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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

POLÍTICA

 

Para conseguir o impossível, é preciso lutar pelo impossível com amor

 

To achieve the impossible, you must fight for the impossible with love

 

Para conseguir lo Imposible, es necesario luchar por lo Imposible con amor

 

Pour obtenir l'impossible, il faut lutter pour l'impossible avec amour

 

 

Paulo Marchon

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza (SPFOR), da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor acompanha o amor na obra de Freud, desde uma carta a Jung, de 1906, em que Freud defende com convicção que o amor é o fator essencial na cura psicanalítica. Green diz que todas as correntes concordam com isso até hoje. Do amor individual passamos ao amor da psicologia das massas e, daí, vislumbramos a diminuição da violência e também das guerras no mundo, que se expressa com a longa paz entre as grandes nações, de 1945 até hoje. Para que isso seja possível, o amor tem que estar presente, embora saibamos que os perigos da bomba estejam muito vivos e sejam ameaçadores. Os pontos de vista divergentes de Steven Pinker e John Gray também são considerados. Os europeus criaram uma utopia que se tornou realidade: a União Europeia. Ela se constituiu através de um extraordinário perdão desses povos, fator que permitiu ao Ocidente viver o melhor dos mundos, em termos relativos, até hoje. Habermas defende ardorosamente a universalização dos direitos humanos, mas reconhece que, para realizar tal objetivo, esses direitos dependem de sua incorporação institucional numa sociedade mundial constituída politicamente.

Palavras-chave: amor, caritas, União Europeia, Popper, Habermas


ABSTRACT

The author has followed Love in Freud's work since the letter to Jung (1906) in which Freud defended with conviction that Love was the essential factor of psychoanalytic healing. To this day, all theories agree, Green says. From individual love, we go through the love of the Psychology of the Masses and, then, we may observe the decrease of violence and wars in the world, which has been expressed by the Long Peace between the Great Nations since 1945. It will only be possible if Love is present, even though we are aware of the dangers of the BOMB, still very alive and threatening. The divergent views of S. Pinker and John Gray are considered in this work. Europeans have created a Utopia that has come true - the European Union. It was constituted through an extraordinary pardon by these people, a factor that so far has enabled the Western world to live The Best of the Worlds, in relative terms. Although Habermas ardently defends the universalization of human rights, he recognizes that, to achieve this goal, these rights “depend on their institutional incorporation into a politically constituted world society.”

Keywords: Love, caritas, European Union, Popper, Habermas


RESUMEN

El autor acompaña el Amor en la obra de Freud desde la carta a Jung de 1906, cuando Freud defendía con convicción que el Amor era el factor esencial en la cura psicoanalítica. Green dice que todas las corrientes concuerdan con esto hasta hoy. Del amor individual pasamos al amor de la psicología de las masas y, de ahí, podemos vislumbrar la disminución de la violencia y también de las guerras en el mundo, que se expresan en la Larga Paz entre las Grandes Naciones desde 1945 hasta hoy. Para que esto sea posible el Amor tendrá que estar presente aunque seamos conscientes de que los peligros de la BOMBA están muy vivos y amenazadores. Los puntos de vista divergentes, de S. Pinker y de John Gray, también son considerados. Los europeos crearon una Utopía que se hizo realidad - la Unión Europea. Ella se constituyó a través de un extraordinario perdón de estos pueblos, perdón que permitió al mundo occidental vivir Lo Mejor de los Mundos, en términos relativos, hasta hoy. Habermas defiende ardorosamente la universalización de los derechos humanos, pero reconoce que para lograr tal objetivo estos derechos “dependen de su incorporación institucional en una sociedad mundial constituida políticamente”.

Palabras clave: Amor, caritas, Unión Europea, Popper, Habermas


RÉSUMÉ

L'auteur suit l´amour dans l'ouvrage de Freud depuis la lettre à Jung en 1906, où Freud défendait avec conviction que l'amour était le facteur essentiel pour la guérison psychanalytique. Green dit que tous les courants sont d'accord avec Freud jusqu'à aujourd'hui. De l'amour individuelle, on passe par l'amour de la psychologie des masses et, ainsi, on peut apercevoir la diminution de la violence, aussi bien que celle des guerres dans le monde, ce qui est exprimé avec La Longue PaIX entre les Grands Pays depuis 1945 jusqu'aujourd'hui. Pour que ceci soit possible l'amour devrait être présent, même si nous savons que les dangers issus d'une Bombe sont encore très présents et terrifiants. Les points de vue divergents de S. Pinker et de John Gray sont aussi considérés. Les Européens ont créé une utopie qui est devenue réalité: l'Union Européenne. Celle-ci s'est constitué au moyen d'un extraordinaire pardon de ces peuples, pardon qui a permis au monde occidental de vivre “le meilleur des mondes”, en termes relatifs, jusqu'à présent. Habermas défend avec ardeur l'universalisation des droits de l´homme, mais il reconnait que, pour mener à bien un tel objectif, ces droits “dépendent de son incorporation institutionnelle dans une société mondiale constituée politiquement”.

Mots-clés: amour, caritas, Union Européenne, Popper, Habermas


 

 

1. Freud e o amor

Usamos a palavra sexualidade no mesmo sentido em que, na língua alemã, se usa a palavra Lieben [amor]. (Sigmund Freud)

Numa carta a Jung, de 6 de dezembro de 1906, Freud escreve: “Poder-se-ia dizer que a cura [psicanalítica] é essencialmente efetuada pelo amor. E a transferência, na realidade, proporciona a prova mais convincente - a única de fato irrefutável - de que as neuroses são determinadas pela história de amor do indivíduo” (McGuire, 1976, p. 53). Em “Sobre a psicoterapia”, afirma que falta aos neuróticos a capacidade de amar. Compreende-se, assim, que a terapêutica precisa ser “essencialmente efetuada pelo amor”, para tentar diminuir essa falta (1905/1972a, pp. 277-278).

