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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Entrevista1: Renato Mezan

 

 

RBP: Esta entrevista faz parte de um projeto da Sociedade de criar um acervo histórico para consulta e pesquisa. Seria algo diferente da biblioteca que já temos, que além de livros possui uma grande quantidade de documentos, de diversos tipos.

RM: Bem, primeiro gostaria de agradecer à Marina Massi e a vocês a oportunidade de apresentar aos leitores da Revista Brasileira de Psicanálise algumas ideias sobre essa questão tão importante da história da Psicanálise. E também dizer que, até onde sei, o material de que vocês dispõem na sua biblioteca é de imenso valor. Um exemplo rápido: minha orientanda Izabel Madureira Marques estava interessada na obra pessoal de Ernest Jones, para além do que ele realizou como figura política e como biógrafo de Freud. Foi até a biblioteca, e lhe disseram que havia muito pouca coisa já catalogada. Conversa vai, conversa vem, a funcionária acabou se lembrando de que em algum lugar havia uma caixa marcada Ernest Jones. A Izabel foi atrás dela, e descobriu que continha simplesmente todos os livros dele, empoeirados, cheios de ácaros... [Risos.] Comprou uma máscara, foi folheando e fotocopiando o material, e acabou escrevendo o seu doutorado a partir desses documentos. Então, a ideia de organizar esse verdadeiro tesouro e colocá-lo à disposição de quem se interessar pelo passado da psicanálise merece todo o apoio.

RBP: O seu livro O tronco e os ramos é um trabalho sobre a história da psicanálise, e traz elementos importantes para pensar essa disciplina, que existe há mais de 100 anos. Como você vê o papel do estudo da história da psicanálise na formação psicanalítica? Partindo da metáfora do título do livro, qual seria a importância de conhecer a história, para compreender em que ramo nos situamos e como ele se articula com os outros?

RM: Para responder à sua pergunta, convém começar com o que eu entendo pela expressão história da psicanálise. Ela comporta duas grandes vertentes. A primeira é a história do movimento psicanalítico, das instituições, das pessoas, das biografias, das cisões, da expansão da psicanálise para fora do seu berço, que foi a Europa Central - o Império Austro-Húngaro e a Alemanha. A outra vertente é a história das ideias e das práticas que nelas se baseiam, ou seja, a evolução da teoria psicanalítica em Freud e nos seus sucessores, a utilização dela na clínica e na psicanálise aplicada, a influência que a psicanálise teve (e continua a ter) na cultura ocidental.

As duas, obviamente, se determinam reciprocamente: por exemplo, quando os psicanalistas europeus emigraram para os Estados Unidos por causa do nazismo - algo que pertence à primeira vertente - levaram consigo o seu modo de fazer análise. O que mais poderiam ter feito? Só que no novo ambiente esse “modo de fazer análise” se deparou com circunstâncias bem diversas das que eles conheciam, entre outras a existência de uma forte psicologia acadêmica de viés empirista. Foi preciso dialogar com ela, e um dos frutos desse diálogo é a psicologia do ego, elaborada por Hartmann, Kris e Loewenstein. Por outro lado, essa versão da psicanálise encontrou oposição de certos analistas, como Erich Fromm e Karen Horney, que acabaram saindo da IPA americana e criando sua própria instituição. Nos Estados Unidos, ela não teve grande influência, mas devido ao fato de Fromm ter se mudado para o México - elemento da vertente pessoas/instituições - nesse país o culturalismo é até hoje a tendência dominante entre os psicanalistas - elemento ligado à vertente ideias + práticas. E algo semelhante ocorreu em muitos outros casos; um dos que nos afetaram diretamente foi a expansão do kleinismo para a América Latina, onde teve grande sucesso entre 1950 e 1980, enquanto nos países de língua inglesa as doutrinas kleinianas permaneceram minoritárias.

Freud foi o primeiro a escrever uma “História do movimento psicanalítico”, já em 1914. Apesar de trazer muitas informações interessantes, esse texto tem um objetivo polêmico: justificar a expulsão dos heréticos Jung e Adler. A meu ver, porém, hoje em dia - após 100 anos de disputas teóricas e políticas entre os analistas - o exemplo de Freud não deve ser seguido. Ao contrário: é o oposto do que deve ser uma boa história da psicanálise, que não deve servir para dar razão àqueles que pensam que a sua clínica e a teoria que a sustenta são a “verdadeira” psicanálise. E, com isso, entro na questão levantada.

A formação de um psicanalista difere em muito da formação em outros ramos do conhecimento, porque não consiste apenas em absorver conhecimentos e aprender a utilizá-los na vida profissional. Não é nenhuma novidade que, devido à análise pessoal e ao ambiente institucional em que ela transcorre, a experiência da formação pode desembocar numa crença quase religiosa em determinadas ideias, o que Piera Aulagnier não hesitou em comparar à alienação.2 Digo bem: pode, e não deve: não é um “destino funesto”, mas no que chamo era das escolas (entre 1945 e meados da década de 1970) isso não foi nada raro, tanto no interior da IPA quanto em outras associações, como a fundada por Lacan.

Certamente não foi por acaso que a partir dos anos 1980 começaram a surgir histórias da psicanálise desvinculadas de preocupações apologéticas. Uma das melhores é a monumental História da psicanálise na França, de Élisabeth Roudinesco, um livro que me marcou muito e me deu o modelo do que deveria ser uma obra desse tipo. Para mim, que vinha da filosofia e estava familiarizado com a história dela, era incompreensível que a maioria dos analistas não se interessasse pelo passado da psicanálise, como se ela fosse toda no presente, um conjunto de teorias e práticas nascido pronto da cabeça do Zeus da sua corrente, fosse ele Melanie Klein, Bion, Lacan ou qualquer outro.

Quando se entra na faculdade de música, se estuda entre outras coisas a história da música. Independentemente de você ser um músico clássico ou popular, é preciso ter uma noção dos estilos, das técnicas de composição e de execução, de como a arte dos sons evoluiu até os dias de hoje. Tome o caso de Bach, que a meu ver está para a música ocidental como Freud está para a psicanálise. Por quê? Porque, embora ninguém mais escreva música como Bach, o Cravo bem temperado continua a ser hoje o que foi desde que ele o compôs, tanto um modelo do que se pode fazer com o sistema tonal quanto um conjunto de peças indispensável para quem toca instrumentos de teclado desenvolver a independência dos dedos e aprender o que ele chamava de toque cantabile, ou seja, aprender a pensar musicalmente. Bach é a base de tudo o que se fez depois dele, assim como Freud: ninguém mais analisa como Freud, mas as suas obras são um modelo do que se pode fazer com a teoria psicanalí-tica, e contêm inumeráveis exemplos de raciocínio clínico, de psicopatologia, de questões técnicas, que nos ensinam a pensar psicanaliticamente.

