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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

POLÍTICA

 

Cenários possíveis para a psicanálise (e para o psicanalista) na política1

 

Possible Scenarios for Psychoanalysis (and for the psychoanalyst) in politics

 

Escenarios posibles para el psicoanálisis (y para el psicoanalista) en la política

 

Scénarios possibles pour la psychanalyse (et pour le psychanalyste) en politique

 

 

Ezequiel AchilliI; Tradução Mabel Casakin

IMédico, psicanalista e docente. Membro titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Quais são alguns dos possíveis cenários da psicanálise e do psicanalista na política?
I. O analista oferecendo sua experiência e corpus teórico nos debates sociais que elaborem posteriores políticas de estado. Margarethe Hilferding, a primeira sócia (desde 1910) defende a descriminalização do aborto, estudando as consequências psíquicas de gerar um filho não desejado. Passaram-se 100 anos e nós psicanalistas ainda não chegamos a um debate a respeito da descriminalização do aborto na Argentina.
II. O psicanalista refletindo em relação à política e à sociedade. Hoje, o ódio (a rachadura social; não política, a dessubjetivação) parece ser uma das ferramentas mais úteis de alguns políticos, e os psicanalistas às vezes, ignoramos a dor social.
III. Como disse Freud em 1919, trabalhar por uma psicanálise do povo, já que a neurose gera tanto ou mais dano na saúde pública que a tuberculose.

Palavras-chave: aborto, agressão, fanatismo, homossexualidade, mal-estar, ódio, política


ABSTRACT

What are some of the possible scenarios for both Psychoanalysis and the psychoanalyst in Politics?
I. The analyst offers their experience and theoretical corpus in social debates which elaborate further state policies. Margarethe Hilferding, the first member (since 1910), defends the decriminalization of abortion by studying the psychological effects of the pregnancy of an unwanted child. Even after 100 years we, psychoanalysts, have not achieved a debate about the decriminalization of abortion in Argentina.
II. The psychoanalyst reflects on Politics and Society. Today, hatred (the social crack; not political, the desubjectivation) seems to be one of the most useful tools of some politicians, and we psychoanalysts sometimes ignore the social pain.
III. As Freud stated in 1919, working for a Psychoanalysis of People because neuroses cause, if not more, as much damage as tuberculosis.

Keywords: abortion, aggression, fanatism, homosexuality, malaise, hatred, Politics


RESUMEN

¿Cuáles son algunos de los escenarios posibles del psicoanálisis, y del psicoanalista, en la política?
I. El analista brindando su experiencia y corpus teórico en debates sociales que elaboren posteriores políticas de estado. Margarethe Hilferding, la primera socia (desde 1910) aboga acerca la despenalización del aborto, estudiando las consecuencias psíquicas de engendrar un hijo no deseado. Pasaron 100 años y al debate acerca de la despenalización del aborto en Argentina, los psicoanalistas no hemos llegado.
II. El psicoanalista pensando la política y a la sociedad. Hoy el odio (la grieta social; no política, la desubjetivización) parece ser una de las herramientas más útiles de algunos políticos, y los psicoanalistas a veces, escapamos a la escucha del dolor social.
III. Trabajar por, como dice Freud en 1919, un psicoanálisis del pueblo ya que la neurosis genera tanto o más daño en la salud pública como la tuberculosis, como dice Freud.

Palabras clave: aborto, agresión, fanatismo, homosexualidad, malestar, odio, política.


RÉSUMÉ

I. L'analyste en offrant son expérience et le corpus théorique dans les débats sociaux qui élaborent des politiques d'Etat ultérieures. Margarethe Hilferding, la première associé (depuis 1910) défend la décriminalisation de l'avortement en étudiant les conséquences psychiques qui découlent de générer un enfant non voulu. Cent ans se sont déjà passés et nous, psychanalystes, ne sommes pas encore arrivés à un débat concernant la décriminalisation de l'avortement en Argentine.
II L'analyste en réfléchissant sur la politique et la société. Actuellement la haine (la rupture sociale; non politique, la désubjectivation) semble être l'un des outils le plus avantageux de certains politiques, et les psychanalystes, parfois ignorent la douleur sociale.
III Comme l'a dit Freud en 1919, travailler pour une psychanalyse du peuple, vu que dans la santé publique, la névrose génère tant de dommages ou encore plus que la tuberculose.