Para Freud (1905/1972b), o bebê sugando o seio da mãe é o protótipo de toda relação amorosa. Na amamentação, ao sugar o seio, saciando a sede e a fome, o bebê realiza um prazer sensual. A satisfação da pulsão de autoconservação torna-se algo prazeroso. Quando o bebê suga o dedo, a autopreservação não está presente. Freud viu nessa situação a independência do bebê, que se imaginaria capaz de se alimentar, de ter o seio à mão, mas viu também, nua e crua, a sensualidade, a sexualidade presente no ato de chupar o polegar. O bebê impregna o dedo com toda a sensualidade que lhe é possível nesse momento, sensualidade que é extraída das primeiras experiências com o seio, quando ela estava ligada à autopreservação. O encontro com o polegar é o reencontro com o seio amado.

Assim, o bebê povoa não apenas o seio materno, não apenas o seu polegar, mas todo o seu mundo psicológico com a própria sensualidade. A fragilidade do ego inicial não permite limites muito precisos entre mundo interno e mundo externo. Podemos então concluir com Freud algo que foi realçado por Jonathan Lear: “O mundo existe para nós porque investimos nele energia sexual” (1990, p. 140). Quando e se parássemos esse investimento, o mundo deixaria de existir para nós. Teríamos voltado essa energia, esse investimento, para nós mesmos, exclusivamente, e teríamos nos tornado psicóticos. O mundo continuaria a existir para os outros, que o amam e que são amados por ele. Green sustenta algo semelhante: “A meta da pulsão de morte é realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento” (1988, p. 60).

Apoiando-se em Schopenhauer, Freud diz que as massas humanas mais parecem porcos-espinhos que, no inverno, se aproximam para se aquecer, mas que, ao fazer isso, sofrem a dor dos espinhos alheios. Há também a dor de espetar os outros. Então se afastam, e o frio os leva a se aproximar novamente, até arranjarem um termo médio. Freud afirma que os homens teriam em si uma poderosa e espinhosa força tanática, uma força de morte, mas que também haveria outra força, Eros, que os uniria apesar dos espinhos, os próprios e os alheios. Em Psicologia de grupo e a análise do ego, ele observa que “as relações também constituem a essência da mente dos grupos” (1921/2006b, p. 91). Para enfatizar mais ainda a importância do amor, Freud transcreve as palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 13,1: “Ainda que eu fale a língua dos homens e a dos anjos, se não tiver caritas [amor], serei como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine”. Ele falou em caritas, que é amor, mas um amor especial, pois é amor para com o outro como Outro.

Em “Dois verbetes de enciclopédia”, Freud volta a ser taxativo: “As pulsões libidinosas, sexuais ou de vida são mais bem compreendidas sob o nome de Eros” (1922/2006a, p. 258). Lear, porém, considerou pequena a mudança e resolveu substituir Eros pelo inglês love, a fim de não abafar com um termo estranho à sua língua “a intensidade do pensamento de Freud” (1990, p. 147). As palavras têm importância fundamental.

Em Além do princípio de prazer, Freud diz não acreditar numa “pulsão para a perfeição no ser humano”. Embora descrente dessa pulsão de perfeição, depois de frisar que tal condição não poderia ser atribuída “a todos os seres humanos”, ele admite que “as condições dinâmicas para seu desenvolvimento estão, na verdade, universalmente presentes” (1920/1955, p. 42).

Numa carta de 1915 a Putnam, Freud diz praticar o que ele tanto passou a questionar em 1929 (pelo menos, por escrito):

Uma coisa há, no entanto, na qual estou de acordo com você. Quando me pergunto por que me conduzi sempre honrosamente, disposto a considerar os demais e a ser bondoso todas as vezes que me fosse possível, e por que não deixei de agir assim quando vi que dessa maneira a gente se prejudica e se transforma em vítima de todos, porque os demais são brutais e desleais, certo é que não sei responder-lhe. Foi, por certo, uma conduta sensata. ... É você provavelmente a primeira pessoa a quem confesso isso. De maneira que se poderia citar precisamente meu caso em apoio de seu conceito de que um impulso ao ideal constitui uma parte essencial de nossa natureza. Ah! se eu pudesse ver nos outros essa mesma valiosa natureza. (Jones, s.d., p. 434)

Só aos 60 anos Freud confessa, pela primeira vez, que ama o próximo, mesmo quando se prejudica, e que ele sente em si mesmo o impulso ao ideal, a pulsão “para cima”.

Em O mal-estar na civilização, depois de afirmar que “o amor que fundou a família continua a operar na civilização” (1930/1974, p. 123), Freud põe frente a frente Eros e Tânatos, em sua luta monumental. Mas o grande mergulho no amor é dado por Freud ao descobrir o complexo de Édipo, expressão do mais puro amor e também dos mais loucos e desvairados atos e sentimentos que mancham a mente e a história da humanidade. É um marco da cultura e da hominização. Laplanche complementa:

A contribuição de Freud nos anos 1915 não é a pulsão de morte, é a pulsão de vida, ou seja, a sexualidade ligada a um objeto total, aquela que se torna amor, quer seja amor pelo outro, quer seja, de maneira correlativa e fundamental, amor por si mesmo, isto é, narcisismo . [que teria também] seus aspectos mais desestruturantes, mais fragmentados e fragmentadores. (1992, pp. 154-155)

Green atualiza: “Não há teoria e prática psicanalítica que negue a centralidade do amor na cura” (2005, p. 8). Lear afirma que, quando o amor passa “através de uma pessoa, ela própria se torna um locus de atividade amorosa” (1990, p. 219). Diz ainda que, “se a sabedoria for a compreensão eficaz de como viver bem, então a psicanálise poderá se declarar como sabedoria extraída da doença” (p. 135).

