecção, surgem diferenças brutais. A violência, que apenas tangencia Camila, está o tempo todo no mundo de Glória, aquele dos banidos das Praças Paris desde os tempos da colonização do Brasil. No tempo e no espaço de Glória, há uma dimensão traumática dessubjetivadora, a da exclusão social. Para pensá-la, vamos recorrer a Ferenczi (1932/1990, 1934/1992).

O modelo ferencziano do evento traumático é o abuso sexual acontecido. Enquanto Freud, em 1895, atentou para a problemática edípica,4 a teoria ferencziana do trauma trabalha com o pré-edípico, tendo como operador central a questão narcísica.

Além de abordar diferentes momentos da estruturação psíquica do sujeito, a teoria ferencziana põe acento na relação objetal. Freud estudou a dinâmica intrapsíquica do trauma. Ferenczi estudou as relações intersubjetivas. É na forma como se relacionam o sujeito e os objetos que o trauma deve ser compreendido. O trauma é relacional. A rede relacional indica o destino do traumático como estruturante ou patogênico.

O elemento fundamental que produz um trauma desestruturante é o desmentido. Este, no modelo do trauma sexual, é a negação ou a indiferença de um adulto diante de uma criança quando ela o procura para simbolizar uma experiência pela qual passou. Os danos provocados pelo desmentido são catastróficos se ainda não está pronta a constituição narcísica do sujeito.

A estrutura do desmentido é triangular: há um adulto agressor, uma criança agredida e outro adulto ao qual a criança pode recorrer. É esse segundo adulto que pode emprestar sentido à experiência da criança. A experiência vivida pela criança, incompreensível para ela, é dotada de tal intensidade que a criança não consegue metabolizá-la por si só. É pura angústia. Ao buscar amparo com um adulto, este pode acolhê-la e significar o acontecido ou falhar nessa função, desmentindo.

Tanto em Freud como em Ferenczi, o trauma é um excesso pulsional inassimilável, no limite das possibilidades narrativas, sem sentido em si. Enquanto Freud considera os contrainvestimentos intrapsíquicos que permitem sua inscrição psíquica, Ferenczi, ao colocar um terceiro em cena, atribui a possibilidade de contenção do excesso pulsional - a pura angústia - e sua representação ao contexto relacional. O desfecho subjetivador ou dessubjetivador do trauma é definido numa rede complexa, que contempla os aspectos intra e interpsíquicos. A rede social é de suma importância (Bastos, 2016).

O paradoxo do trauma se sustenta assim: seu destino subjetivador ou dessubjetivador depende do processo de afetação com o mundo, isto é, tanto do sujeito quanto da função terceirizante da rede social que o cerca. O trauma é, portanto, um conceito que está na interface do interno e do externo, do sujeito e da cultura.

A rede de afetação positiva permite processos introjetivos, trocas sensoriais, afetivas e linguageiras, garantindo a impressão de marcas psíquicas, base da potência criativa. Quando a rede de base - que envolve o sujeito e o social - deixa de prover essa possibilidade, o que se vive é o horror manifesto como violência.

Aos indivíduos transtornados pelo trauma, não basta refazer a história do passado recalcado. Eles querem descobrir o que fazer agora, como furar a névoa da banalização e do conformismo. Muitas vezes, isso os leva a deflagrar movimentos de destruição e morte (Reis & Gondar, 2017).

A história de Glória serve, no contexto deste trabalho, como dramática alegoria para pensar as dimensões sociais dos traumas repetidos, presentes no silenciamento (no desmentido) da profunda desigualdade social, geradora de milhões de excluídos no Brasil. Por não oferecer possibilidade narrativa, a exclusão social transforma sujeitos em invisíveis, em irrepresentáveis. A recusa, uma negação perversa, cliva partes do corpo social. A exclusão social produz sujeitos clivados, os quais, por sua vez, produzem sociedades de exclusão. Esse fenômeno, que afeta direta e silenciosamente os mais vulneráveis, coloca-nos a todos em vulnerabilidade, na medida em que todos somos parte do corpo social.

A parte de nós excluída, clivada, é defensivamente projetada no outro. O mal reside nele. O outro é meu inimigo e deve ser violentamente combatido. A repetição compulsiva da exclusão social faz da violência uma espiral crescente e revela que políticas repressivas são socialmente ineficazes. De acordo com Butler, aí residiria a importância da psicanálise: “Uma reflexão sobre a formação do sujeito é fundamental para entender as bases de uma resposta não violenta à agressão, tanto como para uma teoria sobre a responsabilidade coletiva” (2004, citada por Reis & Gondar, 2017, p. 223).

 

Atlas da Violência 2018

Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

...

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal

...

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres, e todos sabem como se tratam os pretos

...