O mesmo se pode dizer das obras dos seus principais sucessores, e mais uma vez o caso da música pode servir de comparação. Depois de Bach, vieram Mozart, Beethoven, os românticos etc.; na psicanálise, os equivalentes deles são Abraham, Ferenczi, Klein, Bion, Lacan, os psicólogos do ego, os teóricos das relações de objeto, como Winnicott... Ler esses autores nos ensina como lidar com pacientes diferentes daqueles a partir de cujo tratamento Freud criou as bases da psicanálise. Mas o principal, do ponto de vista da nossa formação, é nos vacinar contra a ideia absurda de que a psicanálise é um bloco monolítico. Não é - e o extraordinário é que, sem coincidir in toto com o que Freud escreveu, os autores pós-freudianos continuaram o que ele começou e tanto desenvolveu.

É justamente por isso que se pode falar da história das ideias e das práticas psicanalíticas, num sentido forte: as teorias elaboradas por eles são ao mesmo tempo psicanalíticas, porque conservaram o essencial da herança freudiana, e não freudianas, porque introduziram concepções que não podem ser diretamente derivadas do que ele nos legou. Desde a morte de Freud, 80 anos atrás, a psicanálise não apenas se expandiu geograficamente, mas sobretudo científica e clinicamente, passando a poder compreender e tratar de organizações psíquicas para as quais - apesar de algumas indicações aqui e ali - o legado de Freud não é suficiente. Quem diz isso é André Green, um dos autores contemporâneos que mais longe foi na direção que estou caracterizando.

Quanto à vertente que poderiamos chamar de factual - a história das pessoas e das instituições - ela também é de grande interesse, quando mais não fosse porque conhecê-la é condição indispensável para não ficarmos atados ao “romance familiar” induzido pela maneira como nos formamos. Necessariamente, nossa análise pessoal e cada supervisão a que nos submetemos foram realizadas dentro de determinada orientação, já que ninguém é freudiano ao acordar, kleiniano depois do almoço e lacaniano à noite. Por mais que nosso analista e nossos supervisores não sejam adeptos da monocultura, que segundo Caio Prado Jr. é a base do subdesenvolvimento, a transferência e a angústia diante dos primeiros atendimentos nos levam a tentar operar como eles - o que mais poderia fazer um analista iniciante?

É só com o tempo que vamos aprendendo a falar com nossa própria voz - e, nesse processo, saber o que aconteceu antes de nós é de grande ajuda. Como se formou a instituição a que pertencemos? Quem foram os mestres dos nossos mestres? Por quais vicissitudes políticas, teóricas e clínicas essa instituição passou até chegar à sua conformação atual? Tudo isso só pode ser compreendido se tivermos acesso à história dela, e também à do restante do movimento analítico, de modo a poder contextualizá-la (e por consequência a nós mesmos) na grande corrente que começa com Freud, e que tanto se diversificou desde o tempo dele. É assim que se constrói nossa identidade de psicanalistas.

Nesse sentido, o que temos hoje - para além do que cada um fica sabendo em conversas particulares ou em palestras - são alguns bons livros sobre a história do movimento analítico, tanto no Brasil quanto em outros países. Para ficarmos no caso de São Paulo, há o de Roberto Yutaka sobre a IPA (Álbum de família) e a História do Departamento de Psicanálise do Sedes, escrita por Roney e Monica Musatti Cytrynowicz. Talvez haja outros, por exemplo sobre o movimento lacaniano, mas não os conheço.

Em todo caso, o que não temos - e espero que um dia tenhamos - é uma história das ideias psicanalíticas no Brasil, que começasse com a recepção de Freud pelos psiquiatras aí por volta de 1900 e viesse até os dias de hoje. Isso requereria um esforço hercúleo, talvez coletivo - digamos um livro com capítulos sobre tal ou qual período, ou instituição, ou corrente teórica, cada um escrito por um autor, e um prefácio do organizador apresentando sinteticamente o conjunto da coisa.3 Para a primeira etapa dessa história, de 1900 até 1930 aproximadamente, já existe um trabalho, a excelente dissertação de mestrado em psicologia clínica defendida em 2013 por Josiane Cantos Machado: A história da psicanálise no Brasil nas primeiras décadas do século XX, disponível em pdf no portal da puc-sp.

RBP: Você ressalta que é importante distinguir o saber da técnica e o saber da história das pessoas. Mas também é preciso aprofundar o conhecimento da relação entre esses saberes, não?

RM: Sem dúvida. E, para isso, o melhor seria estabelecer uma disciplina específica de história da psicanálise, com duração de alguns semestres, porque o material é tão extenso que não caberia apenas em um. Quanto ao conteúdo, me parece que deveria contemplar as duas vertentes de que falamos. Digamos que fossem seis semestres, algo como umas 150 aulas. Em cada uma, se poderia abordar um período específico do passado da psicanálise, por exemplo o que chamei de era dos debates, que vai de 1919 a 1939, isto é, do pós-Primeira Guerra Mundial até a emigração de Freud para a Inglaterra, que assinala o fim da predominância da psicanálise centro-europeia no movimento internacional. Começaria contextualizando a época - os anos 1920 e 1930, com as grandes mudanças políticas e culturais que ocorreram então. Em seguida, se focalizariam as teorias que foram sendo propostas por Abraham, Ferenczi e pela segunda geração de analistas, formada nos Institutos de Berlim, Viena, Budapeste e Londres, o surgimento da escola kleiniana etc. Nesse item, caberia estudar alguns textos desses autores, diretamente (lendo e discutindo os próprios, não só os resumos dos manuais), para entender a partir de quais questões clínicas eles foram levados a propor conceitos e hipóteses diferentes (e por vezes contrários) aos então vigentes. Por fim, haveria discussões a respeito da utilidade disso tudo para a prática atual - até que ponto nos servimos dessas noções, quais foram deixadas de lado e por que etc.

Um ponto importante merece ser lembrado aqui: qualquer história, seja do que for, comporta um aspecto causal - isso provavelmente determinou aquilo, que por sua vez levou àquilo outro - mas também um elemento que talvez devamos creditar ao acaso. Quero ser claro: acaso aqui não significa sem razão - tudo o que existe tem uma ou várias causas - mas algo que poderia ter sido diferente do que foi. E por quê? Porque, na série de causas que determina esse fato, algo poderia ter sido diferente, ou não ter acontecido, produzindo portanto um resultado X em vez do resultado Y que acabou ocorrendo.