O empresário sem preocupação social

Aos 40 anos, teve câncer e foi operado. Fuma. Quando estava numa situação financeira dificílima, duas irmãs que trabalhavam com ele o abandonaram e criaram uma empresa concorrente. Evoluíram bem. Hoje o paciente está bem financeiramente, e diz que se sente muito invejoso e mau: desejou que as irmãs fossem à falência, e agora elas estão numa situação complicada. Arrepende-se desses sentimentos. Está disposto a ajudá-las. Compreende que elas tinham que abandoná-lo na época, porque senão todos podiam cair juntos.

Digo que ele imaginava ter um pensamento tão poderoso que levaria as irmãs à falência, ao que me responde:

Paulo, eu sei que elas pensam que lucro a gente divide e que prejuízo eu tenho que aguentar sozinho, mas não tem importância. Resolvi dar um almoço para meus 200 empregados, alguns deles crianças. Estavam passan do fome. Eu não posso mais ver criança na rua passando frio. Me dá muita pena. Eu tinha raiva deles. Mas vou ajudá-los! As crianças nas ruas - é preciso uma modificação nisso para que eu possa parar de fumar. Senão eu não paro de fumar. Sem fazer alguma coisa para as crianças, como vou poder gostar de mim e conseguir parar de fumar?

Em O mal-estar na civilização, de forma muito realista, Freud questiona o segundo mandamento dizendo:

Se devo amá-lo (com esse amor universal) porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, só uma pequena quantidade de meu amor caberá ... a esse estranho indigno de meu amor. ... ele tem mais direito a ... meu ódio. (1930/1974, pp. 130-131)

A maioria dos seres humanos lida com o próximo dessa maneira terrível. Meu paciente mostra que a pessoa tratada como inseto ou serpente, que precisa ser salva, é não apenas o irmão e a irmã, mas os que estão lá fora, jogados na rua para morrer de frio, de falta de amor, que o representam internamente, ameaçado de morte se não encontrar partes adultas amorosas, dele e do analista, dispostas realmente a alimentá-lo e ajudá-lo com a análise, para assim reintegrar e recriar uma imagem interior de mãe dadivosa.

O paciente está enfrentando a voracidade de um capitalismo selvagem. É um processo, um jogo de realizações, de reparações externas e internas, de desenvolvimento do sentimento de segurança e capacidade. Diminuindo sua voracidade, sua rivalidade e seu ódio para com os irmãos, talvez consiga não tratá-los como insetos, minhocas e serpentes. Com isso, pode aliviar a culpa e a perseguição internas e ver possibilidades de não ter que se atacar internamente e continuar se cancerizando. Alimentando os funcionários, realizou um reencontro com a mãe: pôde integrar em si um seio nutridor, a imagem de uma mãe boa.

Não somos como o girassol, que está só à procura de sol e amor. Nós desenvolvemos luz própria para iluminar nosso piccolo mondo, e assim, iluminando os outros, iluminamos a nós mesmos. Se nós somos um locus de atividade amorosa - e todos o somos, uns mais, outros menos -, nossas missões são amplíssimas. Entre elas está a de lidar com o sofrimento, a miséria, a injustiça à nossa volta e no mundo, bem como com a falta de amor para com os outros seres humanos e para com nós mesmos, desenvolvendo desse modo a bondade em nós e nos outros, para diminuir o sofrimento e, se possível, conquistar algum prazer na existência.

 

2. O melhor dos mundos

A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade e, em si mesmo, é de não pequena importância.
(Sigmund Freud)

O freudismo é parte da utopia estoica da cidadania mundial, na medida em que contribui mais que qualquer outro estilo de pensamento para a ideia de unidade do gênero humano. Em carta a Einstein, Freud escreveu que a essência mais profunda do homem consiste em excitações pulsionais de caráter elementar, que são idênticas em todos os homens.
(Sergio Paulo Rouanet)

Não é verdade que a mente humana não tenha passado por qualquer desenvolvimento desde os tempos primitivos e que, em contraste com os avanços da ciência e da tecnologia, seja hoje a mesma que era nos primordios da história. Podemos assinalar de imediato um desses progressos mentais. ... Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua cultura e mais ela pode passar sem medidas externas de coerção.
(Sigmund Freud)

Como vemos, Freud admite até a transformação de opositores em veículos da civilização. Damásio mostra um contraexemplo clássico:

Na Alemanha e na União Soviética, durante os anos 1930 e 1940, na China, durante a Revolução Cultural, e no Camboja, durante o regime de Pol Pot, para mencionar apenas os casos mais óbvios, uma cultura doentia predominou sobre uma maquinaria normal da razão, com consequências desastrosas. (1994, p. 211)

Essa terrível cultura doentia domina as prisões, as favelas e muitos locais da periferia brasileira, onde estamos transformando seres humanos em veículos da barbárie. Apesar de todos os sofrimentos em grandes segmentos da sociedade contemporânea, Karl Popper, da Escola de Economia de Londres, escreveu:

