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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Édipo intimidado1: de profano a profanado

 

The Intimidated Oedipus: From Profane to Desecrated

 

Edipo intimidado: de profano a profanado

 

OEdipe intimidé: de profane à profané

 

 

Ignácio A. Paim FilhoI; Magali FischerII; Maria Cristina Garcia VasconcellosIII; Regina Pereira KlarmannIV

IMembro titular, com função didática, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)
IIMembro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
IIIMembro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
IVMembro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Os autores consideram o caráter inovador dos complexos de Édipo e de castração, conceitos que romperam com a hegemonia da sexualidade genital, propondo a bissexualidade psíquica, a psicossexualidade. Lançam seu olhar sobre a atualidade, tempo de múltiplas sexualidades, que muitas vezes propõem uma ruptura com a história do sujeito e negam a castração. Questionam-se: uma história sem história? Um tempo sem tempo, em que o velho Édipo de Freud de profano passou a profanado? Vivemos uma época de um Édipo intimidado? Estamos, os psicanalistas, intimidados diante desse desafio cultural? À luz dessas ideias, os autores debatem uma reportagem sobre uma família que propõe criar os filhos com gênero neutro. Como sustentar as vicissitudes dos complexos de Édipo e de castração como estruturantes da sexualidade infantil e do anímico? Como relacionar a bissexualidade com vicissitudes dessa tragédia do destino na contemporaneidade?

Palavras-chave: complexo de Édipo, complexo de castração, psicossexualidade, bissexualidade, contemporaneidade


ABSTRACT

The authors reflect on the innovative nature of both Oedipus and castration complexes. Concepts that broke with the hegemony of genital sexuality by proposing the psychic bisexuality, the psychosexuality. The authors look at the current time, a time of multiple sexualities which often propose a rupture with the subject's history and deny the castration. The authors ask: is it a history without history? Is it a time without time, when the old Freud's Oedipus has changed from profane to desecrated? Are we living in a time of an intimidated Oedipus? Do we, psychoanalysts, also feel intimidated when facing this cultural challenge? In the light of these ideas, the authors discuss a tv report about a family who proposes to raise their children gender neutral. How to support the vicissitudes of both Oedipus and castration complexes as what gives structure to infantile sexuality and the soul? What is happening to the identification process? How to relate bisexuality to the vicissitudes of this tragedy of fate in contemporaneity?

Keywords: Oedipus complex, castration complex, psychosexuality, bisexuality, contemporaneity


RESUMEN

Los autores consideran el carácter innovador de los Complejos de Edipo y de Castración. Conceptos que rompieron con la hegemonía de la sexualidad genital, proponiendo la bisexualidad psíquica, la psicosexualidad. Lanzan una mirada sobre la actualidad, tiempo de sexualidades múltiples, que muchas veces proponen una ruptura con la histórica del sujeto, y niegan la castración. Cuestionan: ¿Una historia sin historia? ¿Un tiempo sin tiempo, en el que el viejo Edipo de Freud de profano pasó a profanado? ¿Vivimos una época de un Edipo intimidado? ¿Estamos, los psicoanalistas, intimidados ante ese desafío cultural? Debaten, con base en esas ideas, un reportaje sobre una familia que propone crear sus hijos con género neutro. ¿Cómo sostener las vicisitudes de los complejos de Edipo y de castración como estructurantes de la sexualidad infantil y del anímico? ¿Estaría declinando el proceso de identificación? ¿Cómo relacionar la bisexualidad con las vicisitudes de esa tragedia del destino en la contemporaneidad?

Palabras clave: Complejo de Edipo, complejo de castración, psicosexualidad, bisexualidad, contemporaneidad


RÉSUMÉ

Les auteurs considèrent l'aspect innovant des complexes d'OEdipe et de castration. Des concepts qui ont rompu avec l'hégémonie de la sexualité génitale, en proposant la bisexualité psychique, la psychosexualité. Ils jettent son regard sur l'actualité, temps de sexualités multiples qui proposent très souvent une rupture avec l'histoire du sujet et qui nient la castration. Ils questionnent : une histoire sans histoire ? Un temps sans temps, dans lequel le vieil OEdipe de Freud est-il passé de profane à profané ? Vivons-nous une époque d'un OEdipe intimidé? Sommes-nous, les psychanalystes, intimidés en face de ce défi culturel ? Ils discutent, à la lumière de ces idées, un reportage à propos d'une famille qui a l'intention d'élever ses enfants au genre neutre. Comment soutenir les vicissitudes des complexes d'OEdipe et de castration en tant que structurants de la sexualité infantile et de la psyché? Comment rapporter la bissexualité aux vicissitudes de cette tragédie du destin dans la contemporanéité?

