SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 número3A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimentoManuscrito inédito de 1931 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018

 

RESENHAS

 

A disposição para o assombro

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autor: Leopold Nosek
Editora: Perspectiva, São Paulo, 2017, 398 p.
Resenhado por: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

 

 

Este livro de Leopold Nosek, Leo para os próximos, chega em momento mais que oportuno, por nos oferecer uma radiografia da intensa produção científica, cultural e ideológica de um dos mais prestigiados analistas de nosso meio.

Dentro do possível, tentarei abstrair-me de um longo convívio pessoal, para colocar-me diante desta obra como um mero leitor, que de saída estranhou o substantivo disposição do título, por evocar, além dos sentidos de vocação e propensão, as ideias de ordenação e determinação. Aceitando o desafio, presente na introdução, de abandonar-me a um movimento especulativo, cheguei a pensar que talvez o termo anseio atendesse melhor o espírito norteador desses estudos indisciplinares que o autor nos oferece de presente.

Destaco, em suas palavras iniciais, as desculpas por suas “repetições de estimação” e a necessária contextualização quanto a serem textos heterogêneos, já que fruto de convites ou oportunidades advindas das mais variadas esferas, no período entre 2009 e 2016. Com isso, naturalmente, poderemos usufruir não só de sua extensa experiência clínica, mas também de suas intervenções criativas, nos mundos cultural e institucional.

David Hume, o filósofo empirista, valeu-se do termo conjunção constante na discussão da causalidade e da inferência. Esse termo foi usado em psicanálise por Wilfred Bion, num sentido livre, para iluminar configurações que surgem contínua e/ou contiguamente. Ao longo de minha leitura, senti que vários elementos estavam constantemente conjugados em relação à configuração das cesuras criadas entre estados de mente, gerando cenários transitórios.

É assim, por exemplo, que podemos entender o “descanso” dos beduínos antes de entrar em casa, para dar tempo de que suas almas alcancem os corpos, que chegaram adiantados; ou então o estado mental referido por Proust para descrever a transição entre sono e vigília; ou mesmo a analogia estabelecida por Lévinas da transição eu-outro com a cesura entre finito e infinito. Não por acaso, Nosek afirma: “Enfim, mais uma vez nos lançamos às transições - do território da palavra falada ao da palavra escrita e deste novamente ao da palavra falada” (p. 268). Em resumo, não creio que seus “ursinhos de estimação” sejam invocados só para aliviar sua solidão, mas principalmente por serem marcos topográficos a iluminar um trajeto construído na escuridão, em que surgem insights epifânicos, como a percepção de que “seria mais próprio definir a função da psicanálise na passagem da natureza para a cultura” (p. 287).

Numa dimensão que poderiamos chamar de funcionalidade filológica, nota-se a reiteração do uso de palavras apofáticas, ou seja, termos que negam uma afirmação para que, no espaço a ser criado, um significado adquira sua plena expressividade. É então que ficamos conhecendo a “solidão in-exorável dos artistas” (p. 137), que somos informados de “que na arte e na psicanálise a nomeação da autoria é im-prescindível” (p. 118), de que a ampulheta é uma “im-placável vitrine do destino” (p. 172) e de que, ao ouvir a Sinfonia n.°2, de Schumann, “seremos reféns da in-venção grandiosa que é a ideia de redenção e da decepção in-escapável que ela engendra” (p. 302).

Aproveito a inspiração para assinalar que Nosek, ao contrário de muitos de nós freudianos nostálgicos, está sempre se revelando um freudiano (in) -pertinente, como ocorre em múltiplas passagens:

Com a psicanálise, temos, por exemplo, uma teoria da construção do pensamento, como quer Bion, ou da superação do traumático, como propõe Laplanche. Nos termos freudianos, sobretudo na segunda tópica, diriamos: onde ainda não há o espírito, que este possa existir; onde havia o informe, que possa haver forma. (p. 69)

Mas Leo é, acima de tudo, nosekiano, o que lhe permite formular com fluidez um pensamento-síntese de sua visão de mundo, em que estão articulados a informação midiática, a narrativa, a função onírica e o convívio promíscuo entre o reflexivo e o alienante:

Observo aqui o contraste entre a informação jornalística, que justapõe dados que não se diferenciam em sua intensidade emocional, e a narrativa, que nos impõe o esforço de seguir na experiência que ela traz. A informação tem início e fim, é completa, e ao contrário da narrativa não nos faz buscar sua continuidade. Também o sonho não encerra um sentido em si, não veicula uma informação em seu interior - é muito mais um sentido provisório que parte em busca do próprio sentido. Não nos indignamos quando vemos notícias de extrema gravidade justapostas a um gol no futebol. Aliás, esse é o esquema típico em que ser informado coincide com ser alienado. (p. 183)

Um verdadeiro psicanalista tem a metapsicologia circulando em seu sangue. É portanto gratificante nos depararmos com um autor que funciona como fonte seminal de enunciados metapsicológicos:

Os prisioneiros dos campos nazistas corriam risco de morte caso se alimentassem no imediato momento da sua libertação. Ou a liberdade deve ser proposta em quantidades homeopáticas, ou, então, deixar um cárcere implicará construir algum outro cuja evidência tentaremos ignorar. (p. 67)

Ou, evocando um enunciado de Agamben para ilustrar a angústia de Borges, que ansiava conhecer a escuridão de sua cegueira, mas estava imerso numa luz azul-acinzentada: “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (p. 54).

