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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

 

RESENHAS

 

O homem subjugado: o dilema das masculinidades no mundo contemporâneo

 

 

Luciana Saddi

Psicanalista e escritora. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo), Perpétuo Socorro (Jaboticaba), Alcoolismo (Blucher) e Educação para a morte (Patuá)

Correspondência

 

 

Autora: Malvina E. Muszkat
Editora: Summus, São Paulo, 2018, 176 p.
Resenhado por: Luciana Saddi

 

 

O livro O homem subjugado, da psicanalista Malvina E. Muszkat, surpreende ao questionar uma série de dogmas do feminismo e do senso comum, além de apresentar aspectos inusitados, insuspeitos e sofridos do homem agressor. A leitura do machismo proposta pela autora, leitura que perpassa todos os capítulos do livro, é criativa, interessante e - me parece - inovadora, pois transcende a mentalidade típica da sociedade patriarcal, que entende homens como algozes e mulheres como vítimas.

Indo contra a corrente, Muszkat, que já foi dirigente da ong Pró-Mulher, Família e Cidadania, realiza grupos de atendimento e escuta não apenas com mulheres agredidas, mas também com agressores, os homens. Essa nova prática nasce da própria experiência de grupos terapêuticos com mulheres que padecem com a violência familiar, e - acredito - contraria a corrente feminista que entende os homens como abusadores naturais e as mulheres como vítimas inatas. No simples ato de realizar grupos terapêuticos para agressores, há uma boa dose de ruptura com o senso comum e, talvez, com algumas das mais preponderantes características da mentalidade patriarcal, a divisão por gênero (como se homens e mulheres fossem totalmente diferentes) e a lógica da prisão como punição.

Escutar agressores, compreender e validar seu sofrimento, questiona radicalmente tanto o princípio de que as mulheres são vítimas como a noção arraigada de que a punição prisional reeduca a sociedade. Os achados da autora levam-na a pensar que os homens agressores não se beneficiam tanto assim - como gostaríamos de acreditar - da sociedade patriarcal. Se não se beneficiam tanto disso, pode ser que também não sejam, ao agredir mulheres, merecedores somente de punição e desprezo. É possível que venham a merecer tratamento psíquico, cuidados psicológicos, para desenvolver outras formas de lidar com dificuldades, conflitos e faltas.

Da experiência do trabalho com homens agressores nasce uma teoria central na questão da violência de gênero, teoria que considera as consequências da sociedade patriarcal para ambos os sexos. Muszkat examina as subjetividades forjadas pelo patriarcalismo, e as expõe tanto no sentido das forças que submetem e agridem as mulheres como no das que conformam os homens a um modelo rígido, autoritário e feroz de reagir. Segundo a autora, homens reagem com violência quando sua autoridade é questionada e quando temem o aparecimento de aspectos vistos como femininos e ternos, que contestariam o que a sociedade patriarcal se habituou a definir como masculinidade.

Desmistificando a posição de vítima das mulheres, posição confirmada pelo feminismo mais convencional, a autora mostra que muitas mulheres, ao se frustrar com os homens, pois deles esperam o desempenho do papel tradicional que lhes foi outorgado pelo patriarcalismo, os provocariam de forma velada, apertando, cutucando o exato ponto, o da fraqueza, e causando uma reação em forma de força física e agressão, que confirmaria o suposto básico de macheza atribuído aos homens. Em cumplicidade inconsciente, ambos trabalhariam em prol da reafirmação do suposto naturalizado de que homens são machões e se utilizam da força. Esse é o ponto de ebulição de parte das agressões de gênero examinadas no livro. É no momento de ameaça do “macho” que a violência surge. À medida que os homens, no trabalho terapêutico de grupo, se reconhecem com medo das fraquezas e se percebem na obrigação insana e impossível de sustentar sempre a representação de força e virilidade a eles imposta pela sociedade patriarcal, sua violência decai. Eles se abrem para novas formas de relação, pondo em palavras o que antes era pura reação à ameaça.