Mots-clés: Complexe d'OEdipe, complexe de castration, psychosexualité, bisexualité, contemporanéité


 

 

Seu destino comove-nos apenas porque poderia ser o nosso - porque o oráculo lançou sobre nós, antes mesmo de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É o destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso amoroso para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino para nosso pai.
(Sigmund Freud)

Viena, 15 de outubro de 1897: Freud, em meio às turbulências de sua autoanálise - as resistências afloram e são defloradas -, escreve a Fliess, pela primeira vez, sobre a ideia da universalidade da tragédia edípica de Sófocles: “Mas a lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia” (1986, p. 273).

Ao mesmo tempo que lança os fundamentos para fazer do Édipo de Sófocles, transportado para a psicanálise, o elemento central de sua concepção da sexualidade infantil, ele o vincula com o drama de Hamlet de Shakespeare. Em 1900 - no livro inaugural da psicanálise como ciência do inconsciente, movida pela força do desejo, incestuoso e parricida - anuncia: “No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet, ela permanece recalcada” (1900/1969, p. 259). Portanto, Édipo vive em ato o que Hamlet vive na fantasia. Eis aí o Édipo de Freud e de todos nós.

No processo de constituir-se como paradigma dessa jovem ciência, em 1910, adquire o status de complexo de Édipo. Nesse momento, a proposição freudiana da sexualidade infantil ganha maior sustentabilidade, pela segunda edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (dezembro de 1909), pelo estudo do caso do pequeno Hans (1909) - a sexualidade infantil em cena - e pelo caso do Homem dos Ratos - o infantilismo da sexualidade.

A jornada do Édipo de Freud avança a passos largos. Quando vai ocupar-se do caso do Homem dos Lobos (1910-1914) - esse que carrega em si as ressonâncias de um pequeno texto, editado em 1908, “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” -, Freud amplia a complexidade do complexo de Édipo, proclamando pela primeira vez a existência do Édipo direto e invertido, o que pressupõe o complexo de castração.

Nesse contexto, temos o Édipo de Freud - com seu correligionário, o complexo de castração - profanando o saber vigente no seu tempo, a era vitoriana em meio a seus embates. Não basta a sexualidade infantil, com sua disposição perversa polimorfa, constituir-nos como sujeito: há mais. A bissexualidade psíquica associada à vivência edípica aproxima homens e mulheres: somos ativos/passivos, castrados/fálicos e femininos/masculinos. A complexidade está posta dentro do escopo de uma sexualidade ampliada, que rompe com a estreita vinculação com o genital. Ela existe desde as origens e se desenvolve no decorrer da história do sujeito - a psicossexualidade -, concebendo a existência de um corpo erógeno como um todo, que possibilita múltiplas formas de satisfação.

Pensamos que a força vital que esse complexo vai adquirindo no decorrer do pensar freudiano fará com que, numa nota de rodapé à quarta edição dos Três ensaios (maio de 1920), ele seja qualificado como o terceiro shibboleth da psicanálise - paradigma da sexualidade infantil, elemento determinante da estruturação do aparato anímico.

Com isso em mente, lancemos um olhar para o nosso tempo, um tempo de múltiplas sexualidades, que proclamam a hegemonia de uma pluralidade originária, não decorrente dos desdobramentos da história do sujeito com seus objetos primordiais; um destino estabelecido pelo acaso, descartandose o lugar das figuras parentais e negando-se a castração. Uma história sem história? Estranha indagação. Se assim o for, estaríamos vivendo um tempo sem tempo, em que o velho Édipo de Freud de profano passou a profanado?

Em face dessa possível profanação, parece-nos que estamos diante de um Édipo intimidado. E nós, psicanalistas, estamos também intimidados? Por vezes, pensamos que sim. Afinal, vivemos tempos que desafiam o caráter vitalizante da subjetividade, com sua singularidade construída no interjogo do sujeito com um outro, semelhante mas não igual, em prol da unicidade. Esse contexto convoca o psicanalista, como um indivíduo do seu tempo, a ficar enredado nessa trama alienante. Ser o porta-voz do estrangeiro que nos habita, como também do mais além do princípio do prazer, é estar constantemente ameaçado de reviver a diáspora freudiana - o exílio das demandas da cultura.

Como seguir sustentando as vicissitudes do complexo de Édipo e de castração como elementos estruturantes da sexualidade infantil e do anímico? Estaria o processo identificatório em declínio? Como relacionar metapsicolo-gicamente a bissexualidade com as vicissitudes dessa tragédia do destino na contemporaneidade?

Compreendemos que esses questionamentos são uma convocação e uma provocação para tecer especulações sobre o romance familiar das novas configurações. Para isso, iniciamos com uma breve revisão do Édipo de Freud.

