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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Laços sociais de amparo: parentalidades em foco

 

Social bonds of support: Focusing on Parenthood

 

Lazos sociales de amparo: Parentalidades en foco

 

Liens sociaux d'appui: parentalité en relief

 

 

Alice LewkowiczI; Carmem KeidannI; Denise LahudeII; Flávia MaltzII; Joyce GoldsteinI; Luciana SeccoI; Maria Elisabeth CimentiIII; Mery WolffIII; Rosangela CostaII; Suzana FortesI

IMembro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
IIMembro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
IIIMembro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Com base em sua experiência em grupos de roda de conversa, as autoras apresentam o trabalho desenvolvido em Porto Alegre com educadores, adolescentes e pais, focalizando a questão dos laços de amparo presentes nas relações entre indivíduos de comunidades vulneráveis. À luz da contribuição teórica de pensadores contemporâneos, propõem a extensão do conceito de parentalidade em sua função protetora, partindo da família nuclear convencional rumo a outras organizações da comunidade capazes de exercer a função família. Através do relato de duas situações de grupo, ilustram o efeito família exercido por outras fontes.

Palavras-chave: psicanálise, comunidade, educação infantil, roda de conversa, função família


ABSTRACT

The authors and psychoanalysts present the work they developed in Porto Alegre with educators, adolescents, and their parents. This work was based in the authors' group experiences with “circle of conversation”. In this article, they emphasize the importance of classical concepts of Psychoanalysis. The authors deal with bonds of support that exist in the relationships between those who live in vulnerable communities. Based on the theoretical contribution of contemporary authors, the authors of this article propose the extension of the notion of parenthood in its protecting function, from the conventional nuclear family towards other ways of community organization, which can exercise the family function. The authors bring two group experiences of the partnership in order to illustrate the family effect of other sources.

Keywords: Psychoanalysis, community, child education, circle of conversation, family function


RESUMEN

A partir de una experiencia de trabajo en grupos de “ruedas de charla”, las autoras psicoanalistas presentan el trabajo desarrollado en Porto Alegre con educadores, adolescentes y sus padres. En este artículo, se resalta la importancia de presentar conceptos clásicos en psicoanálisis y confrontarlos a artículos contemporáneos. El grupo busca ampliar cuestiones teóricas, intentando amparar el pensamiento sobre los procesos vividos en este encuentro y la aceptación de la existencia de diferentes estructuras familiares y comunitarias. Los autores, a través del relato de dos situaciones registradas de la alianza pretenden continuar la reflexión sobre la importancia de esta experiencia de continuidad de este trabajo de gran riqueza, por su diversidad al englobar a personas, instituciones y grupos oriundos de áreas de alta vulnerabilidad social.

Palabras clave: psicoanálisis, comunidad, educación infantil, rueda de charla, función familia


RÉSUMÉ

Forts de leur expérience dans les groupes “Roda de Conversa” - Cercle de conversation -, les auteurs présentent un travail développé à Porto Alegre, avec des éducateurs, des adolescents et leurs parents, en abordant dans le présent article, la question des liens d'appui qui se trouvent dans les rapports entre les individus des communautés vulnérables. À la lumière de l'apport théorique des auteurs contemporains, les auteurs proposent élargir le concept de parentalité dans sa fonction de protection, en partant de la famille nucléaire conventionnelle vers d'autres organisations de la communauté capables de remplir la fonction familiale. Au moyen du récit de deux situations de groupe, vécues par les partenaires, elles illustrent l'effet famille exercé par d'autres sources.

Mots-clés: psychanalyse, communauté, éducation infantile, Roda de Conversa, fonction famille


 

 

Agora eu conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva.
(Clarice Lispector, A descoberta do mundo)

Constituímos um grupo de psicanalistas da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) que desenvolve, há mais de 10 anos, um trabalho com educadores, adolescentes e pais, oriundos de áreas de alta vulnerabilidade social da periferia de Porto Alegre. São pessoas que carregam um potencial traumático e estão sujeitas a pressões de diversas naturezas, desde o desmantelamento das famílias até a negligência e o abuso de suas crianças; que vivem num meio extremamente violento, mergulhado na ditadura do tráfico, com todos os riscos de vida implícitos. Fazemos rodas de conversa e nos disponibilizamos para a escuta, oferecendo a possibilidade da palavra verbal, não verbal e sensorial.