Mots-clés: avortement, agression, fanatisme, homosexualité, malaise, haine, politique


 

 

A política é a arte do possível;
a psicanálise é a arte do impossível.

(Woody Allen)

 

1.

Neste ano, durante as discussões sobre a meia-sanção da Câmara dos Deputados argentina à descriminalização do aborto, foram viralizados vários vídeos e postagens, assim como mensagens de WhatsApp. Entre as últimas, havia uma que dizia:

No dia 25 de janeiro de 1920, Sophie Freud, de 26 anos, morria num hospital de Hamburgo, onde se suspeita que tenha entrado por causa de um aborto feito de maneira inadequada. No dia 15 de fevereiro do mesmo ano, Sigmund Freud envia uma carta a Arthur Lippmann, médico de Sophie: “O infeliz destino de minha filha parece-me ensejar uma advertência que nossa categoria não costuma levar muito a sério. Em razão de uma lei insensata e desumana, que obriga a dar continuidade à gravidez mesmo aquelas mulheres que não o desejam...”.

Essa mensagem vinha acompanhada de uma referência bibliográfica: “Cartas a seus filhos, Sigmund Freud, p. 605, Paidós”. A fonte é segura, trata-se realmente de Freud falando sobre a morte da filha, mas a interpretação do texto e alguns dados são questionáveis. Por exemplo: a causa da morte poderia ser outra, gripe pneumônica, possivelmente a gripe espanhola (gripe A, conhecida hoje como hini). “Foi-se embora em três ou quatro dias, arrebatada de repente de uma saúde próspera, de uma atividade plena de mãe virtuosa, como se nunca houvesse existido” (Freud, 2013, p. 427).

A passagem divulgada, porém, se interrompe (como costuma acontecer, com reticências) antes da direção que Freud pretende dar à construção, o ensino de métodos anticoncepcionais: “... torna-se evidente que o médico tem o dever de indicar os meios adequados e seguros para prevenir a gravidez (matrimonial) não desejada”. Ele se referia, então, à lei que penaliza o aborto ou ao fato de não existir uma legislação sobre a educação sexual e a oferta de métodos anticoncepcionais?

Sophie e Max tinham dois filhos. Ela estava preocupada porque a situação econômica não era apropriada para ter outro filho. Freud acolhe a preocupação da filha e a instrui quanto ao uso de alguns métodos anticoncepcionais, recomendando o pessário oclusivo intrauterino (diafragma). Apesar disso, Sophie engravida. Freud tenta tranquilizá-la sobre o aspecto econômico e a aconselha a dar continuidade à gravidez, como sua mãe tinha feito: “Siga em frente com a gravidez, já que vocês são jovens, e não se preocupe com a parte econômica, pois três filhos não é muito” (p. 516).

Embora seja verdade que ela teve de se submeter a um aborto, isso foi em 1913 e por indicação médica. No ano seguinte, nasce o primeiro neto de Freud. Este diz ter “uma sensação de maturidade, de respeito pelos milagres da sexualidade” (p. 424). Constata satisfeito que sua filha segue as indicações da primeira pedagoga psicanalítica, Hermine Hug-Hellmuth. Esse neto, Ernest, é o que conhecemos pelo jogo do fort-da.

