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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

POLÍTICA

 

A busca do diálogo como política psicanalítica: uma tensão entre “criação de intervenções” e “neutralidade e abstinência”

 

The search for dialogue as Psychoanalytic Politics

 

La búsqueda del diálogo como política psicoanalítica

 

La recherche du dialogue en tant que politique psychanalytique

 

 

Juan PinettaI; (Trad.) Claudia Berliner

IPsicanalista, membro aderente da Associação Psicanalítica Argentina (APA), coordenador do Departamento de Psicanálise e Sociedade da APA

Correspondência

 

 


RESUMO

Pensando em promover intervenções na cultura e na comunidade, surgem reflexões sobre os psicanalistas como agentes que produzem transformações subjetivas - portanto, do contexto social de que fazem parte. Pondo em tensão as regras de neutralidade e abstinência, o psicanalista aparece como um ator que, exercendo uma política, a da psicanálise, promove mudanças ante o estado de coisas que, objetivadas previamente, produzem sofrimento. O psicanalista não é demandado: ele se autodemanda, motivado por avaliações que têm a ver com o valor da vida, da comunidade, em que cada sujeito é parte vincular da trama social. A partir dos termos promover, intervenção, comunidade e cultura, tenta-se dar conta da dimensão do convite a participar ativamente de fenômenos que são sintoma de modos de poder e de vínculos, que devem ser postos em diálogo para, pelo menos, tentar mudanças mínimas na tensão entre as autonomias social e individual. E, sobretudo, propõe-se a necessidade de uma psicanálise que ponha os pés na lama e que não tema o intercâmbio com os representantes do poder da vez, vencendo tabus e ideologias impeditivas de qualquer mudança por estarem à espera de utópicos tempos ideais.

Palavras-chave: comunidade, cultura, sociedade, intervenção, política


ABSTRACT

As a way of promoting interventions in Culture and Community, the author sees psychoanalysts as agents who produce subjective transformations. As such, they bring changes to their social context. When psychoanalysts cause tension over rules of neutrality and abstinence, they appear as someone who exercises politics, the Politics of Psychoanalysis. This Politics of Psychoanalysis promotes changes in the state of things which, once objectified, cause suffering. The psychoanalyst is not requested to do, but he requests himself. He is motivated by appreciations that are related to the value of life, of the community in which each subject is a part who weaves social network. The author starts from words, such as to promote, to intervene, community, and culture, as an attempt to emphasize the importance of inviting subjects to actively be part of phenomena. These phenomena are symptoms of different forms of power or bonds, which must dialogue as an attempt at promoting at least minimum changes in the tension between social and individual autonomies. The author proposes, above all, the need for a psychoanalysis “with its feet in the mud”, i e. a psychoanalysis which does not fear the exchange with those who represent the power; a psychoanalysis which overcomes taboos and ideologies that allow no changes because they keep waiting for the ideal and utopian times.

Keywords: community, culture, society, intervention, Politics


RESUMEN

Pensando en promover intervenciones en la cultura y en la comunidad, surgen reflexiones sobre los psicoanalistas como agentes que producen transformaciones subjetivas; por lo tanto del contexto social del cual forman parte. Poniendo en tensión las reglas de neutralidad y abstinencia, aparece el psicoanalista como actor que, ejerciendo una política, la del psicoanálisis, promueve cambios frente al estado de cosas que -objetivadas previamente- producen sufrimiento. El psicoanalista no es demandado, sino que se demanda a sí mismo motivado por apreciaciones que tienen que ver con el valor de la vida, de la comunidad, donde cada sujeto es parte vincular del entramando social. A partir de los términos promover, intervenir, comunidad y cultura, se intenta dar cuenta de la dimensión de la invitación a participar activamente en fenómenos que son síntoma de modos de poder y de vínculos que deben ser puestos en diálogo para -al menos- intentar mínimos cambios en la tensión entre las autonomías social e individual. Y sobre todo, se plantea la necesidad de un psicoanálisis en el barro que no tema el intercambio con aquellos referentes del poder de turno, venciendo tabúes e ideologías paralizantes de todo cambio a la espera de utópicos tiempos ideales.

Palabras clave: comunidad, cultura, sociedad, intervención, política


RÉSUMÉ

Dans le dessein de promouvoir des interventions dans la culture et dans la communauté, surgissent des réflexions concernant les psychanalystes en tant qu'agents qui produisent des transformations subjectives; c'est-à-dire, du contexte social auquel ils appartiennent. Lorsqu'il met les règles de neutralité et d'abstinence en tension, le psychanalyste apparaît comme un acteur qui, toute en exerçant une politique, celle de la psychanalyse, promeut des changements face à l'état de choses qui - objectivées préalablement - produisent des souffrances. Le psychanalyste n'est pas demandé, il s'autodemande, motivé par des évaluations qui sont liées à la valeur de la vie, de la communauté, où chaque sujet est une partie liée à la trame sociale. À partir des mots promouvoir, intervenir, communauté et culture, on essaye de rendre compte de la dimension de l'invitation à participer activement de phénomènes qui sont le symptôme de modes de pouvoir et de liens qui doivent être mis en dialogue de façon à essayer, au moins, des changements minimums sur la tension entre les autonomies sociales et individuelles. Et, surtout, on propose le besoin d'une psychanalyse qui mette les mains à la pâte et qui ne craigne pas les échanges avec les représentants actuels du pouvoir, en devançant des tabous et des idéologies qui empêchent tout changement, étant donné qu'elles restent en attendant des utopiques époques idéales.