Um exemplo ajuda a entender o que estou afirmando: na pesquisa que mencionei antes, a Izabel Madureira descobriu que Ernest Jones era um excelente patinador no gelo. Obviamente, isso não tem influência alguma sobre suas ideias como psicanalista, mas diz algo sobre a psicologia dele, e é o seguinte: Jones era um galês, membro de uma minoria que ainda hoje se ressente de ter sido dominada pelos ingleses. Mas, como queria se integrar à maioria inglesa da Grã-Bretanha, isso lhe causava um problema de identidade (que a Izabel estuda em detalhe, e não vem ao caso agora), agravado pelo fato de ele ser mais baixo que a média dos homens daquela época. Entre as atitudes que ele tomou para lidar com essas questões narcísicas, em particular para ser aceito e respeitado na classe alta, à qual não pertencia por nascimento, nem por ter estudado em escolas de elite, está a escolha desse esporte, ou hobby, que na época estava em moda naquele meio. Até aí, nada de extraordinário. Ocorre que a patinação no gelo levou Jones a estabelecer vínculos de amizade com gente influente. Entre essas pessoas havia um cidadão que, na época em que ele estava tentando tirar Freud de Viena, ocupava um alto posto no Foreign Office. Está aí o fator acaso: se não tivesse um amigo no lugar certo e na hora certa, talvez os seus esforços para colocar a força do Império Britânico a favor da família Freud não tivessem alcançado êxito.

Entre os apoiadores de Freud nessa ocasião figuravam também Marie Bonaparte e William Bullitt, o coautor do livro inacabado sobre o presidente Wilson. Suponhamos que a princesa tivesse tido um infarto justo nesse momento, e/ou que Bullit, agastado pelas divergências quanto às ideias de Freud sobre Jesus Cristo, não tivesse se empenhado tanto para mobilizar o governo Roosevelt em favor dele. Qualquer dessas circunstâncias, com ou sem o fator Jones patinador e bem relacionado, poderia ter levado Freud a ficar em Viena em vez de ir para Londres. As consequências disso não afetariam apenas a ele, mas a todo o movimento psicanalítico até hoje: por exemplo, não teriam ocorrido as Discussões Controversas na Sociedade Britânica, e Melanie Klein talvez tivesse reinado nela praticamente sem oposição; provavelmente Anna Freud teria ido para Auschwitz com as suas tias, e não existiria uma ala egopsicologista na Inglaterra...

Tudo isso pode parecer muito distante da formação do analista, mas seria um grande equívoco pensar assim. No estudo sobre a “jovem homossexual” (1919), Freud pondera a respeito do papel de fatores desse tipo na vida das pessoas, e portanto também na causação das neuroses que as afetam. Diz ele que, partindo do presente, é em princípio possível reconstituir de modo razoavelmente provável a cadeia de fatores que gerou tal e tal organização defensiva, tais e tais sintomas etc. Mas o contrário não é possível: mesmo que conhecéssemos o suficiente sobre o ponto de partida - a constelação disposição constitucional + ambiente - disso não se poderia deduzir o futuro, pela boa e simples razão de que diante de tais ou quais circunstâncias o indivíduo poderia ter reagido de forma diversa do que fez, e consequentemente todo o resto da série teria sido afetado por esse fato. Bastaria a Sra. K não ter virado amante do pai de Dora, ou o Sr. K, indignado com os avanços do rival, desafiá-lo para um duelo e acertar o alvo...

Ou seja, há um fator aleatório (no sentido de não poder ser deduzido da cadeia causal) com o qual devemos contar no raciocínio clínico. A mim isso parece de importância considerável, por uma série de razões, entre as quais a de estabelecer que tipo de ciéncia é a psicanálise - mais próxima da história, da economia etc., do que das ciéncias naturais, pelo tipo de fenômenos que estuda e pelo aspecto probabilístico essencial nas teorias que formula.

RBP: Como pensar o que acontece na formação de uma instituição, nas escolhas, nas renúncias, nos movimentos que conversam com o saber e suas correlações? Há movimentos para dentro de um meio institucional, e também para fora: quem vocé aceita, quem limita, quem recusa, com quem se fazem alianças. Vocé não concorda que, quando se fala em história, é em geral de forma secundária, anedótica, e não como um debate entre saberes?

RM: Vamos por partes. Com a psicanálise, aprendemos a não achar que uma coisa anedótica não é importante. Aprendemos a prestar atenção exatamente no detalhe pitoresco, dissonante, na coisa curiosa, naquilo que faz ruído. Buscamos compreender o sentido disso, o que significa incluí-lo no conjunto do discurso do paciente como algo que tem significado e razões para ser assim e não de outro modo - ou seja, o que Freud dizia ser necessário para interpretar um sonho (“incluí-lo na cadeia de acontecimentos psíquicos como algo significativo”, capítulo 2 da Traumdeutung).

No caso da história da psicanálise, isso quer dizer levar em conta o lado factual - o que aconteceu com as pessoas, entre elas, nas instituições etc. - e procurar usar essas informações para compreender as linhas da grande história. O caso de Jones e da patinação é um ótimo exemplo disso, mas está longe de ser o único.

Concordo com você que, na nossa formação, deveríamos poder ter condições de situar a instituição a que pertencemos - seja ela qual for - dentro dessa grande história. A vantagem fundamental disso é que contribui para evitar uma adesão acrítica à visão que ela tem, oficialmente, de si mesma. Em geral, essa visão sugere (quando não afirma, ou mesmo impõe) a ideia de que ela é o único herdeiro legítimo do pai fundador, a portadora da “verdadeira” psicanálise. Isso já foi mais estridente e mais intolerante do que hoje em dia, mas penso que continua a existir. E penso também que conhecer a história dos demais “irmãos” que foram surgindo na família psicanalítica aumenta as chances de respeito recíproco e de diálogo entre todas as instituições.

Aqui talvez convenha lembrar uma experiência pessoal, que já contei em outras ocasiões. Eu comecei minha análise na França, com um analista da IPA (Claude Le Guen), e aqui a continuei com Vera Stela Telles, na época também da IPA . Havia diferenças enormes na forma como cada analista conduzia o trabalho, e a princípio isso me deixou perplexo: como modos tão diversos de ouvir e de interpretar podiam ser ambos psicanalíticos? O analista francês era muito mais silencioso, o que dava às suas escassas falas um peso muito grande. A transferência era interpretada, obviamente, mas de maneira menos explícita e detalhada que no estilo kleiniano então imperante aqui. O passado infantil, por sua vez, era bem mais valorizado do que pela Vera Stela, que se centrava no aqui e agora. Apareciam expressões que eu nunca tinha ouvido no divã do Le Guen, como “no nosso encontro”.

A princípio, eu pensei que se tratasse de diferenças individuais, pois eram pessoas diferentes, ou talvez devidas ao fato de ela ser também professora universitária (na USP) e uma reputada analista de crianças, e o Le Guen não ser nem uma coisa nem outra. O fato é que acabei me dando conta de que as razões do que me deixava atônito eram de outra ordem: deviam-se a concepções diferentes do que é o funcionamento psíquico e do que significa interpretar. E, por sua vez, o fato de que existiam concepções diferentes sobre elementos tão centrais da prática psicanalítica tinha raízes na maneira como a psicanálise havia se implantado na França e no Brasil - resumidamente, o papel respectivo de Freud (via Lacan) na psicanálise de lá, e da escola inglesa (principalmente Klein) na daqui.