Em 1920, enfraquecida pela gravidez e pela infecção mencionada, a mais bonita das filhas de Freud morre na região que havia escolhido para morar, longe dos ciúmes de Anna - em Hamburgo, onde sua mãe tinha nascido. É nesse contexto que Freud escreve para o médico de Sophie, em resposta ao informe detalhado sobre a doença da filha, e sem reclamar de nada. “Os detalhes que me fornece satisfazem por completo o imperativo médico do necessário e inevitável”. Sua reclamação se dirige aos que não facilitam a implementação do método citado, o mais eficiente naquele momento. Ele continua: “Espero que essas experiências sirvam para que os ginecologistas reconheçam, cada vez com maior clareza, a importância da tarefa que lhes compete” (p. 606).

Entre os membros do grupo das quartas-feiras, alguns trabalharam ativamente pela educação sexual, pela prevenção da gravidez e pela descriminalização do aborto. Em 1906, mobilizaram-se ainda em relação à homossexualidade, que era proibida legalmente, e propuseram a modificação e a retirada de vários itens do Código Penal de Viena. Margarete Hilferding foi o primeiro membro desse grupo a estudar as consequências psíquicas de gerar um filho não desejado. Rapidamente somaram-se outras vozes e nasceu um movimento.

O que dizer desses dados, que segundo alguns jovens “desconstrucionistas” são anacrônicos, quando a rigor são essas discussões de 100 anos atrás que consideramos atuais, como tantas outras? E, no entanto, ao debate sobre a descriminalização do aborto e a vários outros (por exemplo, o casamento homoafetivo e a identidade de gênero) nós, psicanalistas, chegamos tarde. Pior: talvez nem tenhamos chegado, uma vez que nossa participação nas audiências públicas tem sido surpreendentemente baixa, quase nula. Não são os debates sociais e públicos, que elaboram as políticas de Estado, os lugares que os fundadores nos ensinaram a ocupar?

Em 1911, Hilferding apresentou ao grupo um trabalho original, hoje amplamente aceito: As bases do amor materno. Freud, que ainda não havia nomeado seu complexo, embora já tivesse falado de Édipo, aplaudiu de pé esse trabalho. Hilferding dedicava-se especialmente a temas relacionados com a sexualidade feminina. Na obra citada, examinou também os efeitos do filho sobre a mãe, visto ser a criança que a transforma em mãe, ao libidinizá-la. Isso causou grande impacto em Freud, que chegou a considerar que a transferência materna seria mais bem desempenhada por mulheres.

Hilferding dedicava-se ainda à educação sexual em centros de orientação psicológica infantil, na Organização de Mulheres Socialistas. Mas foi em 1926, no livro Controle da natalidade, que ela se voltou para a questão do aborto, pedindo que fosse descriminalizado em Viena. Apresentou vários trabalhos sobre o tema, e sua posição se destacou especialmente no 4.° Congresso da Liga Mundial para a Reforma Sexual, em Viena, 1930.

De que maneira abordava o assunto? Ela considerava que as mães, que ficam realmente felizes com a ideia de ter um filho, costumam sentir-se desapontadas quando ele nasce e não experimentam um verdadeiro sentimento de amor. Isso porque, no nascimento, quando o ideal é confrontado com a realidade, acontece uma decepção em relação a ele. Nesse sentido, do ponto de vista da mãe, o bebê é uma ilusão, o que faz lembrar a formulação posterior de Winnicott. Hilferding também afirmava que não existe um tipo de amor materno inato, mas algo que vai se desenvolver. Por isso, o bebê passa às vezes a ser odiado, o que pode melancolizar a mãe.2 Trata-se de um vínculo que oscila entre impulsos hostis e sexuais.

De acordo com a autora, é a amamentação que “constrói” a relação, ao recuperar o que foi sentido como perdido. Portanto, o amor materno, não sendo natural, é um tipo de compaixão, uma ilusão que se relaciona com o componente erótico durante a gravidez, e mais ainda com a excitação sexual da atenção materna. A gravidez por si só é um processo libidinal narcisista: o corpo da mãe se encontra investido pela criança, e o vínculo se reforça pela insatisfação sexual com o marido. Os fatores psicológicos, como substitutos do amor materno, manifestam-se quando a mãe se nega a amamentar a criança. Se conseguir fazê-lo, a criança mesma a conduzirá a mudanças na vida sexual. Ela se tornará um objeto sexual natural para a mãe, o que dessa vez coincidirá com as necessidades de atenção da criança.