Mots-clés: communauté, culture, société, intervention, politique


 

 

Uma dimensão política da proposta: demanda, papel ativo e empoderamento

Quando se pensa em estimular empreendimentos que acabem se transformando em intervenções da psicanálise na comunidade e sobre ideias que tenham a ver com gerar um diálogo criativo entre a psicanálise e outros campos da cultura, emergem várias questões relacionadas com o desejo de colegas que, como nós, se aventuram a navegar e mergulhar em águas turbulentas, arvorando a psicanálise como estandarte multívoco.

Multívoco, porque há muitas formas de entender a psicanálise, podendo-se chegar ao extremo de convertê-la em ideologia de qualquer natureza, inclusive fanática, destruindo seu efeito dialógico, desvelador, transformador e libertador, na prática de permanente tensão que possibilita novas compreensões.

O objetivo de “estimular os empreendimentos nos quais a psicanálise, como vértice teórico-clínico, é utilizada como marco de referência para realizar intervenções na comunidade” é um convite renovado a sair do consultório particular, entendendo que “todos os vínculos que foram até agora objeto privilegiado da pesquisa psicanalítica podem reivindicar ser apreciados como fenômenos sociais”(Freud, 1921/2006d, p. 67).

Além de alguns exemplos que serão expostos mais adiante, surge, nesse ponto de encontro entre diversos discursos, a iniciativa da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), o Observatório de Fenômenos Sociais, que há alguns anos se dedica a abordar, desde o que considero ser nossa artesania, um amplo arco de situações, que vão da corrupção às problemáticas sobre a discriminação por raça e classe social nesse país; e a longa tradição, na Argentina, em temas tão escabrosos como as consequências do último regime militar, a que se somam novas intervenções no Brasil, por meio de instituições como a Comissão Nacional da Verdade, que desde 2012 se dedica a recolher testemunhos sobre o período ditatorial de 1964 a 1985, incluindo também a perspectiva psicanalítica em sua abordagem.1

De certo modo, essas intervenções apontam para o empoderamento dos oprimidos, no melhor sentido da proposta do pedagogo brasileiro Paulo Freire (1969/2015), entre cujas ideias existem algumas que se imbricam com conceitos psicanalíticos. O empoderamento pode se produzir quando se põe em questão a abstinência diante da demanda configurada pelos analistas, que não nos abstemos, em princípio, de ir aonde nos chamamos, tentando criar novos vínculos para plantar a semente de possíveis elaborações e autonomias emancipadas de predestinações à submissão e à pulsão de morte.

Quando proponho esse tipo de autochamado ou autoconvocação dos analistas (que respondem a objetivações muito diversas), refiro-me ao fato de que, de repente, deixamos de cumprir o papel de espectadores passivos diante do sofrimento dos semelhantes ou diante do que se poderia chamar de destruição das possibilidades de sobrevivência da espécie humana, da humanidade. Aponta-se para a ligação pulsional. Trata-se de um narcisismo ampliado para a comunidade, assim como os pais depositam sua continuidade vital nos próprios filhos, doando progressivamente as ferramentas (ensinamentos, orientações, educação etc.) para gerar neles a autonomia suficiente à sobrevivência.

Contamos com a abstinência como certo norte, a fim de não nos convertermos em objetos que satisfaçam as demandas dos pacientes, o que não implica intervir em situações de risco, por exemplo. Aqui, contudo, não se trata de pacientes, e portanto não há demandas no sentido que o entendemos na clínica particular, mas observamos os mal-estares na comunidade por meio dos fenômenos que se cristalizam mediante as expressões culturais, políticas e sociais. Poderiamos dizer que escutamos certos gritos e apostamos na conversão deles em demanda, partindo primeiro de nossa demanda interna: empatia com o sofrimento do outro.

Assim, os psicanalistas aparecem como agentes que intervêm na produção e transformação de subjetividades e, portanto, da realidade social que co-compartilhamos, que inclui reverberações filo e ontogenéticas, trama essa que vai predispondo o destino do sujeito - sabendo que o que fazemos “é uma ciência do antidestino, uma ciência da antirrepetição” (Kancyper, comunicação pessoal, agosto de 2017).

Essa ideia do empoderamento - termo que em seguida será incorporado a certo jargão empresarial - surge com Paulo Freire, e consiste em ativar as potencialidades dos oprimidos, dos excluídos dos benefícios sociais, para os quais, muitas vezes, contribuem com seu esforço. Um exemplo claro é a campanha de alfabetização que ele realizou no Brasil, empoderando os que, até então, se encontravam inabilitados para votar por não saberem ler e escrever, utilizando um conceito denominado pedagogia da pergunta - isto é, que os educandos não fossem apenas sujeitos passivos a quem se enchia de fórmulas alfabéticas, mas também interrogadores, possibilitando mudanças (Freire & Faundez, 1985/2015). Em certo sentido, isso se aproxima do que Freud sustentava em “Caminhos da terapia psicanalítica” (1919[1918]/2006b), sobre não converter em objetivo de nossa prática transformar nossos pacientes em depositários de nossos ideais e formas de ser, não apontar para a psicossíntese do paciente por nossas mãos, mas inaugurar uma prática analítica em que esta se produza pelo próprio trabalho do analisando, numa dinâmica permanente. A partir daí, certa camada da população pôde ter acesso a esse ato eletivo, determinando até certo ponto as políticas públicas ao poder eleger representantes.