 

Revisitando o Édipo de Freud: a perenidade de um profano

Mas o reprimido é território estrangeiro para o ego - território estrangeiro interno - assim como a realidade é território estrangeiro externo.
(Sigmund Freud)

Para compreender a amplitude do complexo de Édipo, estruturando a psique e a ordem social, é necessário fazer a interação de dois textos: Totem e tabu (1913/1989d) e “À guisa de introdução ao narcisismo” (1914/2004a). Esses dois escritos, em conjunto, fornecem os elementos indispensáveis para sustentar o lugar paradigmático de tal complexo na doutrina freudiana. Nesse sentido, no trabalho de 1913 encontramos a fundamentação sobre os destinos do desejo edípico, incesto e parricídio, enquanto no de 1914 deparamo-nos com as origens desse desejo (Paim Filho, 2014): “O oráculo lançou sobre nós, antes mesmo de nascermos, a mesma maldição que cai sobre ele” (Freud, 1900/1969, p. 258).

Tomando essa proposição como norteadora do nosso pensar, compreendemos que, com o trabalho do narcisismo, temos subsídios para estabelecer sua relação com as identificações primárias - o ser identificado. Essas identificações, segundo Freud, são anteriores a qualquer investimento objetal e cumprem um papel relevante na “história primitiva do complexo de Édipo” (1921/1989c, p. 133). Nesse caminho, transitamos pelo escopo do desejo parental, com sua pulsão de apoderamento, o filho ocupando o lugar do duplo, estando sob o jugo de ser uma escolha de objeto narcísico - “a pessoa que outrora fez parte de nosso próprio si mesmo (Freud, 1914/2004a, p. 109). Ápice da bissexualidade narcísica: ser dois em um.

Portanto, estamos diante do narcisismo primário, e sua existência decorre do investimento parental, que reivindica para o bebê a possibilidade de satisfação irrestrita de seus desejos (aqueles a que um dia tiveram de renunciar) e o transforma em Sua Majestade o Bebê. Nesse período, de acordo com Freud, ocorrem como objetos sexuais para o indivíduo apenas “ele mesmo e a mulher que dele cuida” (1914/2004a, p. 108). Essa vivência remete à força do desejo incestuoso, que é anterior ao desejo parricida. Sabemos que o encontro de um bebê com a mãe sinaliza, significa e participa da inscrição e dos desdobramentos do incestuoso, que vai habitar a alma humana - o profano, a sedução originária. Atribuímos a essa sedução uma intensidade sinistra, que julgamos estar implicada na necessidade de o casal parental desmentir (Verleugnung) a sexualidade infantil,2 desmentido esse que entendemos como estruturante quando favorece o investimento libidinal do bebê por parte dos pais. Essas vicissitudes do período inicial da vida de cada um de nós estão intimamente imbricadas com o psiquismo daqueles que vão nos auxiliar no percurso que resultará na constituição da nossa subjetividade, e consequentemente na possibilidade de construirmos um espaço anímico em que ocorra a inscrição da alteridade.

O desenvolvimento do narcisismo primário, caracterizado pelo eu ideal, dá-se em direção à constituição do ideal do eu, que ainda almeja a completude da etapa anterior, mas já é capaz de investir o objeto, reconhecer a alteridade e, portanto, a própria incompletude. Esse desenvolvimento está atravessado pelos processos identificatórios, que têm participação direta e fundamental na possibilidade de elaboração favorável do complexo de Édipo.

Segundo Freud, a identificação é “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (1921/1989c, p. 133), que vai permanecer inscrita no sujeito ao longo de toda a sua vida. Inicialmente essas identificações são imediatas, não resultam de um investimento objetal e não podem ser diferenciadas dele. Posteriormente entram em jogo as escolhas objetais, que retomam a ligação com essas identificações primárias, o que tem impacto no desenvolvimento da conflitiva edípica. Em O eu e o id (1923/2007a), Freud reforça a ideia das identificações salientando a importância de considerar a estruturação triangular do Édipo, bem como a bissexualidade constitucional do indivíduo.

Vale observar que compreendemos esse constitucional da bissexualidade pelo vértice de que é produto do investimento parental. Do encontro de dois forma-se um terceiro, que vai se inserindo no andamento da vida anímica do sujeito nos seguintes moldes: passividade versus atividade, masculino fálico versus masculino castrado e, por último, no declínio do complexo de Édipo, se estabelecem a masculinidade e a feminilidade para além das diferenças anatômicas. Esse constituir-se - o eterno vir a ser de todos nós - é produto, como já dissemos, da composição multifacetada das identificações, as quais são colonizadoras do território estrangeiro interno.