Qual era então a posição de Hilferding em relação ao aborto? A de que, se a ilusão não se construísse, o efeito seria devastador para a mãe.

Marx de um lado e Freud do outro tentaram relacionar o sofrimento do ser humano com as renúncias que ele precisa fazer para construir a cultura e a sociedade a que pertence. Wilhelm Reich, por sua vez, durante muito tempo procurou unir a teoria freudiana com a marxista. Ele dizia que Marx não criticava a sociedade, mas a própria natureza. Buscou desenvolver uma função social para a psicanálise e, ao mesmo tempo, um modelo de estudo dos conflitos sociais.

Contudo, seu livro Psicologia de massas do fascismo, de 1933, o afastou tanto da psicanálise quanto do marxismo. Algo diferente nasceu, sua sexo-política, um grupo de trabalhos cujo objetivo era provocar uma mudança social. Segundo Reich, isso só seria possível por meio de uma mudança sexual social: educação sexual, descriminalização do aborto, prática livre das diferentes identidades sexuais etc. Em 1936, apresentou todas essas ideias em A revolução sexual, estimulando os jovens a ir para a rua e militar, equiparando a luta sexual à luta de classes e afirmando que ambas deviam caminhar lado a lado. Descreveu o conceito de homenzinho (armado), decerto não muito claro, mas que se refere a quem tenta impedir o desenvolvimento e o trabalho dos grandes homens.

Este texto aponta para aquilo de que podemos nos aproximar enquanto psicanalistas abstinentes, com a clínica e com nosso corpus teórico fundante. Passaram-se 92 anos (quase 100) desde a publicação do livro de Hilferding, e parece que nos esquecemos do aspecto social e político da psicanálise, escondendo-o atrás de políticas institucionais. O que acontece conosco que é tão difícil nos implicarmos com o social, para o político, quando já em Freud e em seu círculo o ativismo social era fundamental?

Nas exposições das terças e quintas-feiras,3 de ambos os lados dessa nova fratura em torno do aborto, participaram: advogados, alguns deles especializados em direito da família e em direitos humanos; médicos de várias especialidades; pesquisadores de áreas diversas, representando o Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet); membros da Igreja, inclusive militantes a favor; funcionários e ex-funcionários de diferentes governos; comunicadores sociais; sindicalistas; filósofos; biólogos; bioeticistas; uma veterinária que comparou o aborto com os desaparecidos; atores e atrizes etc.

Nossa não participação se mostrou igualmente em relação aos “direitos da criança para escolher sua identidade”. Há pouco tempo, uma amiga e colega de trabalho perguntava-se: “Paramos para pensar (e nos manifestar a partir de nossa experiência clínica) nas implicações de escolher uma identidade sexual aos 8 anos de idade?”. Da mesma maneira, não nos posicionamos sobre o lugar do pai em técnicas de reprodução assistida ou na inseminação artificial. Tenta-se fazer chegar ao país a barriga de aluguel, e tampouco estamos aí para recebê-la. O mesmo acontece com o debate sobre o casamento homoafetivo e as discussões paralelas em torno do assunto (como adoção homoparental, monoparental etc.).

Ainda que em nosso país a homossexualidade nunca tenha sido penalizada, é interessante lembrar que, já em 1906 (há 112 anos), Wilhelm Stekel apresentou um projeto contra um parágrafo do Código Penal de Viena que punia legalmente a homossexualidade. Nesse mesmo ano, Sándor Ferenczi, com alguns colegas, começou a trabalhar pelos direitos dos homossexuais, sendo um dos primeiros a derrubar tabus ao insistir para que se deixasse de considerar a homossexualidade uma doença, trabalho pelo qual chegou a ser presidente do Comitê Internacional Humanitário pela Defesa dos Homossexuais.