E começa a se desenhar um aspecto importante: há uma objetivação das intervenções a efetuar em determinadas áreas da comunidade; o fenômeno no qual decide intervir é uma escolha do psicanalista sobre a situação. Em muitos casos, não há demandas prévias, apenas nossa percepção de que algo não está bem, de que a pulsão de morte predomina sobre Eros. É uma leitura particular, que promove a doação de tempo e trabalho para aqueles que não produziram uma demanda explícita.

Trata-se de transformar um estado mortífero, que leva - no melhor dos casos - a ânsia de apoderamento por parte dos oprimidos (permutação essa discutida por Paulo Freire) à ânsia de empoderamento, em que a pessoa pode desenvolver suas potencialidades e suas capacidades com alguma autonomia, em associação comunitária, em certa sintonia com a tensão equilibrada entre as necessárias autonomia individual e autonomia social, como diz Castoriadis (Barnabastrumbull, 2009). O apoderamento implica destronar - em geral de forma violenta - quem detém o poder, para em seguida ocupar esse mesmo lugar, repetindo-se ad infinitum a mesma dinâmica. O empoderamento é um trabalho diferente, que tem a ver com a cultura, com o autocultivo das próprias potencialidades. O exemplo da alfabetização no Brasil vai nessa direção.2 Não é esse, em certa medida, o trabalho da análise?

Retomando Castoriadis, quando ele menciona a questão da autonomia individual e da autonomia coletiva, refere-se à inevitável abertura entre elas, que deve levar a uma reflexão contínua para evitar que o instituído permaneça imutável no tempo. Algo disso está presente na política da psicanálise no tocante a promover perguntas, propostas, novos olhares sobre os fenômenos coletivos, a lei jurídica, as instituições (da família até as prisões), incluindo sua sobrevivência.

Deixo de lado a questão das motivações inconscientes ou conscientes que nos empurram para essas ações específicas - é uma necessidade, talvez reparadora num grande número de casos -, em geral orientadas para a reconstrução ou construção de redes comunitárias, a fim de que o poder de muitos se anteponha ao poder do um (em termos metafóricos, o poder do um, o pai da horda primitiva, que gozava de todos os benefícios em detrimento dos outros, que se uniram em comunidade fraterna para enfrentar o déspota). Deixando de lado as motivações, para além do olhar psicanalítico, sempre há um grupo de ideias fundamentais que guiam essas intervenções, que podem chegar a se transformar em ideologias inabaláveis e até se tornar estigmatizantes de quem pensa diferente.

Quero, porém, esmiuçar o que está colocado na proposta mediante os vocábulos intervenção, cultura e comunidade (e promover), intimamente vinculados com política, política da psicanálise em última instância. Esse convite atravessa, excede a psicanálise do um a um (sempre mais que dois), e se entrecruza com conceitos extrapsicanalíticos. Um esmiuçar simples a partir do mais prosaico e do que se entende por cada uma dessas palavras, com base nas simples definições do Diccionario de la lengua española (Real Academia Española, 2018).

A ideia é promover, ou seja, “impulsionar o desenvolvimento ou a realização de algo” - nesse caso, a psicanálise aplicada às questões da comunidade e da cultura. Nada menos que tal intenção! Não há ingenuidade nisso.

Assim, pondo em tensão as regras de neutralidade e abstinência, aparece o impulso de promover as intervenções. Essa tensão não implica pôr entre parênteses ambas as regras, mas ter um olhar orientado para a criação das condições necessárias para a mudança psíquica e coletiva. É interessante o papel ativo que Freud atribui ao analista em “Caminhos da terapia psicanalítica”, quando afirma ser “inobjetável” a intervenção em “certo número de circunstâncias que formam uma constelação de fatores externos” para o paciente (1919[1918]/2006b, p. 158). Aqui se encaixa o testemunho de Margarethe Lutz, que em 2009, com 91 anos, recordava, numa entrevista a um jornal, como uma única sessão com Freud tinha mudado sua vida, a partir de uma simples intervenção. Em 1936, compareceram à sessão ela - então com 18 anos - e seu pai, que decidiu pedir o encontro quando um clínico detectou nela uma doença da “alma” após certas atuações. Freud começou perguntando a Margarethe questões de sua vida pessoal. Mas, a cada pergunta, o pai respondia, sem deixar que ela respondesse. Irritado com essa intromissão, Freud pediu que o deixasse sozinho com a filha. Assim foi, e para Margarethe essa intervenção lhe permitiu... falar!, conseguindo em seguida se emancipar, transformando os vínculos.

Intervenção, cujo fim é “interceder ou mediar por alguém”, “tomar parte num assunto”, “interpor-se entre dois ou mais que estão discutindo” e outras acepções, como “dirigir, limitar ou suspender o livre exercício de atividades ou funções”.