No trabalho analítico da autora - ressalto - são considerados casos de violência diversa, que vão do ataque verbal ao assassinato e que não dependem de estrato social, pois a experiência de Muszkat é bastante ampla e deveras longa no tempo. Segundo ela, até os homens mais violentos podem, no decorrer do trabalho, se envergonhar e se arrepender do uso de força contra as mulheres e, sobretudo, encontrar novas maneiras de comunicação.

Como consequência dessas descobertas, que desconstroem a demonização dos homens e a vitimização das mulheres, Muszkat questiona a eficiência da Lei Maria da Penha na proteção das mulheres. Afirma que, desde sua vigência, a violência contra a mulher aumentou exponencialmente, pois validou a tese convencional que põe homens de um lado e mulheres do outro, creditando à sociedade patriarcal o prejuízo exclusivo das mulheres. A autora não questiona a necessidade da lei, mas coloca em dúvida sua eficiência como medida protetora para a mulher. Desse questionamento nasce uma genuína indagação sobre os efeitos da punição prisional e da judicialização como política pública. Se a punição, ou a ameaça de punição, contida na lei não diminui nem interrompe a violência contra a mulher - e os números brasileiros nesse quesito são desesperadores -, por que não atrelar a essa medida outras medidas, fora da lógica do encarceramento? Ela acredita que seria mais eficiente propor alternativas à pena prisional, dar outro tratamento para os homens, um tratamento que, em vez de reforçar ainda mais as demandas da sociedade patriarcal, desconstrua essas demandas, considerando as expectativas e as subjetividades forjadas no patriarcado como as geradoras de grande parte desse tipo de violência.

Os procedimentos adotados, o trabalho clínico descrito por Muszkat e seus resultados clínicos e teóricos são característicos do método psicanalítico: trazem à tona uma visão inusitada, um sentido insuspeito, fora do senso comum. Não é à toa que Herrmann (1979/2001) o denominou método interpretativo por ruptura de campo, pois há certa dose de violência, de perturbação, no aparecimento de algo novo, não apenas pela surpresa (por si só um tanto desestabilizadora), mas também pelo desequilíbrio do que já estava estabelecido. Esse desequilíbrio obriga-nos a um rearranjo e impõe uma nova ordem. Novos sentidos são disruptivos, costumam questionar crenças e sistemas arraigados, põem em dúvida e até mesmo suspendem o conhecimento anterior, que parecia sólido.

Ao longo do livro, a autora contraria algumas teses feministas, examina as consequências da sociedade patriarcal tanto para homens como para mulheres, discute a eficiência protetora da Lei Maria da Penha e vai muito além disso. Ela trata das principais questões da atualidade em torno do binômio homem/mulher; põe o leitor diante de um pensamento que articula e problematiza pontos levantados pelos estudiosos de gênero, do feminismo e das mudanças na sociedade patriarcal decorrentes dos movimentos de grupos minoritários; considera a evolução do pensamento sobre o gênero nas últimas décadas e também o questiona; investiga profundamente a construção das subjetividades; utiliza a neurociência e a antropologia como ferramentas para validar certas descobertas clínicas; e revisita alguns mitos.

Ao tecer uma narrativa fluente, Muszkat cria a impressão de que somos levados a um passeio pela história, pela religião, pela psicologia, pela psicanálise, pelas ciências sociais etc. Vale a pena destacar o tratamento dado à ternura no desenvolvimento dos meninos e na relação deles com a mãe, uma das mais belas passagens do livro, que confirma a arguta observação da autora e sua excelente capacidade de desconstruir preconceitos e dogmas.

Acredito que O homem subjugado seja destinado não apenas aos iniciantes em questões tão intrincadas e debatidas nos últimos tempos. Sua utilidade é maior. Caracteriza-se como súmula do trabalho de toda uma vida voltada a pensar e a tratar os problemas de gênero, bem como a violência subjacente às relações familiares. Uma experiência com tal densidade deve ser bem conservada e passada adiante, pois costuma servir como farol para as futuras gerações.

 

Referências

Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: o método da psicanálise (3.ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1979)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luciana Saddi
Praça Morungaba, 66
01450-090 São Paulo, SP
lusaddi@uol.com.br

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