Já foram assinaladas duas participações do círculo de Freud no âmbito do Código Penal, mas também é necessário mencionar a participação do próprio Freud no ingresso de mulheres no curso de medicina em Viena. Entre as primeiras formandas estavam Margarete Hilferding e Helene Deutsch. Esta, sendo a chefe do serviço de tocoginecologia, não podia cobrar pelo fato de ser mulher.

Ao recordar esses dados, me surgem mais perguntas sobre nossa práxis, a qual chamamos de atual em detrimento do que alguns consideram anacrônico - os piores inimigos da psicanálise sempre estiveram dentro de nossas instituições -, quando a rigor as reuniões na casa de Freud abrigavam ideias originais sobre um pensamento nascente e, ao mesmo tempo, trabalhavam de forma compromissada com questões de fundo social e político, como aborto e homossexualidade. Freud escreveu sobre a guerra e sobre um presidente norte-americano.

Será que nos omitimos por medo de assumir uma posição? É necessário manifestar uma posição para elaborar um conflito? Há discursos emergentes não ideológicos e/ou partidários em cenários em que se combinam o político e a psicanálise? Quanto tempo mais vamos discutir e escrever sobre os fenômenos de massa sem nos incluir neles?

A psicanálise não responde ao individual, mesmo que grande parte dos psicanalistas o façam. O indivíduo é indivisível (daí seu nome, como indica Adler) do social. Pensá-lo separado, mesmo que continuemos a chamá-lo de sujeito, é colocá-lo no lugar de objeto de mercado.

 

2.

Pode-se ocupar um lugar de abstinência e, de alguma forma, neutro em relação à análise da dor social? O ato violento e o gozo que implica levá-lo adiante relacionam-se diretamente com a dessubjetivação do outro, como ensina Silvia Bleichmar. Mas o que nos impele a isso? Quando a pulsão não encontra um substituto num novo sintoma, muitas vezes o reprimido (que retorna) se transforma em agressão, em ódio social, e potencializa a ação.

O ódio é resultado da rejeição originária que o eu opõe ao mundo exterior (Freud, 1913/1986d). Apresenta-se como um amor ilimitado, fantasiado de paixão (fanatismo). Essa última modalidade sintomática, por ser compartilhada, não causa mal-estar e, muito menos, sentimento de culpa, uma vez que é participativa e promove identidade. Eu sou peronista, kirchnerista - em dado momento, houve os menemistas -, macrista, mas poucos aceitam a identidade que o outro lhe atribui: gorila, por exemplo.

J.-D. Nasio afirma que o lugar do ódio é o eu, e ele vem acompanhado de um sentimento de onipotência que produz gozo (narcisista). O ódio é fundante do eu. Sujeito e objeto constituem-se pela ação e pela pulsão - fonte, meta, fim... -, que põe em marcha a ação, mas fundamentalmente com e pelo primeiro ato psíquico: a alucinação. Assim nasce o desejo, da necessidade e através do primeiro objeto.

Segundo Freud, o eu se constitui à medida que o primeiro objeto se constitui, mas trata-se de um objeto psíquico. Por que um objeto psíquico? Só assim pode surgir a marca de satisfação que pugna por se realizar novamente, e também a primeira identificação. Para que isso ocorra, é necessário existir as duas formas de objeto: o objeto propriamente dito e o objeto psíquico.

Desse modo, o eu real primitivo estabelece uma primeira forma de espacialidade, o interno e o mundo do objeto (o mundo externo), a partir do atemporal. Seria essa uma das razões para o inconsciente ser atemporal? O eu do prazer purificado se constitui na experiência de sentir prazer e diferenciá-lo do desprazer, o qual é projetado - projetar poderia ser outro ato -, numa reação de ódio, a primeira manifestação dessa existência. O ódio, portanto, é fundante do eu e do objeto.