O sentido do convite adquire uma relevância que não é pouca: é a do analista em situação, que se põe num contexto particular, único, para exercer uma influência destituída de qualquer inocência, pois é exprofesso. O chamado à neutralidade fica em segundo plano, já que há valores, ideais, identificações de quem intervém, entram em jogo valores morais e sociais que orientam a ação. Talvez um deles seja o valor da vida, num copertencimento ao tecido social que inclui todos os seres vivos, e que tem como fim a sobrevivência da espécie em condições nas quais predomine a pulsão de vida.

Além disso, contudo, propõe-se que sejam intervenções na comunidade, ou seja, sobre um conjunto de “pessoas vinculadas por características ou interesses comuns”, sobre uma extensão de pessoas que têm uma “qualidade comum”, uma “junta ou congregação de pessoas que vivem unidas sob certas constituições e regras”.

Em suma, propõe-se que os psicanalistas atuem como agentes transformadores das formas preexistentes de dinâmicas vinculares e sociais (das quais não fica excluído o exercício do poder), ainda que seja apenas dando conta de historicidades, de dinâmicas, modalidades e tramas vinculares.

E, além da comunidade, propõem-se intersecções com outras áreas da cultura, ou seja, as diversas áreas que têm a ver com o cultivo dos “conjuntos de conhecimentos que permitem que alguém desenvolva seu juízo crítico”, o “conjunto de modos de vida e costumes, conhecimentos e graus de desenvolvimento científico, industrial, numa época, grupo social etc.”, entre muitas outras coisas. Isso se aplica a um leque que vai dos denominados povos originários até as chamadas tribos urbanas, bem como a coletivos identificados com determinadas orientações sexuais, aos que padecem de certas doenças, traumas, aos “pais de...” etc.

Apelando à raiz latina da palavra cultura, esta a aproxima da psicanálise em tom transmissor, já que remete a “cultivar” e também a “criação”, isto é, a dedicação, o trabalho, o tempo material que alguém doa a outro para sua sobrevivência. É uma elaboração, ou um “embrenhar-se tarefa adentro e atravessá-la por inteiro” (Hanns, 1996/2001, p. 211), segundo a definição alemã desse outro termo, oposto à satisfação direta, ao prazer imediato, cuja função é negar todo desprazer, obturando o olhar social, comunitário, cultural... político - o que perturba a aprazível vida individual.

A psicanálise poderia ser pensada como um ato político que tem como objetivo fundamental desvelar as políticas subterrâneas que governam o sujeito, para que então, advertido, possa escolher entre continuar na mesma trama vincular - ou na mesma situação -, tentar transformá-la ou abandoná -la. Às vezes, trata-se de políticas explícitas, diante das quais se produz a denúncia direta. Poderíamos dizer que é uma política contra o estabelecido em suas formas explícita e implícita, que é herege, rompe tabus ao falar do proibido... questiona o naturalmente estabelecido; poderia ser pensada como uma contrapolítica do estabelecido. Nesse sentido, é o que Élisabeth Roudinesco (2017b) propõe em relação a nosso fazer individual, às vezes acusado de não psicanalítico: “Me criticaram muito, me disseram que estava dando uma definição não freudiana do inconsciente... Não importa, é um exercício de estilo. No fundo, continuo sendo freudiana. mas infiel. O melhor modo de ser fiel é ser infiel”. Referia-se às críticas que tinha recebido por utilizar filmes como Titanic para difundir conceitos psicanalíticos, afastando-se da ortodoxia da transmissão para a comunidade.

Trata-se de promover um trabalho que pode ganhar dimensões enormes, mas que, em geral, são ações circunscritas a objetivos específicos sobre grupos específicos. Por exemplo, as experiências com imigrantes que chegam à Europa vindos da Síria, com o desenho de dispositivos que levam em conta a teoria psicanalítica. É o caso do Freud Institut de Frankfurt, onde, faz alguns anos, se trabalha num processo de integração dos sujeitos provenientes de zonas de guerra - como a Síria - para lhes oferecer, numa modalidade de intercâmbio (“dar e receber”), a capacidade de integração à nova cultura, sem entrar nos detalhes profundos sobre o impacto diferente que tem, para o homem e para a mulher muçulmanos, esse choque social, político e cultural (Asociación Psicoanalítica Argentina, 2017).

E aqui aparece o conceito de política, que para mim abrange toda essa proposta. A política é uma “arte ou plano com que se conduz um assunto ou se empregam os meios para alcançar determinado fim”, ou “orientações ou diretrizes que regem a atuação de uma pessoa ou entidade num assunto ou campo determinado”. Por exemplo, revelar, mediante as regras fundamentais da psicanálise, as motivações inconscientes do sintoma, seja individual, seja social.