Consequentemente, nas discussões entre analistas na IPA francesa apareciam temas que aqui não teriam como aparecer: por exemplo, quais os fundamentos da eficácia da fala do analista, assunto tratado ampla e profundamente pelo meu professor Conrad Stein. Não que isso não pudesse interessar aos paulistas - claro que sim - mas o problema tomava outra feição, justamente porque em Paris uma das características dessa fala do analista era ser concisa, alusiva, quase oracular, e aqui era exatamente o contrário.

Veja bem: não estou dizendo que uma forma de praticar a análise era melhor ou pior que a outra, mas sim que o ambiente em que se deu a formação dos meus dois analistas influía poderosamente na sua maneira de trabalhar. Por outro lado, talvez a forma menos explícita de interpretar a idealização inerente à transferência que predominava na França tenha algo a ver com o que mencionei antes, a saber, o risco de alienação que tanto preocupava os analistas. Um exemplo assombroso de que esse risco era bem real está num livro que muito me impressionou: Um destino tão funesto, de François Roustang. A tese dele é espantosa: é impossível que uma associação de psicanalistas escape desta armadilha - daí o título, inspirado num verso de Racine sobre a família da qual descendia Édipo - os assassinatos de filhos se repetindo de geração em geração. E por quê? Porque, segundo Roustang, a história da psicanálise é determinada pela sucessão de transferências inanalisadas e inanalisáveis que condena os “filhos” dos analistas didatas à eterna servidão. Ou seja, entre analistas é impossível uma associação civilizada e democrática.

Eu discordo desse absurdo em gênero, número e grau. Ele provém da experiência de Roustang - e de outros analistas da sua geração - com o autoritarismo de Lacan, e com a alergia dele a todo e qualquer pensamento independente por parte dos seus “alunos”, como os chamava. Mas de forma alguma é um destino inapelável. Considerá-lo assim resulta, também, de uma extrapolação equivocada da psicanálise para uma esfera na qual ela não pode ter pretensões absolutas, a saber, os fenômenos sociais. Em outros termos, para Roustang os únicos meios de explicar um fenômeno social (como o funcionamento de uma instituição, psicanalítica ou não) são os que a psicanálise nos oferece - o jogo das pulsões, defesas, angústias, fantasias etc. Ora, isso está completamente errado, porque uma instituição não é um indivíduo, e envolve outros aspectos, como o direito à divergência, formas aceitas de debate, de crítica, de alternância de poder, e assim por diante. Esse imperialismo epistemológico da psicanálise é outra coisa contra a qual o conhecimento da história pode nos vacinar: ela não explica tudo, nem tudo de tudo. Como na célebre tirada de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.”

RBP: Por falar em filosofia, essa foi a sua formação original. Em que medida se pode dizer que ela contribuiu para a sua visão da história da psicanálise?

RM: Simplesmente, em tudo. Eu vim a me interessar pela psicanálise na faculdade - no Dante Alighieri, ela passava longe das aulas, mesmo no curso clássico, que eu frequentei. Nas aulas da Marilena Chauí, fiquei conhecendo a Miriam Chnaiderman e a mãe dela, a Regina, que as assistia junto com a filha. Quando resolví fazer o mestrado em filosofia - isso era em meados da década de 1970 - fui conversar com a Marilena, e para começar ela me deu uma bibliografia daquelas de três páginas. Nela figuravam as Conferências de introdução à psicanálise, que eu comecei a ler esperando o ônibus para voltar para casa, e que me deixaram simplesmente maravilhado. Aquilo podia ser tema de uma tese de mestrado? Foi o que perguntei à professora, e ela respondeu: “Por que não?”. O resultado foi o livro que depois saiu pela Perspectiva com o título Freud: a trama dos conceitos. Para escrever sobre um autor, filósofo ou não, exigia-se a leitura integral da sua obra, e eu não tinha condições de comprar a Standard Edition, que então estava chegando ao final. A Regina me emprestou todos os volumes, e por isso as citações de Freud no meu livro são todas da Standard.

Esse é outro exemplo do que falamos antes, o papel do acaso na vida de uma pessoa, e, se essa pessoa for um analista, na história da psicanálise. Não me parece pretensioso pensar que o meu interesse por esse tema faça parte da história da psicanálise em São Paulo, e portanto no Brasil, pois foi aqui que pude dar sequência a esse interesse, e, por ser professor no Sedes e na puc, contribuir para que hoje em dia ela seja mais conhecida e estudada do que na época da minha formação. Volto a repetir: o acaso se dá no plano da existência pessoal dos indivíduos, não no dos fatores históricos em sentido amplo. Dito de outro modo: o que foi casual para mim - porque poderia não ter ocorrido - é que a Regina aparecesse na minha vida, me emprestasse os livros, e além disso tivesse seus próprios projetos na área da psicanálise, em função da sua biografia anterior.

Não é em absoluto casual, por outro lado, que esses projetos envolvessem a criação de um curso de psicanálise fora da IPA , nem que, graças à Madre Cristina e à biografia dela, somada às condições políticas de então (ditaduras no Brasil e na Argentina), justamente naquele momento chegassem ao Brasil muitos analistas argentinos, que aqui se exilaram devido à perseguição de que eram alvo no seu país. Esses fatos e processos são muito mais amplos do que nossas pessoas, e têm razões que continuariam a valer se nenhum de nós estivesse por perto.

O fato é que, ao voltar da França, fui conversar com a Regina sobre como continuar a minha análise aqui. Ela me recomendou a Vera, e, quando decidi abrir meu consultório, me indicou pacientes e se tornou minha supervisora. Por recomendação dela, a Suely Rolnik indicou meu nome para dar aulas na pós-graduação em psicologia clínica da puc, onde então a psicanálise estava pouco presente. De novo o acaso: para poder ser contratado, era necessário ser doutor, e eu estava justamente por defender meu doutorado na filosofia da USP, que depois veio a ser o livro Freud, pensador da cultura. Se eu não o tivesse pronto, não teria podido atender a esse requisito, e possivelmente a vaga teria sido ocupada por outra pessoa. O que é casual, então, é a conjunção de todos esses fatores, cada um deles inteiramente determinado por outros, em vários níveis e planos.

RBP: Não é justamente este o trabalho da história, explicar os vários eixos que estão interconectados?

RM: Exatamente. Se os argentinos não tivessem vindo para cá, a psicanálise brasileira não comportaria esse componente que veio pelo Sedes e pelos seus desdobramentos - uma ala com compromisso social maior, com interesse maior na atividade do analista extramuros, como dizia o Laplanche. Enquanto as Sociedades da IPA se limitavam essencialmente ao trabalho de consultório - a Clínica Social de Psicanálise do Rio era uma exceção que confirmava a regra - o pessoal do Sedes inventava coisas, e essa era uma faceta progressista no panorama da época.