Escolhi de propósito esses dois exemplos para demonstrar que a aura metapsicológica pode estar presente em qualquer setor da vida, desde que tenhamos olhos para enxergá-la, o famoso the mind's eye de Shakespeare. No entanto, durante o trabalho clínico, é legítimo que o psicanalista tenha um anseio metapsicológico, o qual, em última análise, nada mais é do que o anseio pelo assombro:

Esse traumático cotidiano das nossas salas exige uma reflexão própria, e fiquemos então apenas com a pergunta: o saber analítico, sua teoria, serão impossíveis? Em vez de conhecimentos capturados, creio que o que podemos pretender é o anseio pelo infinito do outro, é o anseio metafísico de Lévinas ou, no nosso caso, o anseio metapsicológico [itálico meu]. (p. 60)

A metapsicologia, e portanto a psicanálise, nunca se arvorou em solicitar diploma de cientificidade, apesar de alguns analistas e muitos não analistas insistirem em fazê-lo. Ela, no entanto, nunca se furtou a produzir indagações epistemológicas, fartamente aproveitadas pela religião, pela arte, pela filosofia, pela história, pela educação, pela mitologia e, ironia clandestina, pela própria ciência. Nesse setor, nosso livro é também muito pródigo:

Talvez se pudesse falar de modernidade como consciência da ruptura. Filha de seu tempo, a psicanálise compreende o sonho como unidade de contrários, isto é, temos aí novamente a ampliação conceitual e prática da apropriação da contradição. Veremos que a desalienação pode ocorrer mediante a apreensão da história de contradições. Autoconsciência de alguma forma se liga à pulsação de contrários e sua percepção. (p. 168)

Em certos enunciados, Nosek mescla a metapsicologia com a epistemologia para, apoiado nesse terreno, prenunciar futuros desenvolvimentos para a psicanálise:

Emerge daí um outro modo de se aproximar dos sonhos. Se antes eles não passavam de “via régia para o inconsciente”, como considerou Freud na primeira tópica, agora, com o inconsciente a ser construído, ... os sonhos, segundo Bion, com uma face voltada para o manifesto e a outra direcionada ao latente, criam simultaneamente o território do consciente e do que Freud chama, em O ego e o id, de inconsciente do ego. ... Aqui se anuncia uma terceira tópica, na qual caberia afirmar: onde havia ação, que possa haver o inconsciente. É nesse reino que ocorrerá a aventura psicanalítica - mas essa aventura se dará num espaço virtual e num tempo isento de linearidade. (pp. 266-267)

Emérito apreciador da arte, Nosek nos apresenta belas imagens da obra de Leonilson, só nos frustrando, involuntariamente, quando, ao se referir a Schumann e a Beethoven, não consegue a mágica de fazer acompanhar a dança da palavra com a música sublime.

Finalmente, vou me permitir uma indiscrição pessoal. Um tempo atrás, numa exposição em Paris sobre a amizade de Matisse com Picasso, deparei-me com uma frase estampada em letras garrafais: “Quando um de nós morrer, existirão muitas coisas que o outro não terá com quem conversar”. Confesso que pensei, de imediato, em meu convívio com Leo. Gostaria, então, de enumerar alguns pontos do aprendizado fraternal que eu, prazerosamente, hauri lendo este livro:

• a importância das obras de Emmanuel Lévinas e de Aby Warburg;

• a formulação de Hegel sobre o nascimento do eu;

• a ideia de Laplanche de que o traumático não elaborado marcaria o psi-quismo como uma pseudopulsão;

• a belíssima descrição, na Ilíada, da importância dos cerimoniais de reverência e dor, essenciais à constituição do luto;

• a possibilidade de incluir o traumático e a coragem como elementos de psicanálise, na visão de Bion;

• a sugestão de que o fim da análise não passaria de uma “menopausa espiritual” (justa homenagem ao senso de humor do autor).

Daqui em diante, amigo leitor, deixo a enumeração por sua conta, desejando que possa aproveitar esta preciosidade tanto quanto eu.

 

 

Correspondência:
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170/123
04552-050 São Paulo, SP
mr.junqueira@uol.com.br

Creative Commons License