Então, a intenção de promover intervenções aparece não só como leitmotiv do convite que incitou esta escrita, mas como um aprofundamento da política atual da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) nessa linha: ir para a comunidade, tal como propõe sua presidenta, Virginia Ungar (2016). Em uma comunicação, Ungar destacava que em “situações sociais temos que poder ajudar. Essa é a base da essência de nosso trabalho. Ajudar uma pessoa que está sofrendo ou ajudar uma comunidade que está sofrendo. Não sei se a partir de lugares específicos...” Isso também foi dito pelo presidente da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), Roberto Scerpella, ao ressaltar que passamos a

olhar para a realidade como se estivéssemos um pouco à margem da realidade e pudéssemos simplesmente estar olhando para ela para explicá-la. É uma posição que nos prejudicou ao longo do tempo, que nos afastou do envolvimento com o social, com o cultural. Como se fôssemos um ente que está além do bem e do mal. (2016, p. 87)

Cabe mencionar que essa não é uma questão nova, que desde o início mesmo da psicanálise a pergunta sobre a relação entre psicanálise e política deu lugar a interrogações, a começar pelo próprio Freud, que sempre se preocupou em evitar que essa prática fosse tomada como uma visão de mundo (Weltanschauung) (Pommier, 1987), embora, como sabemos, muitas vezes tenha tentado levá-la por esses caminhos, ideologizando-a. Por outro lado, a título meramente anedótico, Roudinesco (2017a) chegou a dizer que “quem se analisou pode governar melhor”.

 

Níveis de intervenção

Nesse sentido, parece haver dois níveis básicos de intervenção direta, e para isso apelo ao exemplo clássico do que acontece no tratamento de crianças. Pode-se agregar outra motivação discutível: a sobrevivência da psicanálise como prática legitimada e a transmissão desse sistema de pensamento perante o poder instituído e perante as culturas e comunidades. Mas comecemos pelo anterior.

Nas terapias de crianças, muitas vezes contamos com a possibilidade de trabalhar com os pais, ou seja, com os responsáveis por grande parte da arquitetura da dinâmica familiar, com seus conflitos inconscientes, transgeracionais e atuais, que têm efeitos sobre a criança, depositária dos depósitos que os pais realizam, isto é, os depositantes - em termos próximos dos de Pichon-Rivière (1985) sobre o emergente, que age como porta-voz/denunciante dos conflitos patológicos grupais.

Às vezes, trabalhar com os pais é impossível, devido à reatividade que os impede de tomar consciência de seus papéis na criação dos sintomas do filho. Nesses casos, trabalhamos com a emergência, apagando o fogo. Mas, quando os pais estão presentes e estão vivos em sua possibilidade de escutar, o trabalho é diferente: existe a inestimável oportunidade de que eles modifiquem situações patologizantes do psiquismo infantil a partir de seus possíveis insights a respeito de suas responsabilidades, seus papéis nessa dinâmica, o que está longe da culpabilização.

Por que estou falando disso?

Porque muitas vezes os governantes ou representantes do Estado são postos como substitutos daqueles que tinham poder sobre nós na infância: os pais. Não pretendo abordar essa projeção - que é discutível -, mas ela está intimamente vinculada aos desenvolvimentos freudianos. Em O mal-estar na cultura, Freud ressalta a

relação entre o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento do indivíduo, [aos quais atribuímos] uma natureza muito semelhante, se não forem um mesmo processo realizado em objetos muito diferentes. O processo cultural é ... uma abstração de ordem mais elevada que o desenvolvimento de um indivíduo; por isso, é mais difícil de apreender intuitivamente, e a busca de analogias não deve ser exagerada compulsivamente. Mas, dada a semelhança dos fins - a integração de um indivíduo numa massa humana, num caso, e a produção de uma unidade coletiva a partir de muitos indivíduos, no outro -, não pode nos surpreender a similaridade dos meios empregados e dos fenômenos advindos. (1930[1929]/2006a, p. 135)

Então, na promoção das intervenções da psicanálise, apresentam-se possibilidades de descobrir modos de pensar dos representantes do poder - por exemplo, dos responsáveis pela implementação das políticas de saúde mental e pela aplicação da Lei Nacional de Saúde Mental (LNSM), dos encarregados das políticas de enfrentamento dos consumos ilícitos, dos incumbidos ministeriais por políticas relacionadas aos assim chamados menores infratores. Trata-se, nesse caso, de estabelecer pontes de diálogo e de conhecimento mútuo (para além das diferenças, para além das possibilidades ou impossibi-lidades de intercâmbio).

Uma coisa é a denúncia sem intenção de diálogo (que chamo de grito), sem intenção de aprofundamento do conhecimento do outro; outra coisa é o encontro como objetivo político, para tentar produzir mudanças com base na intencionalidade de se fazer escutar, seja num âmbito compartilhado, seja no consultório, por parte dos integrantes de um grupo vincular, seja num espaço institucional, por parte de um funcionário público e de psicanalistas, médicos, psiquiatras, pediatras, psicólogos etc.

O lema seria “pontes versus confrontação”, sempre que isso fosse possível. Não se diz aos pais de um filho com determinados sintomas: “Vocês são culpados” e pronto, porque sabemos que isso acarreta a fuga, o repúdio da proposta terapêutica. O que se faz é indagar, construir um diálogo, gerar transferência, estabelecer um campo de trocas... E talvez, talvez se produzam insights. Às vezes, isto não é factível, mas é bom conhecer os pais a fundo para poder trabalhar com as crianças, se possível em conjunto.

Vou dar dois exemplos que talvez sirvam para clarear a ideia.