Aqui no Ocidente - eu sei que existe também um Terceiro Mundo, onde as coisas são diferentes - vivemos, em termos relativos, no melhor mundo, no mais justo, mais solidário que jamais houve na história: num mundo livre, num mundo onde temos as maiores possibilidades, num mundo onde podemos falar livremente. Um mundo como nunca antes houve. Queria ainda acrescentar que as virtudes do nosso mundo foram em parte geradas por marxistas. ... Todavia muitos intelectuais pensam, atualmente, que vivemos num mundo miserável. E isso não só é dito insistentemente aos jovens como também lhes é inoculado, inculcado. Ora, é evidente que no nosso mundo o bem e o mal coexistem. Seria absurdo afirmar que não podemos aperfeiçoar o nosso mundo. É nosso dever e dever dos jovens continuarmos a melhorar o nosso mundo - melhorá-lo realmente, e não degradá-lo. Se os jovens olharem o mundo com uma atitude de que é um mundo miserável, detestável, tornar-se-ão desse modo infelizes - eles próprios vivem infelizes num mundo que é maravilhoso, e estou a pensar, por exemplo, na Áustria. Mas vivem igualmente com ingratidão num mundo em que teriam missões importantes a cumprir, em que há muitas coisas a aperfeiçoar, em que existem homens que sofrem e que necessitam de ajuda. (1983, p. 89)

Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou o Relatório mundial sobre violência e saúde. O preâmbulo é de Nelson Mandela, um mestre no assunto:

Muitos dos que convivem com a violência dia após dia assumem que ela é parte intrínseca da condição humana, mas isso não é verdade. A violência pode ser evitada. As culturas violentas podem ser modificadas. Em meu próprio país e em todo o mundo, temos exemplos notáveis de como a violência tem sido combatida. Os governos, as comunidades e os indivíduos podem fazer a diferença. (p. IX)

Nesse relatório, especialistas em violência em todo o mundo, escolhidos pela oms, abordam o tema com profundidade, adequação e dados expressivos. Etienne Krug e Linda Dahlberg escrevem: “A violência pode ser evitada. Não se trata de uma questão de fé, mas de uma afirmação baseada em evidências. Podem-se encontrar exemplos bem-sucedidos em todo o mundo” (2002, p. 3).

Steven Pinker, psicólogo e linguista, defende ardorosamente esta posição, expressa no relatório da OMS e em seus livros:

Este livro [Os anjos bons da nossa natureza] trata de um acontecimento que pode ser o mais importante de toda a história humana. Acredite se quiser - e sei que a maioria não acredita -, a violência vem diminuindo desde o passado distante, e hoje podemos estar vivendo na era mais pacífica que nossa espécie já atravessou. É verdade que esse declínio não tem sido uniforme, que ele não zerou a violência e que não há garantias que continue. Mas o avanço é inconfundível, visível em escalas que vão de milênios a meros anos, das guerras até o castigo físico das crianças. (2014, p. 19)

Pinker mostra dados estatísticos fulminantes, além de lembrar dados gerais, insofismáveis, como o fim da escravidão negra no mundo, a defesa da mulher oprimida e a luta a favor das minorias, contra o racismo, contra a miséria e contra os absurdos desníveis entre os seres humanos. Apenas em relação aos homicídios: em Londres, no ano 1200, a taxa era de 100 homicídios por 100 mil habitantes; no ano 2000, a taxa era de 1 homicídio por 100 mil habitantes.

No Brasil, a taxa de homicídios é 30 vezes maior do que na Europa (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2018). No Relatório mundial sobre prevenção da violência 2014, afirma-se: “As taxas de homicídio vêm declinando rapidamente em países de alta renda, porém mais lentamente em outros lugares” (oms, 2015, p. 12). Mostra-se ainda que, entre 2000 e 2012, as taxas globais de homicídio nos países de alta renda diminuíram 16%, nos de renda média 13%, e nos de baixa renda 10%.

Embora Pinker insista no fato de que está apenas realçando um dado de observação, o de que estamos 73 anos sem guerra declarada entre grandes nações, e que apesar disso não há garantia nenhuma de que a paz vá se manter, pois continuamos num mundo com gravíssimos conflitos, a observação da longa paz entre as grandes nações despertou severas críticas e também aplausos de inúmeras fontes. Nassim Taleb e Pasquale Cirillo, por exemplo, afirmam:

Infelizmente, ainda temos que esperar algum tempo para dizer que estamos vivendo numa era mais pacífica. Os dados reais que temos não são a favor nem contra uma mudança estrutural na violência, quando lidamos com baixas de guerra. Muito simplesmente: não podemos dizer. (2016, p. 16)

Parece-me que os autores, em sua crítica às estatísticas de Pinker, abordaram a violência exclusivamente sob o prisma das guerras. Citando Robert Castel, Zygmunt Bauman observa que “nós, pelo menos nos países que se dizem avançados, vivemos em sociedades que, sem dúvida, estão entre as mais seguras que já existiram” (2005, p. 13).

Leibniz criou a célebre frase de que vivemos “no melhor dos mundos possíveis”, que Voltaire entendeu como a aceitação de um status quo conformista e, por isso, a satirizou implacavelmente. Leibniz, que “foi enterrado como um ladrão”, acompanhado apenas por seu secretário, “rompeu com o sentimento de que a civilização estava sofrendo o declínio contínuo e inevitável de uma Idade de Ouro anterior” (Hellman, 1998, p. 88).