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui.
(Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Haiti”)

Dados divulgados em 5 de junho de 2018, no Atlas da Violência 2018, uma realização do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelam que 553 mil pessoas foram assassinadas entre 2006 e 2016, das quais 324.697 tinham entre 15 e 19 anos. O perfil da grande maioria era homem, negro, sem ensino fundamental completo. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes em 2016 foi de 30,3, 10 vezes a da Europa e a maior já registrada no país. Em 2016, houve 62.517 homicídios no país, uma alta de 14% em relação a 2006. Das pessoas assassinadas, 71,5% eram negras ou pardas. De 2006 a 2016, a taxa de homicídios entre negros cresceu 23,1%, enquanto entre não negros caiu 6,8%; especificamente entre mulheres negras, a taxa de homicídios aumentou 15,4%, ao passo que entre mulheres não negras diminuiu 8% (Letieri, 2018).

Psicanalistas não lidam com estatísticas, mas esses dados aterradores obrigam a pensar o país. Que genocídio é esse que se perpetua desde a colonização?

O assassinato de Marielle Franco em março de 2018, ainda não elucidado pelas autoridades, denuncia o ódio aos defensores dos direitos sociais e humanos. Por uma lógica perversa, Marielle foi considerada defensora de bandidos, bandida ela também. O Haiti é aqui.

“Bandido bom é bandido morto”, diz aquele que se crê mocinho. Um bangue-bangue de polícia e ladrão. Uma excitante ficção para exterminar o mal, que naturalizado fica encarnado nos pobres/pretos. Direitos humanos para bandido? Bandido merece bala. Esse discurso perigosamente disseminado - e que, na boca de um presidenciável, tem o apoio de cerca de 15% da população - atende à lógica narcísica do ou eu, ou ele. O bom é o eu. O não eu é mau. Assim, extermina-se o inimigo, isto é, o não eu, o qual, porém, nada mais é do que nossas partes clivadas projetadas no outro.

Nas abordagens policiais em favelas ou periferias, todos tratam de mostrar a carteira de trabalho (ainda que, nestes tempos do Brasil, poucas estejam assinadas). O pobre/preto busca identificar-se como trabalhador. Vadiagem é coisa de bandido.

A prisão por vadiagem foi instituída legalmente após a abolição da escravatura. Os ex-escravos, sobretudo os urbanos, abandonados à própria sorte, caso não se engajassem no mercado de trabalho, eram detidos, de acordo com uma política de Estado. Pobres que não trabalhavam eram encarcerados. Já os brancos que não trabalhavam mas tinham posses permaneciam livres.

Ao longo de quase 400 anos de escravidão, cerca de 4 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil (Schwarcz & Starling, 2015). O tráfico transatlântico de africanos escravizados foi uma das empresas mais lucrativas do mundo (Santos, 2017). O Estado legalizava não apenas o tráfico, mas a compra, a venda e as práticas punitivas exercidas pelos senhores. Encarregou-se, inclusive, da execução de chibatadas - bastando para isso a solicitação dos senhores -, construindo um local especialmente para punir escravos, o Calabouço, erguido no século XVII no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. A memória apagada dessa infâmia, seu significado, deixou um rastro no significante. Foi nessa região que se construiu o restaurante Calabouço, palco do assassinato do estudante Edson Luiz, em 1968, pelas forças repressoras do Estado (Thomson-Deveaux, 2018).

As políticas de Estado sempre atenderam aos interesses econômicos das elites. No período colonial, o tráfico de africanos para o Brasil era legal pela necessidade de mão de obra para o cultivo da cana e para os engenhos de açúcar. A riqueza produzida pelos escravos era enviada à Europa, enriquecendo Portugal e os bancos ingleses que financiavam a armada portuguesa. Quem produzia não ficava com nada.

A Igreja também participou de forma ativa do tráfico,5 concedendo aos portugueses o direito de praticá-lo. Cada negro feito escravo era batizado e marcado. Com isso, perdia seu nome e tinha negadas sua religião, sua língua, sua história e sua cultura. Fazia parte do processo escravista a dessubjetiva-ção, o apagamento/desmentido de suas condições de humanidade. Tornava-se uma peça.

Ao ciclo da cana-de-açúcar seguiu-se o da mineração. Holandeses haviam começado a produzir açúcar nas Antilhas, e Portugal já não detinha o monopólio desse produto na Europa. No século XVII, com a descoberta de ouro pelos bandeirantes paulistas em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, abriu-se uma nova demanda de trabalho escravo. As condições de vida nas minas eram tão precárias que, em média, cada escravo sobrevivia por cinco anos. A história oficial fez dos bandeirantes heróis da integração do país. Por outro lado, a história dos negros seviciados e mortos foi silenciada.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, coincidiu com o início do período de maior tráfico, em decorrência do surgimento das lavouras de café. Entre 1808 e 1850, houve um crescimento de 600% no número de africanos trazidos ao Brasil para trabalhar nas lavouras (Cruz, 2017). Mais uma vez, uma política de Estado foi usada para servir à elite, os barões do café.