Nós nos encontramos desamparados em relação a conceitos capazes de abranger a complexidade das parentalidades dessa população. Mas a que desamparo e a quais parentalidades estamos nos referindo?

Alizade (2016) e Glocer Fiorini (2016), cada uma a seu modo, referendam o conceito de função, desconstruindo as definições clássicas em psicanálise de pai e mãe biológicos e de sua centralidade na constituição psíquica. Função, aqui, seria um articulador teórico que liga variáveis interdependentes, constituindo uma matriz operatória dotada do potencial de promover simbolização e capaz de transcender o domínio dos papéis atribuídos aos pais.

Glocer Fiorini traz outro aporte que nos parece constituir mais um eixo significativo. Ela demonstra que o patriarcado é uma construção histórica e propõe que se desvincule do pai a atribuição da função paterna, designando-a como função terceira. Tal atribuição extrapolaria as dicotomias empobrecedo-ras, tornando-a independente de quem a exerça. Considera a função terceira uma função operatória simbólica que, na história da civilização, esteve atada aos pais do patriarcado.

Essa autora propõe as paternidades e as maternidades multicêntricas. Trata-se de transcender a questão dicotômica mãe-natureza, por um lado, e pai-simbólico-cultural, por outro, e reconhecer uma função simbólica na mãe, que enquanto sujeito desejante e simbolizante carrega em si a capacidade de exercer as funções necessárias de separação e corte. O papel dos pais também se amplia, para além de sua função simbólica, até a capacidade de exercer cuidados. Parece-nos implícito que possibilitar a estruturação da alteridade é fundamental para o exercício da parentalidade.

Kantor (2016) observa que o fio condutor entre as relações de parentesco, historicamente falando, foi a interdição do incesto. No mesmo sentido, aponta a interdição como função parental, fundante da alteridade e, acreditamos, passível de ser exercida por um ambiente capaz de restaurar sua dimensão ética, não devendo necessariamente estar atada a um único sujeito.

De que maneira essas noções de parentalidades contemporâneas e o devir do mundo se articulam com as situações de vulnerabilidade e desamparo?

Viñar (2006) sublinha a gravidade da realidade social que vivemos na América Latina. É categórico ao afirmar que os seres que nascem frágeis e indefesos devem ser protegidos e socializados pelo mundo adulto. Recomenda a criação de espaços de fantasia e de sonho, que deem outra dimensão à subjetividade, estabelecendo novos vínculos e promovendo transformações em relações de mutualidade e reciprocidade.

Em alguns aspectos, nosso trabalho se assemelha à proposta de Viñar. Em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e Desporto (SMED) e com o Projeto Pescar, por meio de rodas de conversa com educadores, adolescentes e pais, desenvolvemos uma ação intersubjetiva em que a palavra, o olhar e a escuta seguem sendo elementos destacados.

A população com a qual trabalhamos enfrenta, no cotidiano e ao longo de sua história, condições de vida precárias, uma complexidade de sofrimento que resulta em dificuldades para a intervenção. Carballeda (2008) afirma que a desigualdade econômica e a incerteza se multiplicam e, a partir daí, convivemos com um mundo de injustiça, em que a esperança precisa ser restaurada e, a nosso ver, em muitas situações até criada.

Ora, reconhecer o outro e a diferença das desigualdades exige uma constante reflexão e urge que nos aproximemos dessas realidades. “Não se trata de detectar anormalidades, o discordante, o disfuncional, e sim iniciar outro caminho na busca de singularidades, ligadas aos talentos, perícias, destrezas que o outro possui de forma latente ou potencial” (Carballeda, 2008, p. 96).

Faz-se, então, necessário identificar e aceitar a existência de outras estruturas familiares e comunitárias, em sua riqueza e diversidade. Reconhecemos que nossa vigente tendência preconceituosa de comparar com o já vivido e o já conhecido perturba e dificulta a visibilidade da potência de uma nova realidade que se nos apresenta. Essa velho-nova realidade constitui pontas de iceberg, a emergência de fenômenos complexos subjacentes pouco ou mal conhecidos e difíceis de serem apreendidos, a um só tempo, no todo e em sua potência disruptiva sobre o social.

Na falta de uma disposição permanente e atenta, o risco é de deitar no “divã de Procusto” as possibilidades da(s) parentalidade(s). Contra isso, Carballeda (2008), Janin (2015) e Viñar (2006) sugerem propiciar espaços de encontro e diálogo entre diferentes campos de saber, que em cenários turbulentos e mutantes tratem de gerar ações subjetivantes.