Por exemplo, no governo Franco Montoro foi firmado um convênio entre o Sedes e a Secretaria Estadual da Saúde, com o objetivo de dar treinamento em saúde mental aos agentes do serviço púbico envolvidos no acolhimento e no tratamento de pessoas que o buscavam. Não havia ainda os Caps, o sus estava engatinhando, e durante uns bons três ou quatro anos os professores do curso de psicanálise trabalharam com enfermeiros, atendentes etc., ajudando-os a entender melhor o que é o psiquismo, e portanto o que estavam fazendo nas equipes de cuidados das quais participavam.

A própria ideia de saúde mental nos chegou com os psicanalistas argentinos: vários deles haviam trabalhado no movimento de salud mental de lá, cujos determinantes não vêm agora ao caso, mas que certamente têm a ver com a história da Argentina - o papel dos sindicatos na prestação de serviços de saúde, elemento fundamental na estratégia tanto social quanto política do peronismo - e com a história da psicanálise na Argentina, da qual fazia parte a contestação do grupo Plataforma a certas posturas políticas da IPA . Essa contestação explodiu num congresso no início dos anos 1970, e está na base de uma grande reforma das estruturas de poder no interior da IPA como um todo, e das Sociedades locais também, inclusive em São Paulo.

RBP: Que hipótese você fazia para esse fechamento?

RM: Naquele momento, me parecia mais um efeito nocivo da falta de diálogo entre as diversas associações de psicanalistas, por sua vez derivada da convicção de cada uma de ser a portadora da única psicanálise legítima e verdadeira. E isso não era exclusivo da IPA : se os kleinianos consideravam Lacan um mero intelectualista, desprezando a colossal elaboração de 24 anos do Seminário, os partidários deste acusavam os kleinianos de terem ficado presos ao imaginário e de serem conservadores, para não dizer reacionários, em matéria política.

Na verdade, o autoritarismo no interior das associações era a regra, tanto em assuntos políticos internos quanto no leque extremamente limitado de opiniões aceitas e permitidas. Tanto é que, em 1976, René Major criou em Paris um espaço em que fosse possível falar livremente de ideias novas - parece absurdo que isso tenha sido necessário numa corporação dedicada em princípio à investigação daquilo que nos escraviza na vida psíquica... Mas foi o que aconteceu, e Confrontation se tornou um sucesso estrondoso. Eu, que acabava de desembarcar lá, tive oportunidade de assistir a vários cursos e palestras dados por analistas dos quatro grupos então existentes, e todos eles diziam que só ali poderiam exprimir suas ideias sem medo de serem rechaçados como heréticos.

Por outro lado, e agora me referindo especificamente ao Brasil, o conservadorismo e a falta de participação na esfera pública não eram exclusivos dos psicanalistas da IPA : em sua grande maioria, a classe média e os profissionais de outras áreas tampouco se arriscavam a contestar o regime ditatorial. E, às vezes, havia colaboração direta com ele, como no caso escandaloso de Amílcar Lobo. Tanto a Sociedade do Rio de Janeiro quanto a IPA , na pessoa do seu então presidente Serge Lebovici, foram coniventes com o episódio, e procuraram acobertar Leão Cabernite, que era o analista didata de Lobo. Sabemos disso pelo livro Não conte a ninguém, de Helena Besserman Vianna: quando ela denunciou a história, foi repreendida pela Sociedade a que pertencia, e, tendo viajado à França para buscar apoio, recebeu de Lebovici um telefonema no qual ele lhe pedia cautela, discrição. “N'en parlez à personne”, foi o que ele disse - daí o título do livro - porque a própria IPA iria tratar do assunto etc.

O fato de ter sido um incidente isolado não retira um grama da gravidade dele. A atitude dos poderes constituídos foi covarde, para não dizer cúmplice e indecente. Havia um candidato que participava das torturas impostas pelo regime aos dissidentes presos, e isso era simplesmente intolerável. Os colegas que apoiaram Helena - em especial Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas -foram expulsos da Sociedade do Rio de Janeiro, processaram a dita Sociedade, e acabaram reintegrados por ordem judicial.

RBP: É interessante observar a potência antidogmática que esse tipo de estudo tem. Você usa a metáfora do tronco e dos ramos para falar da história da psicanálise, e penso no papel do terroir no desenvolvimento das ideias, dependendo de como uma ideia floresce, ou não, aqui ou ali. Na formação, temos uma tradição de visitar os clássicos, mas é como se os estudos partissem do tronco para o ramo específico que está sendo enfocado, sem levar em consideração o todo. E isso que você está falando da história ajuda a fazer um recuo, a ter essa noção da árvore, do todo. Há esse galho aqui porque as condições permitiram que aqui a psicanálise se desenvolvesse de uma forma, e em contrapartida os ramos de lá se desenvolveram de outra... O estudo da história da psicanálise permite que saiamos um pouco dessa ideologia da psicanálise, ou seja, que possamos pensá-la a partir da vertente, ou da matriz clínica, com a qual nos identificamos.

RM: Você está definindo isso de forma perfeita. Estamos sempre falando das pessoas e das instituições. É muito importante, pois hoje em dia, 35 anos depois, ainda perdura um pouco esse sentimento de que só existem Freud e nós, e o “resto” é desprezível.

RBP: Os impostores.

RBP: Como se fossem os filhos bastardos.

RM: Inclusive, em certa medida, no interior da própria IPA . Foi preciso um combate vigoroso por parte das Sociedades francesas para fazer aceitar o seu sistema de três sessões por semana na análise didática. O argumento da IPA era que a “verdadeira” psicanálise exigia quatro. Como quem discordava disso eram os franceses, que têm um papel importante na psicanálise mundial, e não os hondurenhos ou os albaneses, eles acabaram aceitando que a Guerra dos Cem Anos acabou, e engolindo a validade das três sessões. Foi uma vitória considerável, me parece, porque essa questão tinha virado um fetiche, uma reserva de mercado travestida de purismo. Se fosse para ser fiel à tradição, por que não impor análises de seis vezes por semana, como faziam Freud e os primeiros analistas? O fato é que a qualidade de uma análise não tem nada a ver com o modo como se distribuem as sessões semanais, o que também acabou sendo aceito - é o que se chama análise condensada, imposta em certos casos pelas condições geográficas e econômicas.

RBP: Porque alguém frequentar o consultório de um analista quatro vezes por semana não quer dizer que ele faz análise.

RM: Voltamos ao tema da idealização presente no nosso estilo de formação, que é um problema inescapável - o que não quer dizer, obviamente, que seja insolúvel. Mas é preciso pensar em soluções para ele, ou seja, em formas de processar os resíduos transferenciais que sobrevivem após o fim das sessões com o analista, seja ele didata ou não. Fiquemos no caso da análise de formação: no Quarto Grupo, existe uma prática chamada análise quarta, que consiste em que, uma vez terminada a análise, o candidato passe a ver outro analista - o quarto, se contarmos ele próprio, seu analista e seu supervisor - para falar do seu processo analítico, durante ao menos um ano. O objetivo dessas sessões é exatamente permitir ao candidato detectar, e se possível superar, os resquícios de idealização que poderiam entravar sua criatividade como analista.