O primeiro tem a ver com as propostas de modificação da lei de maioridade penal, surgidas a partir de 2016 no Ministério de Justiça e Direitos Humanos da Argentina. Sem que tivesse sido enviado ao Congresso Nacional um projeto específico, cogitava-se a possibilidade de diminuir a maioridade penal de 16 para 14 anos. Muitas instituições ergueram a voz contra um projeto que tendia a ser aprovado em meados de 2017. A Associação Psicanalítica Argentina (APA), contra toda recomendação de correção e postura política (com as cargas ideológicas concomitantes), afirmou a necessidade de que os psicanalistas estivessem presentes nas reuniões do Ministério (a APA tinha sido excluída no princípio). Conseguimos fazer isso e, a partir daí, outras instituições psicanalíticas começaram a participar ativamente, a ponto de chegar a convidar o ministro da Justiça. Por iniciativa da APA, foram feitas reuniões com legisladores e funcionários públicos, ganhando transcendência a discussão, apesar do surgimento de rotulações ideológicas. O que interessava era estabelecer a perspectiva psicanalítica em torno de um tema tão delicado, tanto no tocante à compreensão do fenômeno (não justificação) como no tocante à abordagem adequada desde nossa perspectiva psicanalítica. No momento da redação deste artigo, já se passou quase um ano do vencimento do prazo-li-mite estabelecido pelo Ministério da Justiça para a aprovação de uma nova lei.

O segundo exemplo tem a ver com a aplicação da LNSM. É sabido que desde sua sanção, em 2010, têm havido deficiências em sua implementação, que variam radicalmente segundo o ponto de vista de médicos e psicólogos, e também ideológica e partidariamente. Há demoras, mas, além disso, sérias divergências entre membros argentinos da ipa, basicamente entre analistas psiquiatras e analistas não médicos. Na APA, contra todas as advertências críticas (“Não é o momento”, “É um tema muito conflituoso”), decidiu-se seguir com o convite a funcionários do atual governo (isto é, o do presidente Mauricio Macri), assim como antes foram convidados funcionários do governo anterior (de Néstor Kirchner e de Cristina Kirchner).

O objetivo primário era conhecer em primeira mão - ou seja, para além de primeiras impressões, de imaginários transmitidos verbal e ideologicamente - o pensamento do responsável pela aplicação da LNSM; tentar produzir um intercâmbio dentro do possível, uma modificação. Não conseguimos, e o funcionário em questão, André Blake, finalmente renunciou ao cargo, em janeiro de 2018, sendo substituído por Luciano Grasso.

Num trabalho sobre a ação dos psicanalistas fora do consultório, a colega Adriana Pontelli (2015), de Córdoba, dizia que em certo momento concebeu “a ideia de pensar metaforicamente uma psicanálise com os pés na lama”, mas que se viu trabalhando com cordobeses em zonas de inundação que tinham se transformado em lamaçais. Ante tal materialidade, perguntou-se: “O que estou fazendo na lama!?”. Uma coisa, então, é pensar metaforicamente essas questões, construir um continente mental para dar lugar a uma realidade compartilhada, outra é se envolver materialmente. A analista conta:

Ali me dei conta de que era eu que tinha de me aproximar deles, porque a vivência traumática os tinha deixado num estado de “empantanamento” psíquico. Então, propus um dia e horário, e perguntei se havia algum local coberto - porque a chuva continuava castigando - e algumas cadeiras. Uma mulher ofereceu um cômodo sem uso de sua casa.

E ali se abriu espaço para a escuta.

Essa é, metaforicamente, a mesma pergunta que muitos de nós nos fazemos quando nos metemos na lama da política governamental (e não governamental, a das oposições), vencendo o escárnio de setores que priorizam a ideologia em detrimento da proposta da psicanálise.

É aqui que se coloca a tática de jogar com as palavras como se só fossem palavras; de produzir intercâmbios em espaços em que jogar com as palavras pode permitir que elas tenham efeito e se possa transformar, um mínimo que seja, a realidade, tendo em vista o que os psicanalistas consideram que (em termos gerais) significa a possibilidade de diminuir o sofrimento humano - amar sem trabalho e trabalhar com amor -, conceito que me parece estreito como meta, à qual eu agregaria o reconhecimento da diferença sexual anatômica (que dá lugar ao reconhecimento da realidade compartilhada), da alteridade e das gerações.

Há quem afirme que para abordar determinados assuntos é preciso esperar mudanças na política nacional, classificando como tabu o tratamento de certos temas complexos, urticantes, incômodos, como a maioridade penal, a discussão com representantes do poder que aplicam a LNSM ou o próprio mal -estar na política, não isento de ideologias inabaláveis, rotulações coisificantes de quem pensa diferente e até de fanatismos que impedem o intercâmbio, numa lógica binária em que predomina a alternância bom/mau, sem outras possibilidades categoriais, desqualificando a palavra, a expressão de quem pensa diferente.

Às vezes se propõe um rodeio com procrastinação, à espera de tempos melhores, ideais até, poderiamos dizer, embora o futuro já tenha chegado faz tempo. O tempo nos escapa e, para aqueles de nós que não creem em reencarnações nem no mais além, a materialidade de nossa descendência (espécie de recompensa narcisista diante da castração da peremptoriedade da vida) nos impõe o reconhecimento da diferença sexual (diferença independentemente das escolhas de gozo), da alteridade e das gerações, o que implica que é preciso meter os pés na lama e não desconsiderá-lo a modo de escotoma.