Na tentativa de pensar as ideias levantadas até aqui, recorremos a um exemplo.

Através de reuniões mensais, acompanhamos os jovens do Projeto Pescar durante o ano em que realizam sua formação profissionalizante. Um grupo de adolescentes solicitou atenção particular para suas dificuldades emocionais. Oferecemos, então, psicoterapia breve por meio de cinco encontros. Decidiram que cada adolescente falaria um dia. No encontro apresentado, coube à jovem que chamaremos Tainá falar.

Ela diz que está triste porque a avó está doente. Conta que a mãe era agressiva com ela e que, certa vez, quando ainda era bem pequena, chegou a quebrar seus braços. Por causa disso, a avó a levou consigo e passou a criá-la. No momento, porém, está com diabetes e vai morrer. Ela se recusa a ir para o hospital. Tainá chora, e todo o grupo se comove com seu relato, tamanha a dor que demonstra. A avó sempre exerceu a função família para Tainá, e agora essa menina de 16 anos a está perdendo. Afirma que a avó é sua referência de vida.

Qual foi a ação subjetivante exercida nessa situação pela roda de conversa? Poder deixar-se tocar profundamente pela dor do outro vivida em grupo, acreditamos, proporcionou um significado profundo de compartilhamento com emoção, oferecendo mais espessura interna para suportar a dor. Pensamos que esse compartilhar pode permitir mais suporte para a vivência de desamparo e abandono iminente.

Pensando em parentalidades, acreditamos que houve uma pluralidade de ações subjetivantes na vida de Tainá, por parte da avó, da escola, do Projeto Pescar e da escuta do grupo de iguais. Como identificar, em nossos parâmetros e teorias, a função parental que Tainá traz dentro de si e que a levou até essa roda de conversa, em busca de possibilidades de elaborar os lutos e restaurar a esperança?

Na procura por pensamentos que nos amparem, retomamos Glocer Fiorini (2016). Ela diz que a palavrafamília se afasta da semântica para ampliar seu significado, englobando o todo não familiar que produz efeitos função família, função essa que se vincula com o que denomina de trabalho psíquico. A autora aborda ainda a questão das famílias não convencionais, estabelecendo uma distinção entre as categorias de diversidade e diferença.

A diversidade se refere à pluralidade de apresentações no âmbito das configurações familiares identificadas na atualidade, que incluem variações quanto a sexualidade, gênero, aspectos étnicos, religiosos, culturais e econômicos, como as encontradas nos relatos dos educadores, adolescentes e pais durante as rodas de conversa e em nossa atividade clínica privada. Acerca da diversidade apontada por Glocer Fiorini, cabe destacar que, na população com a qual trabalhamos, não se trata de um acontecimento novo, mas da diversidade que revela a mesmice da repetição própria da pobreza e da miséria socioeconômica, sempre vigente para grande parte dos latino-americanos.

A noção de diferença, por sua vez, remete ao valor simbólico. Sustentare em distintos planos - linguístico, sexual, de gênero, entre outros -, tendo como base o reconhecimento da alteridade. A família freudiana clássica é a família nuclear burguesa. Quando nos deparamos com as populações das comunidades periféricas, de que família estamos falando? Quais as parentalidades que amparam e quais as que não? Quando falamos em reprodução assistida, em novas formas de reprodução, sabemos que, ao menos nos moldes de hoje, tais práticas não atingem essas populações. É possível que o façam num momento posterior, em que os métodos se tornem comuns e economicamente acessíveis. E quando falamos de novos arranjos familiares, de monoparentalidades e de outras, estaremos nos referindo a todas as camadas sociais?

Berenstein (1988) propõe que pensemos a família como estrutura. Apresenta o termo nexo familiar como um conceito envolvido no funcionamento do grande grupo que engloba as inúmeras pessoas unidas por laços de parentesco e as que se consideram integrantes dele por meio de outros laços. As relações das pessoas dentro de um nexo se caracterizam pela influência direta, intensa e duradoura, na experiência e na conduta, de uns sobre os outros. Segundo o autor, o nexo pode ser depreendido através do estudo, desde fora, das pessoas e de suas relações dentro do grupo, constituindo estruturas, processos e efeitos enquanto sistema, sendo prescindível que o nexo seja concebido pelo conhecimento ou mesmo experimentado por seus integrantes.