No Brasil Império, diante do movimento abolicionista e de inúmeras revoltas de escravos, foram promulgados decretos que condenavam à forca os escravos insurgentes. Mesmo após a assinatura da Lei Áurea - sendo o Brasil um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão -, o racismo estrutural continuou a se manifestar.

Na República, promoveram-se políticas de embranquecimento da população, estimulando-se a imigração europeia (Cruz, 2017). A mistura de cores incomodava, e ainda incomoda, a muitos.

A teoria racial, hoje reconhecida como falsa, hierarquizava as “raças” fundando-se numa concepção de ciência que traz sua marca ideológica. A ideia de pureza da raça ariana levou ao genocídio perpetrado pelos nazistas, e também fundamentou - e continua a fazê-lo - a inferioridade dos não brancos no Brasil. Quanto mais preto, mais discriminado.

Recentemente, a escolha da artista Fabiana Cozza para viver D. Ivone Lara num musical foi questionada. Pressionada por causa da cor de sua pele - não suficientemente negra -, Fabiana renunciou ao papel. A crítica do movimento negro é que artistas de pele mais clara são escolhidas em detrimento das que têm a pele mais escura; na tv, as que ganham protagonismo são as mais “branquinhas”. Poderíamos indagar se Meghan Markle, sem a cirurgia no nariz e o alisamento do cabelo, e com uma pele mais escura, teria se tornado duquesa de Sussex.

O racismo, não apenas o individual, mais facilmente identificável, mas o estrutural, aparece naturalizado entre nós - por exemplo, nos quartos de empregada, escuros e pequenos, ao lado da cozinha de casas e apartamentos das classes média e alta.

Psicanalistas, quase todos brancos, atendem em seus consultórios a pessoas quase todas brancas. Essa tem sido a prática habitual de quase todos nós. Até pouco tempo atrás, havia certo desprezo por psicanalistas que trabalhavam em instituições; eram vistos como fracassados em seu métier. Nós, psicanalistas, quase todo o tempo, circulamos num mundo europeu, o da Praça Paris, ou no seu simulacro americano, a Disneylândia. Certamente, o Haiti não é aqui.

 

Psicanálise e política

O que proponho ... é uma reconsideração da condição humana do ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes. ... O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de pensar o que estamos fazendo.

(Hannah Arendt)

A maneira como o Brasil vem sendo sacudido e revirado nos últimos anos confrontou os psicanalistas com questionamentos que, para muitos até então, não lhes diziam respeito.6

A oportuna e necessária criação do Observatório Psicanalítico pela Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) abriu um fecundo espaço de diálogo entre nós. Nele, temos nos manifestado sobre vários temas que nos afligem, com primorosas e relevantes contribuições. O mar de lama que nos sufoca não é exatamente a corrupção, ainda que ela esteja presente e deva ser combatida; é antes a desigualdade social. A lama - água e terra - nos misturou a todos: fez o Haiti ser aqui e ali. A tragédia ambiental de Mariana, o desastre em Barcarena e as fotos de Sebastião Salgado me vêm à mente. Sociedade, história e psique humana não podem ser entendidas separadamente.

No Brasil, porém, nem sempre se pensou assim a psicanálise. Durante a ditadura militar/empresarial, além do horror do envolvimento de psicanalistas nas torturas e da perseguição aos que combatiam o regime, a psicanálise fechou-se defensivamente em teorias que privilegiavam o mundo interno.7 Essa observação em nada desmerece a contribuição kleiniana para nossa área. O que queremos mostrar é que essa escolha não pode ser vista somente como modismo.

Não se pode ingenuamente acreditar que a ciência, como um conjunto de conhecimentos (ciência-disciplina) e de atividades (ciência-processo), seja algo independente do meio social, alheio a influências estranhas e neutro em relação às várias disputas que envolvem a sociedade. Analisada por qualquer um de seus dois ângulos, a ciência representa um corpo de doutrinas gerado ou em geração num meio social específico e, obviamente, sofrendo a influência dos fatores que compõem a cultura de que faz parte. Produto da sociedade, influi nela e dela sofre a influência. (Maia, 1998, p. 128)

A psicanálise estaria sujeita às mesmas influências sócio-histórico-culturais que Maia assinala na ciência?