Pois, por mais que o neguemos, estamos inseridos, vinculados e enredados num sistema de poderes, e a partir do instante mesmo em que chegamos ao mundo existem mal-estares e conflitos que muito dificilmente se acabarão no futuro, com a obtenção de um estado de perfeito bem-estar. Freud o dizia deste modo: “Semelhante estado de repouso [Ruhezustand] só é concebível em teoria; na realidade, a situação se complica pelo fato de que a comunidade inclui, desde o começo, elementos de poder desigual, homens e mulheres, pais e filhos” (1933[1932]/2006c, pp. 189-190).

É nesse ponto que a intervenção da psicanálise na comunidade e na cultura, tarefa não menor, implica vencer resistências próprias, que muitas vezes têm a ver com o ideológico e o partidário, visando, por vezes, um ouro puro, que não pode ser maculado pela lama da real realidade. Mas também vencer temores. No fim das contas, só se transforma aquilo que é possível transformar, mas primeiro é preciso assentir.

Ao mesmo tempo, o perigo de um rodeio excessivamente preocupado em não confrontar ideologias, em manter uma postura política de não envolvimento (outra acepção do Diccionario de la lengua española para o vocábulo política, referente ao que se chama apolítico, que não deixa de ser uma política), o que significa não dizer nada que possa causar a irritação de outros, é o de manter tabus que perpetuem modos binários de relação.

Concordando com Jacques-Alain Miller (2012), a psicanálise não é revolucionária (o que significa a mudança rápida e profunda de um estado de coisas, a instalação no poder de um novo ideal totalizador para substituir outro), mas subversiva, o que significa o questionamento permanente das identificações, dos ideais, dos significantes mestres, procedam de quem procederem.

 

Algumas intervenções possíveis na cultura e na comunidade

Pensando na permanente mudança de configurações sociais que produzem o sujeito em cada época, com múltiplas variações contextuais conforme geografia, cultura, classe social etc., não se pode deixar de imbricar política, cultura e comunidade em cada intervenção que realizemos a partir da psicanálise, sabendo que em cada época - concordando com Castoriadis - se produz o tipo de sujeito de que a época necessita, que lhe é funcional.

Trata-se, em primeiro lugar, de um trabalho constante de compreender e apreender os emergentes da época, numa dinâmica que tem de nos fazer trabalhar permanentemente para interrogar fenômenos como a corrupção, o mal-estar na política, o afã intencional ou não de categorizar, etiquetar, nor-matizar as condutas humanas com o intuito de coisificá-las e dominá-las, derivando muitas vezes em ideologias (médicas, inclusive) e fanatismos (religiosos e até psicanalíticos), que respondem a objetivos vários.

Produzir a demanda intervindo em âmbitos políticos produtores de legalidades jurídicas, como os âmbitos legislativos, provoca movimentos inesperados. Por exemplo, quando se pediu, alguns anos atrás, a certo parlamento nacional a declaração de interesse da saúde pública para uma atividade da ipa, nós, psicanalistas, tivemos de ir à Comissão de Saúde do Legislativo para defender a petição. Depois de contar o que era a psicanálise, a história da ipa e as incumbências de nossa prática, muitos assessores se aproximaram para expressar surpresa e uma predisposição entusiasmada ante um discurso diferente “do dos lobbies dos laboratórios, que já nos cansaram com os pedidos de leis patologizantes” (nas palavras de um assessor de um presidente de comissão). Cabe notar que os lobbies mencionados contam com o aporte de fartos recursos monetários, o que contrasta com o ato de vontade dos que exercem a psicanálise nessas questões.

Não devemos esquecer que, na França, houve um movimento, faz poucos anos e com amplo apoio político, na Assemblée Nationale (o parlamento francês), a favor de uma proibição que impedia os psicanalistas de atender patologias autistas, até que, depois de uma luta de vários meses, se conseguiu reverter a proposta legislativa (Autisme, 2016). Nesse sentido, uma das práticas dessas intervenções tem a ver com uma constante batalha para evitar - ou diminuir - o impacto de leis que estigmatizem, etiquetem, patologizem, sob uma primazia ideológico-médica, que prioriza a visão biologicista em detrimento da conflitiva psíquica e complexa que inclui múltiplas determinações sociais, históricas, biológicas, políticas, culturais...

Volto aqui, então, à motivação, discutível talvez: a da sobrevivência da psicanálise como prática legítima e da transmissão desse sistema de pensamento perante o poder instituído e perante as culturas e comunidades, numa época em que ainda impera a empiria científica. Ainda ocorrem debates sobre se a psicanálise deve se submeter a pesquisas de validação (existem muitas pesquisas com resultados positivos, facilmente identificáveis, como as de Horst Kachele) para obter o aval estatal, como atores da saúde mental no sistema público, e também se deve ser regida por lei jurídica para evitar os “charlatões”, nas palavras de Roudinesco (2017b) em conferência dada na Universidade Nacional de La Plata, ao se referir aos que exercem pseudoterapias, vaticinando tal aval de forma inevitável.