A utilidade desse procedimento fica evidente quando nos lembramos de certas situações ridículas devidas exatamente à identificação mal resolvida com o analista e a tudo o que esta envolve. Nos anos 1980, havia no Rio de Janeiro analistas lacanianos que faziam questão de atender usando gravata borboleta, como Lacan, e até fumar aqueles charutos tortos iguais aos dele. É o que Freud tinha em mente ao falar, na Psicologia das massas e análise do ego, de identificação no plano do ego, que leva o soldado a querer imitar os modismos do comandante, enquanto uma identificação no plano do ideal do ego o levaria a querer ser tão corajoso, ou tão bom atirador etc., quanto esse mesmo comandante.

A diversidade é um grande trunfo da psicanálise, não um obstáculo ao que quer que seja. E ela é fruto da história - de onde mais um argumento para estudá-la com cuidado. Em meados dos anos 1980, o reconhecimento dessa diversidade levou o então presidente da IPA , Robert Wallerstein, a levantar a questão de se havia one psychoanalysis or many, e, tendo optado pela segunda resposta, a incitar os analistas a buscar o common ground, o terreno comum, entre as diversas correntes ou tendências dentro da nossa disciplina. Isso foi muito importante, tanto para estimular o conhecimento das demais escolas psicanalíticas quanto porque para isso era preciso levar em conta como e por que elas se constituíram, ou seja, a história em sentido forte.

É verdade que, na proposta de Wallerstein, esse common ground se resumia às escolas de língua inglesa, deixando de lado o pensamento de Lacan. São os males da monocultura, no caso o monolinguismo - enquanto na França se estudam os autores ingleses, e em menor medida os americanos, os que só sabem inglês continuam a achar Lacan uma curiosidade etnológica, como os esquimós ou os apaches, que só pode interessar aos departamentos de literatura ou às feministas. Mas de qualquer modo era um avanço importante.

Aqui, mais uma vez, o exemplo da história de outras disciplinas indica o caminho a seguir. Poderíamos tomar o caso da história das ciências, mas não me parece o melhor, porque nela o passado tem interesse epistemológico, ou puramente histórico - quem hoje pensa a física como Galileu ou Newton, ou a medicina como Hipócrates e Galeno? O bom exemplo é o da história da filosofia, porque ela é, como dizia Merleau-Ponty, “toda no presente”. As ideias de Platão ou de Espinosa têm, para os filósofos de hoje, o mesmo valor que as do número mais recente de uma revista da área, porque tratam de questões humanas que permanecem no centro da reflexão contemporânea, exatamente como as de Freud, Abraham, Ferenczi e outros mestres do passado da psicanálise.

O que me parece apropriado, se formos seguir esse exemplo, é ir do mais geral para o mais particular, começando pela época histórica em sentido geral e terminando em temas específicos ligados à clínica. Quando e onde este autor viveu? Quem eram seus mestres, seus colegas, seus adversários? Com quem ele discutia? Que questões estavam em debate? Que conceitos existiam para dar conta delas? No que consistem as inovações que ele propôs, a partir de quais problemas clínicos ou teóricos, como e por que foram eventualmente questionadas pelos contemporâneos?

Ou seja, começar por formar uma ideia geral do conjunto, como quando vamos para uma cidade que não conhecemos: arranjamos uma planta dela, verificamos onde estamos, quais são os pontos que nos interessa visitar, como chegar até eles etc. Não vamos conseguir conhecer a cidade como alguém que vive nela, mas ao pegarmos o avião teremos tido uma experiência razoável de como é. Traduzindo para o nosso caso: não vamos chegar a conhecer o autor em questão como alguém que segue o seu pensamento, mas teremos aprendido algo com ele - não somente o que pensa sobre tal ou qual tema, mas como chegou a essas ideias e qual é o possível alcance delas, o que a meu ver faz uma diferença para lá de considerável.

RBP: A ideia de mapa nos permite pensar na visão geral de uma cidade, que tem partes que não conhecemos, mas ficamos sabendo que existe um pedaço que não conhecemos, há um registro daquilo que não conhecemos.

RM: Exatamente.

RBP: Isso remete ao que falávamos no começo: temos que pensar na questão da história e da memória. Aqui está se falando do estudo da história, que vai do geral para o particular, diferentemente da nossa prática clínica, que parte do singular do paciente; de como estudar história pode ser uma grande ferida narcísica, como se eu me desse conta de que não sou o herdeiro direto, mas um pedaço aqui no meio de tanta coisa, e há tantas coisas que eu desconheço...

RBP: Um reles mortal.

RBP: Em relação a isso, eu sou mais um.

RM: O que você está sugerindo ajuda a explicar a resistência das pessoas a estudar a história da psicanálise, que tanto me chamava a atenção quando comecei a me aventurar por essas searas. A familiaridade com a história da filosofia foi sem dúvida determinante para a atitude geral que me parecia recomendável. Se a diversidade na psicanálise envolve meia dúzia de tendências e alguns decênios, o equivalente na filosofia se refere a algumas dezenas de escolas e a 2.700 anos de reflexão, desde os pré-socráticos até os dias atuais. Como pretender que a minha variedade seja não apenas melhor que as outras, mas ainda a única “verdadeira” filosofia?

No caso dos meus colegas analistas, que por outro lado eu respeitava em tantos aspectos, essa atitude narcisista devia ter uma explicação. E a que encontrei era justamente ligada à esfera narcísica, sob a forma das identificações que estão na base das nossas convicções analíticas: mais do que mera ignorância ou prepotência, a desconfiança quanto à utilidade do estudo da história podia ser resultado do temor de que, ao conhecê-la melhor, essas identificações pudessem ser abaladas. Era, em suma, um reflexo defensivo, como escrevi num texto que se tornou o capítulo inicial de O tronco e os ramos, e que, numa homenagem ao Sartre da Crítica da razão dialética, intitulei “Questões de método na história da psicanálise”. A primeira versão dele saiu em 1985, e representava uma primeira tomada de posição diante dos desafios epistemológicos e metodológicos da empreitada em que eu estava me metendo.

O essencial dessa postura é que, como disse no início da entrevista, uma história da psicanálise não deve ter como objetivo a apologia de uma corrente, como se todo o passado dela conduzisse inevitavelmente a ela, primeiro porque isso não é verdade, e segundo porque ela deve visar exatamente ao oposto: despertar no leitor, se essa for a sua convicção, um germe de dúvida - será mesmo assim?

Insisto que essa convicção, tão frequente em certos círculos analíticos, não é fruto de nenhuma conspiração sombria para impedir os candidatos de pensar com a própria cabeça, mas um resultado do processo de formação, se nele não estiverem previstos antídotos eficazes contra ele. Esse resultado é potencializado pela maneira como trabalhamos, e isso desde os momentos iniciais, quando a ansiedade e o medo de errar nos levam a nos apoiarmos no que aprendemos no tripé formativo, e estamos preocupados demais em seguir os bons modelos.