Essas questões nos remetem à complexidade de captar a função parental possível e disponível em determinados meios socioeconómicos. Quando pensamos nas diversas organizações familiares com as quais nos deparamos no trabalho com educadores, adolescentes e pais, é surpreendente verificar a variedade de ações de que são capazes para amparar suas crianças e seus adolescentes.

Entretanto, em relação a essas crianças, por se encontrarem em condições de vulnerabilidade social, nos perguntamos: como podem constituir um ideal de ego e formar ideais se o ambiente social não oferece uma representação de futuro - se vivem o próprio presente tentando sobreviver? Se alguém sente que não tem lugar nem espaço no imaginário social, que não há um projeto de mudança possível, fica reduzido a uma sobrevivência em que se dá a renúncia do ser (Janin, 2015).

Se um sujeito em crescimento, que busca um exterior a si mesmo e a seu entorno que lhe garanta um lugar, encontra a ameaça de ser destituído como ser pensante, com o mandato social de submeter-se à exploração e/ou à exclusão, que tipo de organização psíquica pode advir? As crianças e os adolescentes se identificam com os pais ou cuidadores. Se estes, porém, estão deprimidos, angustiados, e recorrem à violência como modo de ser para sobreviver, que possibilidades têm essas crianças e adolescentes de armar uma representação de si diferente (Janin, 2015)?

Pensando nisso, nos ocorreu uma situação vivenciada numa roda de conversa com educadores numa das escolas infantis em que trabalhamos na parceria SMED-SPPA. Primeiramente, descreveremos como funciona uma roda de conversa, a metodologia utilizada nos grupos da parceria.

Os participantes da smed sugeriram a denominação rodas de conversa, e os membros da SPPA aderiram a ela. Os temas a serem discutidos em cada ciclo de oito encontros são definidos conforme a necessidade manifestada pelos integrantes da smed e acordados com os psicanalistas participantes, a partir de um consenso sobre o foco central e a distribuição dos assuntos. A cada encontro, um educador apresenta ao grande grupo uma situação - estímulo que ilustra o assunto a ser tratado. Depois, educadores, assessores e psicanalistas são divididos em subgrupos e se reúnem para conversar. Nesse espaço, a discussão pode ocorrer livremente.

Os educadores trazem para o grupo suas vivências pessoais e profissionais, além dos afetos mobilizados pelo contato direto com as crianças e suas famílias e também com os colegas de trabalho. Os psicanalistas, por sua vez, buscam uma escuta psicanalítica e a manutenção do setting, um espaço para pensar, capaz de gerar simbolizações que, a partir da confiança estabelecida, modifiquem a forma de lidar com manifestações do sofrimento da vida cotidiana e da não compreensão interna. Esclarecida a metodologia, passemos ao relato da situação antes mencionada.

Maria, educadora do berçário, queixa-se de uma família que, numa segunda-feira, trouxe o filho de 1 ano com a mesma fralda com a qual ele havia ido para casa na sexta-feira anterior, o que causou à criança uma extensa assadura. Esse relato provocou reverberações no grupo, fazendo-se ouvir, de imediato, expressões e comentários de indignação e rechaço dirigidos aos pais, em razão de sua incapacidade de atender às necessidades mais básicas da criança.

Num primeiro momento, em sintonia com a indignação das educadoras, poderíamos pensar estar diante de um exemplo de incapacidade absoluta dos pais de exercer sua função família. De um ponto de vista sociocultural, seria pertinente essa conclusão. No entanto, fazendo valer as ideias que nos propomos discutir aqui, não estaríamos diante de uma escola exercendo sua função família, reivindicando e proporcionando os cuidados básicos, que incluem o conceito de alteridade? E não estaria essa família, aparentemente tão incompetente no exercício do papel esperado por nós e pelos educadores, fazendo-o, dentro de suas possibilidades, ao confiar a criança, durante 12 horas do dia, aos cuidados de um espaço dotado de possibilidades subjetivantes? Não poderíamos pensar que o esforço coletivo entre família, creche e rodas de conversa seria uma força a mais a legitimar a função família dessas diferentes instâncias sociais na vida de tais pessoas?

O difícil no trabalho de reconhecimento do outro são os mecanismos coletivos que lhe designam uma posição inferior, que hierarquizam sua história, língua e cultura, posição ao mesmo tempo etnocêntrica e, às vezes, racista no plano sistêmico, de que devemos tomar consciência tanto no nível político quanto no nível clínico - tomar consciência para reconhecer, descrever, denunciar e transformar. Denominamos esses movimentos de rejeição do outro e de sua alteridade de contratransferência cultural íntima epolítica (Moro, 2017).