Com essa direção como norte, o trabalho vem sendo o de colocar como interlocutores os legisladores federais e estatais (e funcionários públicos), sobre temas como morte digna, consumos ilícitos, programas de assistência ao suicida, descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, iniciativas para combater o vício do jogo, tratamento e abordagem da problemática dos menores infratores, novos fanatismos, “guerra” de gêneros, a problemática sinuosa do politicamente correto, novas formas de vínculos amorosos (poliamor) e familiares, novas formas de expressão de gênero, mundo visual (mundo pornô?), novas migrações e seus efeitos na transculturação, impacto dos meios eletrônicos como novos “integrantes” familiares, e dependência tecnológica. Há outros temas, mas esses servem de exemplo. Tenta-se provocar uma compreensão e uma apreensão nova e complexa desses fenômenos.

Um dado não menos importante, para ir terminando, é que certos coletivos, como o de lésbicas, gays, transexuais, bissexuais, intersexuais, queers. (LGTBIQ) - aproximadamente 12% na cidade de Buenos Aires3 -, são refratários a todas as formas de psicoterapia, por julgá-las patologizantes e normatizantes, deixando de lado outras considerações mais refinadas sobre o tema deste trabalho. Bem, do ponto de vista de nossa política, temos uma ideia inclusiva, estendendo pontes para incorporar essas novas realidades ao pensamento psicanalítico, integrando, ou entrecruzando, discursos muito diversos.

Nesse sentido, é vital que a psicanálise continue sendo uma política particular de questionamento, de compreensão e apreensão de políticas e demandas existentes sob a superfície de determinadas reivindicações (num caso), mandatos oficiais (em outro) e formas de relação social, evitando erigir-se numa visão de mundo normalizadora, no sentido de estabelecer uma visão de mundo. Devemos lembrar que para o fundador desta artesania, a psicanálise, são três as coisas impossíveis: educar, psicanalisar e governar. Governar e psicanalisar, como educar, podem chegar a se transformar em vias para impor certos ideais, arrasando as diferenças, negando as singularidades, sepultando o advento do “ser”. Devemos lembrar que Freud afirmava sua recusa

enfática de fazer do paciente, que se entrega em nossas mãos em busca de ajuda, um patrimônio pessoal, de moldar por ele seu destino, de lhe impor nossos ideais e, com a arrogância do Criador, de nos satisfazermos com nossa obra depois de o termos formado a nossa imagem e semelhança. ... Com efeito, pude oferecer tratamento a pessoas com as quais não tinha qualquer laço de raça, educação, posição social ou visão de mundo, sem incomodá-las em suas peculiaridades. ... não se deve educar o paciente para que se assemelhe a nós, mas para que se liberte e realize seu próprio ser. (1919[1918]/2006b, pp. 159-160)

Com esse alerta, são as intervenções que se realizam partindo de uma perspectiva psicanalítica, extrapolando para o social, que muitas vezes têm efeitos transformadores.

Vale destacar que, para muitos psicanalistas (entre os quais me incluo), a psicanálise está sempre dentro da comunidade, não tendo nascido fora dela nem podendo existir fora dela. Para além dos estratos culturais, econômicos e sociais a que pertencem, psicanalistas e pacientes fazem parte da comunidade. Mais uma vez é preciso lembrar o que Freud enfatizou: “Desde o início, a psicologia individual é simultaneamente psicologia social (1921/2006d, p. 67), devido ao influxo dos outros significativos, que podem produzir predeterminações (Hajer, 2002).

Volto à questão de ser infiel para ser fiel a uma prática, que Roudinesco mencionava, recordando, a modo de contraponto, que Freud se manifestou como um homem a quem não interessava a política, mas sim a ciência. Ele dizia com frequência: “Sou um homem de ciência, nada tenho a ver com política” (Jiménez Burillo, 1993, p. 46), sublinhando o ceticismo já estabelecido em seus chamados textos sociais.

E, para finalizar, ante a crença de que é preciso ter conhecidos nos círculos políticos, o que a prática me mostrou é que bastava pegar o telefone (ou contactar via LinkedIn, Facebook ou outra plataforma web) e pedir uma reunião com legisladores e funcionários com quem não tinha nenhum tipo de vínculo prévio. Comprovei que essas ações são possíveis e dão resultado, pois, ali onde a psicanálise não estava, começa a ser considerada, ajudando a derrubar preconcepções imaginárias (serão tão imaginárias?) ou construídas ex professo sobre uma psicanálise velha, reacionária, démodé.

 

Referências

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Correspondência:
Manuel Padilla, 4060
C1430BYB CABA, Argentina
jpinetta@jpinetta.com.ar

Recebido em 20/9/2018
Aceito em 4/10/2018

 

 

1 Tema tratado na mesa-redonda “Corpos marcados: memória, verdade e psicanálise”. Participantes: Maria Elizabeth Mori (sPBsb/Brasil), Sylvia Pupo Netto (sBPSP/Brasil) e Cecilia Moia (APA/Argentina). Congresso Fepal, 2016, Cartagena das Índias.
2 É importante esclarecer que as iniciativas do pedagogo brasileiro foram interrompidas pelo golpe militar de 1964, depois do qual foi preso por mais de dois meses e expulso do país - o que significa que o trabalho de empoderamento não acontece sem reações.
3 Segundo funcionários da Direção Geral de Convivência na Diversidade, subordinada à Subsecretaria de Direitos Humanos e Pluralismo Cultural, do governo de Buenos Aires (2018).

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