RBP: Você falava da sua formação e de dois espaços na mesma cidade: formação na USP e em outros lugares em que você circulou, e o espaço da Sociedade. Que peso tem isso num conjunto maior, como a cidade, e, se tem, será que se pode pensar o fechamento como um traço das instituições psicanalíticas? Que particularidade isso teria em São Paulo? Sabemos que uma questão que perpassa isso é o preço que se pagava efetivamente pela formação.

RM: Primeiro, nem sempre a formação em São Paulo teve um caráter tão dogmático quanto nos anos 1960, 1970. Os pioneiros, como a D. Lygia, com sua experiência de educadora sanitária, a Virgínia Bicudo, que vinha da Escola de Sociologia e Política, um homem como o Theo Spanudis, colecionador de arte e tão culto, o próprio Durval Marcondes... A formação não era restrita a médicos e psicólogos, como em outros lugares do Brasil (Rio, Porto Alegre etc.). Eram pessoas que se tornaram psicanalistas a partir de uma curiosidade sobre o ser humano, que não nasceu só da sua própria neurose. Havia vozes dissonantes, digamos assim; uma delas era a do Isaías Melsohn.

Aos poucos, foi se consolidando a influência kleiniana, trazida pelos que estudaram em Londres no final dos anos 1940, início dos anos 1950. Isso, aliás, é uma questão interessantíssima: o que teria aproximado do grupo em torno de Melanie Klein os latino-americanos (porque não foram só os brasileiros: os argentinos e os uruguaios seguiram o mesmo caminho)? Tenho algumas hipóteses, mas elas ficam para outra conversa.

O fato é que era um grupo muito pequeno de pessoas, unidas por um propósito comum, e isso cria exatamente o tipo de esprit de corps do qual estávamos falando, a convicção de que estamos no rumo certo. Também há o fator juventude, ou pouca experiência: para que inventar modas, se a psicanálise que aprendemos já está tão aperfeiçoada? A atmosfera dogmática de Londres, dividida como estava a Sociedade Britânica nos grupos annafreudiano, kleiniano e Independente, também deve ter tido alguma importância nessa rigidez de espírito. Seja como for, com exceção do Isaías, e depois do Fabio Herrmann, em termos de pensamento original pouco se fez na Sociedade de São Paulo nas primeiras décadas da sua existência. Se quisermos usar a terminologia de Thomas Kuhn, os analistas dela faziam ciência normal, isto é, dentro do paradigma consensual, no caso o kleiniano.

Enquanto isso, na própria Sociedade Britânica as ideias iam evoluindo, em particular no Grupo Independente. Winnicott, por exemplo, escreve o seu artigo sobre o objeto transicional, que segundo Decio Gurfinkel (e também segundo André Green, que escreve sobre esse texto no livro Narcisismo de vida, narcisismo de morte) tem um papel seminal no desenvolvimento não só das suas ideias, mas ainda de toda uma corrente que vai se preocupar com as organizações psíquicas não neuróticas.

O que o Decio traz sobre esse assunto no livro que dedicou às relações de objeto me parece interessantíssimo, porque mostra no detalhe como surge um conceito novo na nossa área. Winnicott cita o trabalho de um analista russo então vivendo nos Estados Unidos, chamado Moshe Wulff, que descreve alguns casos bem parecidos com os que o levaram a postular a existência da área transicional e do objeto transicional.4 Wulff procura compreendê-los como exemplos de um “fetichismo infantil”; Winnicott não se convence com essa explicação, porque na teoria psicanalítica o fetichismo pressupõe a existência de um complexo de castração, e as crianças observadas por Wulff em Moscou ainda não haviam chegado a esse momento da evolução psíquica.

Winnicott situa o objeto transicional numa fase anterior, bem no início da vida, e portanto pode atribuir a ele, e posteriormente à área intermediária de ilusão na qual ele se constitui, uma função bem mais importante na organização psíquica da criança. Além disso, ao escolher este nome (área intermediária), faz referência a algo semelhante, que Freud havia descrito em “Recordar, repetir e elaborar”: o Zwischenreich, ou território intermediário, no qual se instala e se soluciona a neurose de transferência. Ou seja, inscreve a sua descoberta na história da psicanálise, o que no mínimo lança alguma dúvida sobre certas opiniões recentes do seu papel nessa história, segundo as quais ele teria sido o autor de uma concepção inteiramente nova e revolucionária do ser humano, que dispensaria o recurso à metapsicologia como linguagem conceitual para a nossa disciplina. O que é a área transicional, senão um conceito metapsicológico?

Estou trazendo esse exemplo porque me parece ilustrativo do que é a tarefa de escrever a história da psicanálise. Decio estuda o conceito que o interessa situando-o no contexto de um debate que então tinha lugar na Sociedade Britânica, entre Winnicott e Melanie Klein; lê com cuidado o texto que o introduz, vai atrás do que ele discute (o de Wulff), localiza o ponto de divergência com o autor que o precedeu, busca compreender os motivos que levaram esse último a interpretar o fenômeno nos termos em que o faz, assim como os motivos da crítica de Winnicott a essa interpretação... Lendo o seu livro, aprendemos muito mais do que isso: aprendemos a não acreditar em visões messiânicas, como a que transforma Winnicott num inovador absoluto, que se oporia por completo às doutrinas de Freud. Vacina da melhor qualidade contra o dogmatismo!

A tarefa de escrever essa história só pode ser coletiva. Cada autor, cada livro, cada artigo, coloca um tijolo nessa construção, tijolo cuja consistência pode e deve ser debatida pelos demais. Decio trabalhou com as escolas inglesas, eu mesmo tenho mais familiaridade com os franceses, outros a terão com o pensamento lacaniano ou bioniano.

RBP: Sempre se quer o argumento estratégico: quando se quer assassinar algo cientificamente na modernidade, é só dizer que tem um velho e um novo.

RM: Se quisermos um contraexemplo, posso citar uma coisa que me surpreendeu muito no excelente livro dos Symington sobre Bion, The clinical thinking of Wilfred Bion. Aprendi muito com ele, inclusive porque, além de discutir pormenorizadamente o que anuncia no título, contextualiza o pensamento maduro de Bion em relação ao de Melanie Klein, de quem ele foi um discípulo de carteirinha até os anos 1960. O próprio Bion, aliás, contribuiu para esclarecer as diferenças que a partir de então o opõem à sua ex-analista, num livro extraordinário que se chama Repensando (Second thoughts), e que em português recebeu o título infeliz de Estudos psicanalíticos revisados. Pois bem: no prefácio, os autores escrevem uma coisa inacreditável, que me fez pensar numa frase semelhante de Charles Melman em relação a Lacan, e que testemunha o mesmo fanatismo que vemos no psicanalista francês. Comparem:

Melman: “Como a psicanálise nos foi transmitida? Por um acaso. Esse acaso se chama Jacques Lacan.”5

Symington: “Não hesitamos em considerar Bion como o mais profundo pensador da psicanálise - e isso não exclui Freud.”6

Essas hipérboles desnecessárias são exatamente aquilo que o conhecimento da história da psicanálise nos ajuda a evitar. No caso de Melman, a intenção publicitária em favor do lacanismo é evidente, mas falha pelo próprio exagero: a crer nela, se Mme. Lacan não tivesse dado à luz o seu ilustre filho, a psicanálise teria deixado de existir, porque segundo a versão lacaniana da sua história a herança freudiana foi desfigurada pelos sucessores (leia-se os malvados anglo-saxões, encastelados na IPA ), a ponto de perder suas características essenciais, de onde a imperiosa necessidade de um resgate, operado pelo Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade etc. etc.