Na história apresentada, poderíamos pensar que o que houve - e o que não quer calar - foi uma contratransferência cultural e política, que relega o outro a uma posição inferior, negando suas competências, seus desejos e suas singularidades (Moro, 2017). O confronto com essas situações de precariedade nos convoca a deixar de lado tendências prescritivas de como ser pai e mãe, a fim de abrir espaços em que sejam reconhecidas potencialidades subjetivantes.

Em nome de uma universalidade vazia e de uma ética reducionista, não integramos essas lógicas complexas, sejam elas sociais ou culturais, em nossos dispositivos assistenciais e em nossas teorizações. Raramente nos interrogamos sobre a dimensão cultural da parentalidade. Sobretudo, não consideramos que essas formas de pensar sejam úteis para estabelecer uma aliança, para compreender, prevenir e tratar.

Embora não seja o escopo deste trabalho, não poderíamos deixar de citar a abrangência significativa da função família perversa exercida pela cultura do tráfico de drogas, tão presente nessas comunidades e que sela, precocemente, destinos trágicos para as famílias.

As dificuldades cotidianas com as famílias socialmente vulneráveis e seus filhos nos obrigam a modificar nossa técnica de atenção psicológica, assim como nossa teoria, para adaptá-las a essas velho-novas situações complexas. É necessário modificar nossas formas de fazer e, para isso, nossas formas de pensar. Para adaptar nossas estratégias de prevenção e atenção, somos obrigados a pensar essa alteridade, de modo que, longe de ser um obstáculo à interação, ela seja uma oportunidade para novos encontros (Moro, 2017).

Os mandatos e os imperativos de cada época do mundo externo se internalizam na mente e condicionam os pensamentos e a criação de teorias. A aparente liberdade de pensamento e ação está sujeita a condicionamentos de época inconscientes (Alizade, 2016). Portanto, aproximar-se de populações diversas sem levar em conta o social, com um arsenal terapêutico fechado, incrementa o desamparo.

Quais as organizações sociais existentes/não existentes que podem ser es-truturantes para as crianças, os adolescentes e as famílias nessas comunidades?

Se nós, com nosso conhecimento psicanalítico, não pudermos alargar nossa escuta para outras parentalidades existentes ou faltantes em tais comunidades, não estaremos realmente instrumentados para auxiliá-las.

Acreditamos que a função família designaria uma subjetividade em redes, que sustentariam ou derrubariam o psiquismo num espaço ramificado de vínculos, os quais ultrapassam a família nuclear convencional. Nessas redes, coexistem filiações biológicas e não biológicas, e a família se expande para englobar pessoas, instituições e grupos em condições de exercer essa função.

 

Referências

Alizade, M. (2016). La liberación de la parentalidad en el siglo XXI. In P. Alkolombre & C. S. Holovko (Comps.), Parentalidades y género: su incidencia en la subjetividad (pp. 25-30). Buenos Aires: Letra Viva.         [ Links ]

Berenstein, I. (1988). Família e doença mental (A. Friedmann, Trad.). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Carballeda, A. J. M. (2008). Los cuerpos fragmentados: la intervención social en los escenarios de la exclusión y el desencanto. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Glocer Fiorini, L. (2016). La nostalgia del padre: ¿función paterna o función tercera? In P. Alkolombre & C. S. Holovko (Comps.), Parentalidades y género: su incidencia en la subjetividad (pp. 31-38). Buenos Aires: Letra Viva.         [ Links ]

Janin, B. (2015). Niños y adolescentes en situación de vulnerabilidad. Texto não publicado.         [ Links ]

Kantor, J. (2016). Lo que vendrá: paternidades del siglo XXI. In P. Alkolombre & C. S. Holovko (Comps.), Parentalidades y género: su incidencia en la subjetividad (pp. 39-45). Buenos Aires: Letra Viva.         [ Links ]

Moro, M. R. (2017). Parentalidade e diversidade cultural. Revista Brasileira de Psicanálise, 51(2),137-149.         [ Links ]

Viñar, M. N. (2006). Ninõsfuera de la ley. Texto não publicado.         [ Links ]

 

 

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Recebido em 10/8/2018
Aceito em 7/12/2018

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