Em “Pulsões e destinos da pulsão” (1915/1984b), Freud explica que o eu se constitui por essa primeira diferenciação e pelo afeto que é gerado: tudo que é bom me pertence, e tudo que é ruim pertence ao outro (eu/não eu). Ou seja, o outro é, antes de tudo, o ruim rejeitado pelo eu, que se origina na expulsão do doloroso, do repulsivo. Essa é uma primeira forma de identidade egoica. Sem ódio e sem um outro, não há identidade. Será então que aqueles que atacam permanentemente o diferente precisam reafirmar sua identidade?

Deve ser por isso que se goza com o fracasso do outro, que se deseja que ele não tenha êxito. Esse fracasso seria uma confirmação da natureza do mal, próprio do outro. Fazer-lhe mal, mesmo que o outro seja o próprio país. Define-se o outro a partir de si mesmo, e ele não é reconhecido por ser “tão” desconhecido, já que o objeto é construído de acordo com as leis ditadas pela contingência.

A famosa fratura na Argentina já existe há algum tempo. Até 10 anos atrás, 90% da população pertencia a algum partido político. Segundo as estatísticas, de um lado e do outro da fratura, as pessoas já não pertencem a nenhum grupo que compartilhe do mesmo pensamento político. Assim, não se trata de uma fratura política, mas social, como assinala Beatriz Sarlo; uma cisão, o próprio da loucura e da agressão.

O fantasma da corrupção, sempre presente, provoca mais ira e desigualdade. As desvalorizações também ampliam a brecha da desigualdade. A Spaltung perdura e se torna uma ferida. E o que dizer do desmentido da realidade? Se a isso adicionamos o tratamento que os meios de comunicação (ao contrário dos meios de expressão, como as redes sociais) dão ao assunto, no qual não havendo agressão não há audiência, a ferida vira escara.

O ódio, a agressão, pulveriza o laço social. De acordo com Freud, porém, o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. Portanto, o que está por trás desse ódio não é o amor pela pátria, e sim algo que, se tornado consciente, não nos atreveríamos a usar uma escarapela.4

Em relação às redes sociais, farei uma pequena reflexão por meio de questionamentos. Quando se apresenta uma opção política no mural, a quem ela está endereçada? Não é de supor que os amigos que temos no Facebook, por exemplo, sejam amigos? Faz algum tempo que o que se expressa ali é ódio. Pergunto-me, então, por que as redes sociais parecem se prestar melhor à canalização do ódio. Será porque temos a ilusão de que o outro não pode responder e por isso ficamos tranquilos, sentindo-nos os donos da verdade? Por que lançamos ao espaço pensamentos que não estão direcionados a uma troca, a uma análise, a um encontro com a diferença? É suficiente falar sobre a incidência do ódio nas novas modalidades de comunicação em rede, como o fazemos, no melhor dos casos, nos eventos de nossas instituições?

Nas redes, libera-se a violência, talvez porque seja necessário haver um lugar em que se possa descarregá-la. O mesmo acontece na rua, na escola..., e a violência é cada vez maior. Quando Heidegger denuncia o falatório, ele nos confronta com nossa própria imbecilidade. Há um pensamento sem sujeito - que provavelmente corresponde a uma era, a uma época, ao discurso da televisão ou das redes sociais - que nos submete. E projeta-se ali a tristitia-acedia,5 a impotência que destruiria o sujeito. Quem a recebe e não a consegue metabolizar, talvez por não estar preparado, ou simplesmente por não ter uma razão para fazê-lo, incorpora-a, com a consequente sensação de catástrofe. Pouco tempo depois, essa “crise” social é esquecida, mas o dano permanece.

Freud afirma:

Todos os preceitos morais que limitam o ódio ativo mostram, ainda hoje, os mais claros indícios de que, em sua origem, foram destinados a ter vigência no interior de uma pequena comunidade tribal. Assim que temos o direito de sentir-nos cidadãos de um povo, nos permitimos prescindir da maioria dessas limitações diante de um povo estrangeiro. (1905/1986a, pp. 96-97)

Talvez ele esteja se referindo à xenofobia, mas hoje o conceito de estrangeiro poderia ser ampliado ao que é diferente, por medo desse conhecido (próximo, estranho), e portanto desconhecido. “No entanto, dentro de nosso próprio círculo realizamos progressos em relação aos sentimentos hostis” (p. 97). Poderiamos continuar. Bastaria lembrar alguns elementos da psicanálise propostos por Wilfred Bion, como o vínculo K.