Ora, o que teria sido Lacan se não existissem as instituições psicanalíticas, entre as quais a Sociedade Francesa de Psicanálise, na qual ele se formou e da qual foi até presidente, se não existissem os psicanalistas alemães que cita e discute em detalhe na sua tese de doutorado (o Caso Aimée, 1932), se não existissem as teorias metapsicológicas, psicopatológicas e clínicas com as quais debateu e que lhe serviram - através das críticas que lhes endereçou - para construir suas próprias doutrinas? Melman faz dele um profeta surgido do nada, e ignora a lenta maturação que o conduziu até a formulação do seu sistema, que aliás ele não cessou de revisar enquanto viveu.

O caso dos Symington é semelhante: para que distribuir medalhas de “profundidade analítica”, como se Bion pudesse ter chegado às suas ideias por iluminação divina e não volviendo a pensar, como é o título do seu livro em castelhano? Volviendo a pensar sobre o que, senão sobre o que acreditara ser verdadeiro até então? A originalidade e a importância da contribuição dele ressaltam ainda mais quando compreendemos a amplitude da sua reelaboração do pensamento kleiniano, sem o qual cabe duvidar que ela tivesse podido se constituir.

Não: não precisamos desse cheiro de incenso na nossa formação, nem na dos nossos estudantes, quer na universidade, quer nas instituições psicanalíticas. Com todo o respeito, é fora de propósito comparar o alcance da revolução freudiana na maneira como vemos hoje o ser humano com a novidade trazida por Bion a um campo no qual ele faz parte da terceira geração de cultivadores. Ela é significativa, sem dúvida, porém sem a existência desse campo, com tudo o que ele contém, não teria onde se fincar.

RBP: Você escreveu que Freud tinha falado do exército e da Igreja como organizações, e que se fosse hoje ele falaria das sociedades de psicanálise e do partido comunista. Depois, disse que somos filhos de Freud, e que quem faz parte da esquerda política é filho de Marx. Esses problemas que estamos discutindo são problemas de quem tem um pai da envergadura de Freud ou de Marx?

RM: A frase não é minha, é do François Roustang. Quanto a ter pais dessa envergadura, é isso que faz a força - e por vezes algumas fraquezas - das comunidades baseadas no pensamento deles. Na minha maneira de ver, a história da psicanálise vem sendo globalmente muito fecunda. Acumulou-se um volume enorme de conhecimentos sobre como é a mente humana, sobre as variedades do sofrimento psíquico, e se desenvolveu uma ferramenta extremamente poderosa para lidar com elas. Pensemos em quantas pessoas se beneficiaram com a experiência de uma análise. Uma vez tentei fazer essa conta, levando em consideração quantos analistas já existiram e existem, quantos pacientes cada um poderia ter atendido... Cheguei a um resultado que me parece plausível (posso estar enganado, claro): cerca de 1 milhão, desde que Emmy von N. se deitou no divã e pediu que Freud a deixasse contar sua história sem ficar perguntando a toda hora de onde vinha cada sintoma - ou seja, desde que ela inventou a associação livre, e seu analista teve a humildade de acatar a sugestão, e a capacidade de a transformar no meio mais eficaz de acessar o inconsciente.

Contudo, mesmo esse número enorme é uma gota d'água no oceano da população mundial. A influência da psicanálise não se mede pelos pacientes atendidos, mas pelo papel que ela teve no pensamento, nas artes, na maneira de educar as crianças, na percepção que temos de nós mesmos - e isso vale mesmo para quem jamais teve contato direto com um profissional ou com um escrito psi. Freud e suas descobertas entraram na corrente sanguínea da cultura ocidental, e, apesar das críticas que não cessam de surgir desde o início do século XX, penso que continuarão nela por muito tempo.

O inconsciente freudiano é um desses marcos no pensamento dos quais Merleau-Ponty falava num artigo intitulado “Em toda parte e nenhuma”, comparáveis às Ideias de Platão, ao silogismo de Aristóteles, ao cogito de Descartes, à dialética de Hegel. Veio para ficar, e não por acaso a revista Time, ao considerar quem devia ser escolhido como pessoa do século XX, incluiu na lista de candidatos o nome dele. Optaram por Einstein, mas, se fôssemos levar em conta não a ciência ou a grande política, nas quais o trabalho dele teve o impacto que se sabe, e sim a vida imediata das pessoas, a forma como vivenciam e compreendem a si mesmas, é bem possível que Freud levasse o galardão.

Nós somos herdeiros dessa tradição, e é apenas no interior dela que, como dizia Winnicott, podemos tentar ser originais. Mas isso só será possível se fizermos o esforço de nos orientar nela - se conhecermos o passado da psicanálise, e tirarmos dele as lições de sobriedade a que esse conhecimento nos convida. Não podemos saber para onde vamos, porém isso não nos impede de saber de onde viemos, e portanto em qual ponto da trajetória estamos nós e nossos colegas de outras instituições. Nestes tempos de fanatismo e de intolerância que vivemos, não me parece pouca coisa!

 

 

1 Entrevista realizada em 10/3/2018 no consultório de Renato Mezan.
2 Em Les destins du plaisir (Paris, puf, 1979), e num artigo escrito com ácido sulfúrico, “Sociedades de psicanálise e psicanalistas de Sociedade”, in Un interprète en quête de sens (Paris, Ramsay, 1986, tradução brasileira publicada pela editora Escuta, 1990).
3 Um modelo para tal obra coletiva seria a História da filosofia coordenada por François Châtelet (Rio de Janeiro, Zahar, 1974).
4 “Fetishism and object-choice in early childhood” [Fetichismo e escolha de objeto na primeira infância], precedido de uma excelente apresentação de Decio Gurfinkel, foi publicado no número 40 da revista Percurso (junho de 2008), e pode ser consultado no site da publicação: revistapercurso.uol.com.br.
5 Cf. “Enfants de la psychanalyse” (Ornicar?, n. 16, 1978).
6 Cf. The clinical thinking of Wilfred Bion (London, New York, Routledge, 1996, p. XII).

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