Da mesma Escola de Economia de Londres que era tribuna de Popper, vem a voz do filósofo contemporâneo John Gray, radicalmente oposta a Pinker e a Popper:

Incapazes de encarar a perspectiva de que os ciclos de guerra continuarão, estão desesperados por encontrar um padrão de aperfeiçoamento na história. Não deixa de ser natural que aqueles que acreditam na razão, carecendo de qualquer fé mais profunda e fracos demais para tolerar a dúvida, se voltem para a feitiçaria dos números. Felizmente há quem se disponha a ajudá-los. Assim como o mago elisabe-tano transcrevia tabelas mostradas pelos anjos, a bola de cristal científica moderna decifra presságios de anjos ocultos em nós mesmos. (2018, p. 72)

O fato extraordinário é que David Hume, depois de proclamar aos quatro cantos do mundo, urbi et orbi, que “a razão é e deve ser a serva das paIXões”, escreveu também algo que não é tão divulgado, mas que Pinker foi buscar:

É inquestionável que existe alguma benevolência, ainda que pequena, infundida em nosso peito; alguma centelha de amizade pela espécie humana; alguma partícula de pomba misturada em nossa estrutura, junto com elementos de lobo e de serpente. Deixemos que se suponha que esses sentimentos generosos são tão fracos que são insuficientes para mover sequer uma mão ou mesmo um dedo do nosso corpo; eles, mesmo assim, ainda podem dirigir as determinações de nossa mente e, onde tudo o mais seja igual, produzir uma tranquila preferência por aquilo que seja útil e aproveitável para a humanidade, acima do que seja pernicioso e perigoso. (2014, p. 765)

Bion segue a mesma linha de pensamento de Hume:

Portanto, os axiomas da lógica têm suas raízes na experiência de uma razão que fracassa em sua função primária de satisfazer as paixões, do mesmo modo que a existência de uma razão poderosa pode refletir uma capacidade dessa função de resistir às investidas de seus senhores frustrados e ultrajados. (1963/2004, p. 49)

Somos seres humanos, com a capacidade de ter uma razão, com todas as limitações conhecidas e desconhecidas, mas não somos lobos nem serpentes, embora possamos, por questões nossas ou pressionados pelo meio ambiente, pressões leves ou pesadíssimas, ser veículos da civilização ou da barbárie, transmudar de pombas em lobos, o que já aconteceu muitas vezes e, em algum lugar, está ocorrendo agora, por certo. Mas o contrário também pode acontecer, virarmos de lobo em cordeiro ou pomba.

Demonstrando uma magnífica perspectiva do mundo atual, Norbert Elias escreveu:

Reclamamos das imperfeições das atuais instituições centrais da humanidade, como a onu, tratando-as como se representassem um estado final. Não nos assombramos com o fato de simplesmente haverem surgido tais instituições globais. Não vemos nelas sintomas de um processo que se move em determinada direção e que abrange toda a humanidade, e que são estágios num processo de aprendizagem. ... Foram necessárias duas guerras mundiais para dar vida às frágeis instituições. ... Há muitos sinais da emergência de um novo sentimento global de responsabilidade pelo destino dos indivíduos desvalidos, independentemente de seu Estado ou tribo. ... As campanhas em prol dos direitos humanos decerto extraem parte de seu ímpeto dos interesses políticos da luta entre as grandes potências. (1994, pp. 138-139)

Norberto Bobbio pensa de outra maneira. Ele considera o homem despreparado para lidar com a “arma total”, a bomba atômica, “que chegou cedo demais para a rusticidade de nossos costumes”. Não obstante isso, afirma:

Mesmo se houvesse um milésimo de milésimo de probabilidade que um grãozinho, levado pelo vento, terminasse na mais delicada das engrenagens para deter o seu movimento, a máquina que estamos construindo é demasiado monstruosa para que não valha a pena desafiar o destino. (2003, p. 115)

Chomsky, inesperadamente, é taxativo quanto às mudanças:

Houve mudanças tremendas com os anos, e elas não vieram de presente. Vieram de ativismo constante, que está aqui, crescendo, com essas manifestações. Acho que esses são sinais de esperança. Olhando para as diferenças entre ontem e hoje, é um mundo muito diferente. (2018)

É possível que se tenha dificuldade em observar um fato que, para alguns, parece evidente, ou seja, o fato de que a maioria dos seres humanos vive uns com os outros, sem violência, e que além disso cria e desenvolve comunidades de forma unida e pacífica. Uma estatística bem simples pode ser feita por nós mesmos: dificilmente algum de nós, ou de nossos amigos e conhecidos, cometeu qualquer ato marcado pela violência que não tenha sido em defesa própria ou involuntário. Sem dúvida, muitos de nós e de nossos familiares e amigos já sofreram as marcas da violência. Uma pessoa violenta, além de ser um foco de irradiação de violência, vale por 10, por 100, por milhares. Provavelmente “um impulso ao ideal constitua uma parte essencial de nossa natureza”, como Freud admitiu na carta a Putnam (Jones, s.d., p. 434).

Em “Dez mil gestos de gentileza”, o antropólogo S. J. Gould afirma:

O que vemos num dia comum, nas ruas ou nos lares de qualquer cidade americana - e até mesmo nos trens do metrô de Nova York? Milhares de pequenos e insignificantes gestos de gentileza e consideração. ... Só estou falando de uma questão estatística. (1993, p. 289)

Em Modernidade líquida (2001), Bauman refere-se ao economista Paul Bairoch, que diz ter sido a renda per capita da Europa ocidental no século XVIII apenas 30% mais alta que a da Índia, a da África ou a da China daquela época. Em 1870, já era 11 vezes maior e, em 1995, 50 vezes maior em relação à desses locais.

O economista francês Thomas Piketty escreveu O capital no século XXI, obra em que faz um histórico da evolução do capital e uma dura crítica às desigualdades sociais, sugerindo a adoção de um “imposto progressivo anual sobre o capital” (2014, p. 556), o que implicaria transparência absoluta de todos os ganhos e, consequentemente, fim dos paraísos fiscais e das desigualdades fiscais entre os diversos países do mundo. Dessa forma, a onu se tornaria diferente: o dinheiro é que seria bloqueado, e não os alimentos. Dinheiro bloqueado é dinheiro parado, e dinheiro parado não rende, nem na China.