Na Argentina, essa leitura “psicanalítica” da política levou a uma primeira divisão: os famosos grupos Plataforma e Documento. Marie Langer afirmava, por exemplo, que um analista devia assumir uma posição política. Essa posição não significaria abandonar a regra da abstinência?

Ainda que se possa argumentar que a regra da abstinência vale somente para a função analítica, e não para o cidadão, a posição de analistas diante do social também deveria ser mantida. Nesse sentido, a regra vale não só enquanto “se está analista”, como dizia Ulloa, mas também na escuta do sujeito e do objeto, que nascem juntos e juntos se constituem, inclusive como nação.

Quando o ideal do eu aspira à perfeição, sua frustração gera agressão. Jacques Lacan afirma que um analista deve estar à altura de sua época. Eu me permito acrescentar que também deve estar à altura da psicanálise. Sem abstinência, não há possibilidade de elaboração, e dessa maneira o psicanalista, de acordo com as palavras de Freud, corre o risco de justificar sua assimilação a uma autoridade repressora. Se como psicanalistas não abordarmos esse tema, a partir da complexidade da abstinência como princípio e como regra (não satisfazer as demandas nem desempenhar os papéis que tentam nos impor), nunca conseguiremos outra coisa além de potencializar a violência e o ódio.

 

3.

Em “Novos caminhos da terapia psicanalítica” (1919/1986c), Freud afirma que o tratamento psicanalítico se orienta a desmontar impulsos reprimidos e vencer resistências. Também diz que não devemos investir na psicossíntese. De fato, não haveria como fazê-lo, uma vez que o eu reintegra esses aspectos por si mesmo. Para que isso aconteça é fundamental a abstinência do analista, e faltar com essa regra técnica6 significaria introduzir no paciente o ideal próprio. Se um paciente se acomoda ao ideal do eu do analista, e isso acontece quando se superpõem os vértices (como diz Mario Wasserman), o paciente se submete a ele, e nós deixamos de ser psicanalistas.

Uma psicanálise da política e da sociedade, o lugar do psicanalista na política, devia seguir, então, essa mesma linha de trabalho, de maneira que a sociedade, por si só, fizesse sua nova síntese, que de antemão nós desconhecemos. Essa seria uma posição analítica diante do político, abstendo-nos e evitando o dogmatismo nos indivíduos.

Por volta de 1920, com Karl Abraham e Max Eitingon, Freud criou o Instituto Policlínico Psicanalítico de Viena (Ambulatorium), que oferecia tratamento para quem não tinha condições financeiras e para vítimas de guerra. Fora o tratamento psicanalítico, o Policlínico, como o de Berlim, dedicava-se à pesquisa, a palestras para todo tipo de profissional (da saúde e da educação) e à formação dos psicanalistas da segunda geração, oferecendo psicanálise didática e supervisões.

Como Freud sugere (e leva adiante nos anos 1920 com o Ambulatorium), podemos trabalhar em instituições com a ajuda de um Estado que considere urgente o problema social, porque “a neurose não constitui uma ameaça menor à saúde do povo que a tuberculose”. Ele propõe criar instituições que, se necessário, adaptarão a técnica às novas condições, mas “não há dúvida de que seus ingredientes mais eficazes e importantes continuarão sendo os tomados da psicanálise rigorosa, alheia a qualquer partidarismo” (1919/1986c, pp. 162-163).

Não me parece casual que, para falar em melancolia e mania, Freud necessite de Psicologia das massas e análise do eu (1921/1984a), obra em que ele adverte sobre a existência de atos narcisistas individuais e também sociais (numa instituição, numa nação...). Da mesma forma que não devemos permitir a satisfação pulsional na pessoa do analista, a abstinência também é necessária na hora de analisar os fenômenos sociais.