A psicanálise não se enquadra no que a epistemologia francesa demarca como ciência, mas o critério dessa epistemologia para estabelecer fronteiras entre ciência e não ciência é criticado por Stengers (1993). Segundo a autora, considerar a ciência um domínio autônomo em relação às demais práticas humanas é desqualificar o que fica de fora: o contexto social, a política, a ação humana no sentido de uma práxis. Excluídos da ciência, esses campos seriam destituídos do poder de colocar em risco os enunciados científicos.

O enfoque autônomo da ciência estabelece a dicotomia entre sujeito e objeto, restringe o conhecimento à representação, e o campo emocional e seu caráter errático são excluídos. Por outro lado, pela perspectiva de sua singularidade, as ciências são vistas como processos contingentes, políticos, instáveis por natureza e marcados por uma deriva intrínseca (Moraes,2001-2002).

Assim, os debates em torno de a psicanálise ser ou não ciência prendem-se a um estilo epistemológico de analisar as ciências. Os fundamentos da psicanálise construídos por Freud e as contribuições de muitos de seus seguidores (Ferenczi, Winnicott, Lacan, Castoriadis, Green, Roussillon e tantos outros) anteciparam uma ampliação do campo científico, incluindo nele a singularidade, como propõe Stengers.

Nesse sentido, podemos dizer que a psicanálise é uma ciência que se singulariza como uma prática intrassubjetiva e intersubjetiva - pois todos os modos de sofrer são subjetivos e singulares -, imersa no social e no político, mantendo relações de devir (e não de autonomia) com outras práticas: antropologia, história, sociologia, filosofia e artes. Não se trata de ver tais práticas como modelos a seguir, mas de “dar aos diferentes tipos de prática uma existência legítima, fora de uma hierarquia” (Stengers, 1993, p. 7). Pensar o que estamos fazendo é pensar nossa condição humana.

Nós, psicanalistas, com nossos instrumentos esquisitos, podemos ajudar a reconstruir os territórios subjetivos dos excluídos; podemos propiciar que angústias traumáticas se transformem em narrativas e que histórias desmentidas sejam contadas, compondo-se assim uma rede social de reconhecimento.8 A espiral de violência gerada pela desigualdade e pela exclusão social, uma vez inscrita e significada, alimentará destinos criativos.

Essa pode ser a contribuição política da psicanálise.

 

Referências

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Correspondência:
Liana Albernaz de Melo Bastos
Rua Dr. Sousa Lopes, 55, ap. 201
22231-060 Rio de Janeiro, RJ
lianaambastos@globo.com

Recebido em 21/6/2018
Aceito em 5/7/2018

 

 

1 A forte presença de africanos escravizados não significou a não utilização de mão de obra escrava indígena. No norte do país, sobretudo no Grão-Pará, os indígenas eram mais utilizados do que os africanos (Santos, 2017).
2 A mesma lógica excludente e de atendimento a setores privilegiados da sociedade, ainda vigente em políticas públicas atuais, aplicou-se recentemente à Cracolândia em São Paulo: expulsar e encarcerar os despossuídos para o “embelezamento” e a “segurança” da cidade.
3 É no prefixo un de Unheimliche que está marcada a negação do recalcado.
4 Embora evidentemente, em 1895, Freud ainda não tivesse formulado o complexo de Édipo.
5 Emitida pelo papa Nicolau V, a bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, autorizava os portugueses a conquistar territórios não cristianizados e a consignar a escravatura perpétua a quaisquer infiéis que capturassem. Nela se lê: “Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que o dileto filho infante D. Henrique, incendido no ardor da fé e do zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo orbe o nome gloriosíssimo de Deus. ... Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir estas determinações, seja excomungado” (citado por Ribeiro, 1995, pp. 39-40). Em 1537, o papa Paulo III publicou uma bula que permitia escravizar apenas os indígenas que não houvessem sido convertidos pela catequese. Os indígenas eram almas pagãs. Já os guinéus (como eram chamados os africanos) eram infiéis. Apesar da proibição papal, os indígenas continuaram sendo escravizados (Santos, 2017).
6 Gramsci compreendeu que a mediação que deve existir entre os intelectuais e as classes sociais que lhes dão suporte é a mesma que existe entre a infra e a superestrutura, ou seja, os intelectuais não são reflexos mecânicos das classes de que se originam ou que deveriam representar. Essa contradição, quando levada ao extremo, pode conduzir à ruptura de parcelas da intelectualidade com a classe da qual provêm e à adesão ao projeto político de outras classes sociais (Buonicore, 1991).
7 A insuficiência da dicotomia entre mundo interno e mundo externo para pensar experiências radicais, como tortura e guerra, é apontada por Viñar (2005).
8 Deixo registrado que colegas vêm desenvolvendo trabalhos primorosos com algumas populações de maior vulnerabilidade. Não os cito para não cometer a injustiça de omitir algum.

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