Em 1962, na Crise dos Mísseis de Cuba, em que os Estados Unidos e a Rússia quase foram à guerra atômica, um capitão soviético, num submarino avariado, que havia perdido contato com o mundo por uma semana, deu o único, salvador e decisivo voto contrário ao lançamento de torpedos atômicos contra navios americanos. Eram necessários três votos a zero para o lançamento ser realizado. Ficou em dois a um porque Vasili Alexandrovich Arkhipov, o herói mundial, resistiu e disse não. Por isso estamos vivos. Acrescentemos outro herói, Stanislav Petrov, que considerou falsa a imagem de cinco mísseis americanos sendo lançados contra a Rússia.

No entanto, não podemos ficar na dependência de heróis assim. Na época, vivíamos num mundo mais tenso e excitado do que o excitadíssimo mundo atual, com um medo imenso de uma guerra atômica. Estados Unidos e Rússia estavam num confronto ameaçador. Com todo o seu prestígio e idade, Bertrand Russell fazia greves sentando-se nas ruas de Londres; era preso, mas não desistia. No meio psicanalítico, Hanna Segal não descansava. Hoje os grandes países do mundo estão cercando a perigosíssima Coreia do Norte. Enquanto isso, os Estados Unidos estão envolvidos numa guerra de hackers eleitorais com a Rússia e numa guerra comercial com a China. Tudo isso, claro, pode ser o estopim de uma guerra mundial, atômica. Arkhipov e Petrov já faleceram. Pensávamos que o botão atômico só pudesse ser acionado pelo presidente dos Estados Unidos ou pelo da Rússia ou a mando deles. Era mentira!

Pode parecer indigno de que seja por medo de um horror atômico que estejamos comemorando esses 73 anos sem guerra entre grandes nações. Isso não é completamente verdade, pois durante quatro anos os Estados Unidos tiveram sozinhos a arma e não a usaram, após o terror de Hiroshima e Nagasaki. Mas também é verdade que é por medo que o mundo não se lança numa guerra total. O medo é uma defesa natural e essencial do ser humano. Nos anos 1950, Bertrand Russell e Hanna Segal, por medo, levantaram o mundo contra a bomba, sensibilizaram Kruschev e Kennedy, e possivelmente influenciaram os dois heróis mundiais, Arkhipov e Petrov. O amor à humanidade pode ser outro motivo de razoável importância para não haver guerra entre grandes potências.

Se conseguirmos convencer os outros dois capitães do submarino de que o mundo não é aquele de 1962, de que houve uma série de mudanças fundamentais, apesar de Trump e Putin, e de que já existe certa relação diplomática entre Estados Unidos e Cuba, teremos feito algo. Acabou o apartheid na África do Sul. Hitler, Mao e Stalin morreram. Em compensação, temos um conflito na Síria, e várias regiões sofrem dramaticamente com guerras e mais guerras, mortes e mais mortes, contexto que produz centenas de milhares de refugiados. Há, porém, uma diferença: esses países em conjunto, incluindo o restante do planeta, com todas essas guerras, não atingem nem de perto os 11 milhões de mortos por ano da Segunda Guerra Mundial. O mundo conseguiu diminuir imensamente o número de mortos em guerras. Essas mortes são lastimáveis, esse fato é horrendo, mas mesmo em toda a Guerra Fria não houve jamais nada que se aproximasse de 55 milhões de mortos em cinco anos. E foram mais de 45 anos de Guerra Fria, de 1946 a 1991. Era guerra fria...

Para John Gray (2018), todo esse período, até hoje, seria de guerra perpétua. É possível compreender o mundo assim, e não como uma longa paz entre as nações mais poderosas do mundo, de 1945 até hoje: 73 anos! Gray observa que estamos na mesma situação de 1939, e complementa com ironia afirmando que todas essas guerras são ninharias que reconfortam “crentes ansiosos quanto à capacidade humana de autoaperfeiçoamento” (p. 70). Não, Gray, não são ninharias, são guerras terríveis; apenas não envolvem diretamente os grandes países da Europa, o Japão, a China e outras grandes nações. Não é uma Terceira Guerra Mundial ainda. “A guerra mudou, mas não se tornou menos destrutiva”, diz Gray, e cita a guerra da Síria, com seus “massacres sectários” (p. 67), e outras guerras por procuração. Mas imaginemos se a Europa toda estivesse em guerra uns contra os outros, o terror que estaríamos vivendo. Lembremos que na Segunda Guerra Mundial até o Brasil enviou tropas para lutar na Europa.

Dresden, a Florença do Elba, foi arrasada em 1945 pela aviação aliada. Os cálculos vão de 25 mil a 500 mil civis mortos na carnificina. Há estimativas das duas possibilidades, 25 mil e 500 mil, mesmo sendo relativamente recente o “episódio”. Tenebrosa carnificina!

Talvez seja contentar-se com pouco considerar o mundo atual, não obstante as guerras presentes, como de uma longa paz, mas vejo diferença entre 11 milhões de mortos por ano e 600 mil mortos e 1 milhão de refugiados em seis anos, como na atual guerra da Síria. Sei que há outras guerras hoje, mas 11 milhões de mortos por ano é um número horrorizante.

Se não procurarmos ver a diferença de magnitude da violência, deixaremos de estudá-la. Um dos meios de conhecê-la são as estatísticas de guerra, que tentam espelhar a realidade do que se passou, cientes da grande limitação dos números. Os estatísticos vivem aperfeiçoando suas técnicas, como nós, na imperfeita psicanálise.