Eliminando-se a superestrutura individual, segundo Le Bon (que cita O mal-estar na cultura), o distintivo parece desaparecer pela renúncia pulsional. Aparece o novo, o que nunca antes se havia feito presente de maneira individual, com o preço que implica certa inibição individual e a intensificação dos afetos.

Para onde quer que se vá, o totemismo sempre retorna com a finalidade de “organizar”. Lacan afirma que, numa instituição, o psicanalista deve instaurar a particularidade contra o ideal. É aí que se esconde o gozo, que não é individual, mas social, político.

Por muito tempo, nós, analistas, mantivemos uma posição intelectual crítica. Não acredito que a leitura da psicanálise como lugar de desidentificação tenha deixado a psicanálise (a verdadeira instituição) à margem, embora o tenha feito com os lugares em que se fala de psicanálise e, especialmente, com os psicanalistas. Acontece algo semelhante com a Igreja. O silêncio sepulcral nos deixa de fora.

Como é que pensamos em termos de sujeito, assim o nomeamos, de um indivíduo indivisível do social, e não participamos dessa subjetividade? Quais poderiam ser alguns cenários possíveis de participação além daquele proposto por Freud?

O livro A batalha do autismo (2013), de Éric Laurent, representa uma ação e uma posição política forte a respeito do ataque sofrido pela psicanálise após o documentário O muro, que defende uma política de restrição ao tratamento psicanalítico do autismo na França.

As primeiras mulheres a estudar medicina em Viena o fizeram graças a Freud, o qual montou um grupo que, no final de seus dias, chegava a ter a mesma quantidade de mulheres que de homens. Aí nasceram, por exemplo, as primeiras discussões sobre feminilidade, bem como os grupos reformistas e conservadores em relação ao feminismo. Por que hoje os psicanalistas chegam tão tarde, se é que chegam, ao debate do atual (social e político)? Nós nos detemos na psicanálise aplicada.

Hoje é mais difícil falar em política que em sexualidade. Sabemos que esses assuntos causam mal-estar, mas existe algum tipo de fazer que não o cause? Se o sintoma é a terra estrangeira interior, como aponta Freud (1926/1986b), o mal-estar na cultura é algo estrangeiro exterior, e só é assim porque o repelimos. Jacques Lacan afirma que o único ato político é dizer não, e talvez essa deva ser nossa posição, analítica e política. Por que nos negamos a fazê-lo, se uma instituição psicanalítica deve provocar atos políticos? Por que a porta de algumas instituições psicanalíticas é tão pequena e tão pesada?

 

Referências

Agamben, G. (1995). Estancias: la palabra y el fantasma en la cultura occidental (T. Segovia, Trad.). Valencia: Pre-Textos.         [ Links ]

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Freud, S. (1984b). Pulsiones y destinos de pulsión. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 105-134). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

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Freud, S. (2013). Cartas a sus hijos (F. Martín & A. Obermeier, Trads.). Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Laurent, E. (2013). La batalla del autismo: de la clínica a la política (E. Berenguer, Trad.). Buenos Aires: Grama.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ezequiel Achilli
Cabello 3939 4Fl A
1425 Buenos Aires, Argentina
ezequielachilli@hotmail.com

Recebido em 20/9/2018
Aceito em 4/10/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no 11.° Congresso Argentino de Psicanálise, realizado em Córdoba, em maio de 2018.
2 O que chamamos hoje de depressão ou psicose pós-parto.
3 O debate formal sobre a descriminalização do aborto na Argentina aconteceu em sessões realizadas às terça e quintas-feiras, na Câmara dos Deputados.
4 NT: símbolo nacional argentino, de cor azul-clara e branca, usado na lapela por ocasião de festividades nacionais.
5 Termo inventado por Giorgio Agamben (1995).
6 Este é o último artigo técnico de Freud, e levaria um tempo até “Análise terminável e interminável”.

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