 

3. Good feelings e a virada ética na psicanálise

Salman Akhtar, psicanalista indiano formado em Nova York, coordenou o livro, editado pela Associação Psicanalítica Internacional, Good feelings: psychoanalytic reflections on positive emotions and attitudes (2009). Inicialmente Akhtar reclama de a psicanálise não dar atenção aos bons sentimentos e mostra o pessimismo de Freud em relação ao ser humano. Depois, porém, observa que “o severo teórico que dizia que a finalidade da vida seria a morte também propôs o glorioso conceito de instinto de vida” (p. XXVII). Apoiando-se nos autores clássicos da psicanálise, ele vê nas pulsões de vida e de morte os fatores que envolvem os grandes conceitos de bondade e maldade. “Para ser mais preciso, ambos - bondade e maldade - surgem como componentes essenciais da natureza humana, que podem ser intensificados, diminuídos, redirecionados e modificados por primitivos estímulos ambientais” (p. XXXII) - e também, acrescentamos, pelas experiências de vida no sentido mais amplo possível.

A obra Good feelings contém estudos sobre coragem, criatividade, entusiasmo, fé, perdão, amizade, humor, amor, resiliência e tato. Esses temas são desenvolvidos no livro por diversos autores, como Ralph Greenson, Susan Levine, Michael Eigen, Sérgio Lewkowicz, Warren Poland, Otto Kernberg, Leo Rangell, Alessandra Lemma e Peter Fonagy.

Melanie Klein mergulhou nossa alma no perdão aos pais e a nós mesmos: “Se no mais fundo do inconsciente conseguirmos superar os rancores contra nossos pais e lhes perdoar as frustrações que tivemos de suportar, poderemos então viver em paz com nós mesmos e amar aos outros no verdadeiro sentido da palavra” (1937/1977, p. 343).

Steuerman (2003) mostra que a grande mudança na filosofia contemporânea teria sido uma virada ética. Segundo a autora, a teoria kleiniana realizaria “na psicanálise uma mudança de paradigma similar à da filosofia atual” (p. 19). A perspectiva de Klein permitiria compreender, ver e pensar a outra pessoa como um outro. Steuerman menciona as ideias de Alford (1989), para quem o amor em Klein seria menos Eros e mais caritas: amor que vai além do interesse próprio e tem uma preocupação genuína com o outro como Outro. Ela conclui: “Nosso cuidado e preocupação com os objetos internos e os sujeitos externos é o que cria a possibilidade de felicidade nos mundos interno e externo” (p. 118).

Vale notar que em 1974, três décadas antes do livro de Steuerman e antes também de Alford, Danilo Perestrello desenvolveu o que chamou de medicina da pessoa, através da qual propunha uma psicanálise mais ampla. Ele dizia: “Não há medicina sem caritas. Sua verdadeira tradução é amor. Sem isso não há medicina, e quem tiver o privilégio de poder amar terá a condição básica para, intuitivamente, estabelecer uma compreensão profunda com seu paciente” (1974, p. 163).

Num trabalho de 1993, focalizamos o perdão e sua relação com a felicidade. Retomamos Hannah Arendt, que em A condição humana defende ardorosamente a necessidade do perdão para nos libertarmos da prisão da vingança:

O que Hannah Arendt está dizendo é algo que se relaciona e se integra completamente na realidade da relação psicanalítica. É possível que seja do perdão que se esteja a tratar o tempo inteiro da análise, para que possamos nos libertar dos grilhões da vingança, principalmente em relação a nossos pais, ou quem nos tenha cuidado, e também às falhas deles ou nossas. (p. 430)

A semente lançada por Perestrello, numa visão kleiniana, permitiu uma evolução que integrou o amor caritas e o perdão, fatores que poderiam levar a um aumento da capacidade intuitiva e à ampliação do acesso à felicidade.

Em “Freedom and forgiveness” (2003), Marcia Cavell estudou o valor do perdão na psicanálise. Diz a autora que a psicanálise está repleta de questões éticas, entre elas o perdão e a gratidão. Termina assim o artigo:

Nós não podemos modificar o passado, mas podemos lembrá-lo, entendê-lo e contá-lo diferentemente, o que pode modificar o modo como vivemos nossa vida agora, precisamente porque somos esse tipo de “coisa” no universo que tem mente e que algumas vezes faz coisas motivada por razões, faz escolhas e também pede e recebe perdão. (p. 529)

 

4. União Europeia: uma utopia concretizada

A União Europeia começou através de um tratado comercial, em 1951. A Guerra Fria estava no auge. Era necessário que França e Alemanha reconstruíssem uma relação pacífica, de respeito, por meio de um extraordinário perdão. Sem o perdão mútuo dado pelos milhões de franceses e alemães e por todos os povos europeus, não seria possível uma reconstrução de tal porte e tão duradoura. Mais de meio século se passou, e muitos países entraram na União Europeia. O bloco, que começou com apenas seis membros (Alemanha, Itália, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e França), tem atualmente 28.

A União Europeia criou o Parlamento Europeu, a União Econômica, uma moeda única (o euro), o Tratado Europeu e seu braço normativo, a Comissão Europeia. A infração ao artigo 7.° do Tratado Europeu leva à perda do direito de voto no Parlamento Europeu e ao corte nos fundos do bloco, algo precioso para todos os membros.

Outros fenômenos vêm se desenrolando no mundo: o aumento extraordinário de nosso tempo de vida, a queda da mortalidade infantil, a luta pelos direitos humanos, o progresso da medicina, a explosão das comunicações e das diversões, a ampliação das possibilidades de cultura, a mobilidade e a diversidade dos transportes, o desenvolvimento astronômico da tecnologia e, junto a isso, o aterrorizador desenvolvimento e multiplicação de armas de guerra e de países que têm a bomba! O pavor de ver a Europa se transformar numa Hiroshima provavelmente facilitou o perdão. Talvez o medo atual iminente seja em relação à Coreia do Norte, e por isso ainda não houve guerra por lá. Com ela, o medo é maior.

Além desses fenômenos, há também um movimento mundial extraordinário: até agora 184 das pessoas mais ricas do mundo se comprometeram a doar mais da metade de sua fortuna para causas filantrópicas; até o momento são 184 bilionários dispostos a “devolver” (palavra deles) 375 bilhões de dólares aos pobres do mundo, campanha denominada The Giving Pledge. Podemos citar ainda os projetos Médicos Sem Fronteiras e Oportunize, a Dra. Zilda Arns, os prêmios Nobel da Paz concedidos a Malala e à mocinha estuprada, Nadia Murad, fatos que expressam movimentos de vida cuja grandeza, dimensão e consequência não podemos dimensionar ainda.

Há aspectos pontuais em qualquer política (a arte de governar os povos, segundo Aristóteles) que precisam ser enfrentados. Nosso país tem problemas - a condição dos presos, por exemplo - que não podem continuar como estão. É algo indigno para todos nós. Brizola construiu os Brizolões em razão do excesso de crianças sem escola no Rio de Janeiro. Algo semelhante poderia ser feito para presos menos perigosos, bastando cercar essas “prisões de garantia mínima”, por isso baratas e de rápida construção, com um muro de garantia razoável, desafogando assim os presídios. Brizola e Niemeyer fizeram...

Não podemos continuar prendendo nossa juventude apenas por causa da maconha. O grande mal que a maconha provoca é servir de justificativa para uma repressão mortífera, em que tiroteios se sucedem, balas perdidas ceifam vidas, policiais e traficantes mergulham numa rotina sem fim de mortes e mais mortes, para proteger o usuário de fumar maconha. Ele não quer essa “proteção”. A maconha é fumada na Espanha, em Portugal e em muitos outros países do mundo. Nos Estados Unidos (em nove estados), no Uruguai e no Canadá, a maconha já foi liberada e legalizada, sem nenhuma comoção. No Brasil, em 2006, foi instituída uma nova lei, supostamente mais liberal, mas até 2013 houve um aumento aterrador de presos por tráfico: 339%! De 31 mil presos passamos para 138 mil. A Lei Seca americana é o melhor exemplo para verificar o fracasso da repressão.

O “trabalho” do bebê é brincar. Com os anos, porém, a criança passa a ter deveres maiores, e isso implica estudar. Ou seja, a criança de 11 ou 12 anos em diante que cumpre o dever de estudar está realizando um trabalho e, por isso, se for pobre, merece receber do Estado um pagamento mensal em dinheiro. Ao Estado cabe também proporcionar a ela estudo em tempo integral. É a Bolsa Criança Estudiosa, agregada à Bolsa Família, especificando-se que é em virtude do trabalho da criança e da aprovação obtida nos estudos que ela recebe esse pagamento. O foco seria a criança tornar-se estudiosa. Esses gastos seriam pequenos diante do dispêndio que a nação teria se ela mergulhasse nas sendas do crime. Educação e cuidado com a criança e o adolescente estariam conjugados.

Há mais de 140 anos, não guerreamos com nenhum país. Podemos diminuir a dimensão de nossas Forças Armadas e utilizar sua imensa capacidade técnica, humana e patriótica para atender a população no âmbito da criminalidade: são 60 mil brasileiros mortos por ano. As Forças Armadas precisam defender o país dessa mortandade. Participar com a polícia na proteção do país é algo obrigatório.

Habermas tem defendido de forma admirável a União Europeia e proposto a ampliação do projeto europeu para o mundo. Parece que a audácia da experiência europeia e a vitória da utopia contra todos os pessimistas e derrotistas fazem Habermas oferecer ao mundo uma mensagem de união e integração tão extraordinária que se pode imaginar o mundo todo unido.

A luta do povo inglês por um novo referendo em relação ao Brexit, mesmo se for derrotada, é uma mensagem extraordinária de que a noção de país isolado por medo de se integrar com os povos vizinhos não é tão dominante. É mais um movimento para levar os países em direção a uma sociedade mundial constituída politicamente, noção de tal maneira plantada no coração e na mente de tantos seres humanos que esse mundo futuro, entrevisto na União Europeia, em breve será realidade em todo o planeta. Se não for neste século, será no próximo. Assim, os seres humanos dos outros países deixarão de ser tratados como insetos, minhocas ou serpentes. Serão irmãos com amor.

Em 1946, Churchill propôs a criação dos Estados Unidos da Europa. Num discurso de 9 de maio de 1950, Robert Schuman, ministro do Exterior da França, abordou a ideia da união política da Europa, tornando então o 9 de maio o Dia da Europa.

Magnificamente, Habermas expõe suas ideias centrais:

A perspectiva de uma sociedade mundial constituída politicamente perde algo de sua aparente utopia quando nos lembramos que, há poucas décadas, a retórica e a política dos direitos humanos desenvolveram efetivamente uma eficácia global. Já desde os dias da Revolução Francesa revela-se implicitamente na diferença plena de tensão entre os direitos do cidadão e os direitos humanos a pretensão a uma imposição global de direitos iguais para cada um. Essa pretensão cosmopolita significa que o papel dos direitos humanos não pode se esgotar na crítica moral das relações injustas de uma sociedade mundial altamente estratificada. Os direitos humanos dependem de sua incorporação institucional em uma sociedade mundial constituída politicamente [itálico nosso]. (2012, p. 5)

Nesse jogo de xadrez internacional, o Brasil e a União Europeia poderiam dar o grande passo. Se o Brasil aceitar e propuser o desejo de integrar a união de Estados que a União Europeia representa, estaríamos desencadeando o processo de ligação da América com a Europa.

Cansado doutros esboços

Disse um dia Jeová:

“Vai, Colombo, abre a cortina Da minha eterna oficina...

Tira a América de lá”.

(Castro Alves, 1870/2012)

 

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Correspondência:
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Recebido em 28/11/2018
Aceito em 12/12/2018

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