Diante dessa constatação, ratificamos que a bissexualidade é constitutiva do complexo de Édipo considerado de forma ampla, ou seja, invertido e direto, em que a ambivalência está presente tanto em relação ao pai quanto em relação à mãe. O resultado disso é que, quando o complexo de Édipo é uma etapa superada, encontramos identificações tanto maternas quanto paternas correspondentes ao Édipo positivo e negativo. Isso constituirá o que Freud menciona como um precipitado no eu que toma a forma do ideal do eu no supraeu. Esse último carrega em si aspectos do supraeu dos pais, através dessas identificações, e torna-se mais severo quanto mais tiver se constituído como consequência do excesso do recalque.

Entendendo-se esse processo, que desemboca na construção do edifício psíquico, nota-se que todo o investimento narcísico realizado no bebê, por parte dos pais, é fundamental. Para isso é necessário que o casal parental possa realizar esse investimento reconhecendo a alteridade do bebê, sendo ele ao mesmo tempo depositário do narcisismo dos pais. Isso vai interferir no jogo identificatório inicial e no seu consequente desenvolvimento, que resultará na resolução da conflitiva edípica. É possível pensar que uma tendência cultural à busca da completude narcísica, se não adequadamente filtrada pelo psiquismo dos pais, pode estabelecer lacunas importantes no eu do bebê em formação, traumáticas, uma vez que estamos diante de momentos muito iniciais, fundantes da constituição do sujeito, o que determina o seu aprisionamento em identificações alienantes: seguir sendo o duplo das figuras parentais.

Nesse sentido, poderiamos dizer que o desejo incestuoso é ofertado e o desejo parricida é uma aquisição - aquisição relacionada com a inclusão do terceiro, como um diferente que rompe a fantasia de completude ensejada pela relação dual, caminho da bissexualidade narcísica para a bissexualidade edípica. Aqui nos deparamos com o grande organizador da vida psíquica: o complexo de castração (Paim Filho & Garcia, 2017). Seu escopo é ser o revelador da não completude, o perene mensageiro da finitude, ou ainda da transitoriedade, o que transcende a diferença anatômica entre os sexos.

 

As novas configurações da sexualidade em tempos de Édipo intimidado

A exigência, demonstrada nessas proibições, de que haja um tipo único de vida sexual para todos não leva em consideração as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos; cerceia um bom número deles, o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave injustiça.
(Sigmund Freud)

Como pode ser observado, em nossa argumentação partimos da suposição de que vivemos num tempo que, muitas vezes, proclama o predomínio de um determinismo originário (embebido num sentimento oceânico) em detrimento da construção da singularidade do ser, como produto de uma história vivida em parceria com as figuras parentais - conjunto de circunstâncias condizente com o predomínio do pensamento religioso, com seu fundamentalismo.

Assim, consideremos algumas manifestações da nossa vida cotidiana - levando em conta que não há um tipo único de vida sexual para todos -, em particular uma afirmação que tem surgido com certa frequência nos meios de comunicação: João, aos 3 anos, “escolheu ser uma menina”; Maria, aos 4 anos, “escolheu ser um menino”. Essa afirmação acionou em nós um profundo sentimento de estranhamento, concomitante com o desejo de refletir sobre a inquietante expressão escolheu ser... Escolheu? De que escolha estamos falando? O eu dessas novas configurações segue atravessado pela máxima freudiana de que o eu não é senhor em sua própria casa? Partimos do pressuposto de que sim.

Objetivando dar mais plasticidade às nossas proposições, nos ocuparemos de uma reportagem exibida na programa Fantástico, em 2015, sobre Portland, nos eua. Essa cidade tem o seguinte slogan: “Mantenha Portland estranha”. Nessa terra do estranho, surgiu a proposta de criar as crianças com gênero neutro. Elas poderão escolher o seu próprio sexo, não importando o corpo anatômico. Na reportagem mostra-se uma família que optou por viver essa experiência. A família é formada por um casal heterossexual, desde o fenômeno externo, e dois filhos. Segundo a mãe, a filha (agora com 4 anos) optou aos 2 anos por ser menina. Já o menino (de 8 anos), quando questionado, responde à repórter: “Sou principalmente um menino, mas também sou uma menina”. Conta que descobriu sozinho o que o corpo lhe dizia. Pede para usar roupas de menina, mesmo dizendo que não é menina. A mãe pensa que assim deixa em aberto todas as possibilidades, acreditando que poderão ser o que quiserem. Para a mãe, o menino já se definiu: é gênero neutro. A menina, por sua vez, aos 2 anos de idade já “escolheu” ser menina, dando a impressão de que a mãe demonstra uma preferência pelo feminino. Então nos perguntamos: a mãe de Portland não estaria projetando o seu conflito de identidade no filho? O pai, apesar de concordar com essa educação, preocupa-se, pois teme que o menino venha a sofrer violência.

No decorrer da entrevista, o menino mostra que carrega um mordedor, como aqueles utilizados por bebês quando estão nascendo os dentes. Ele explica que quando está muito ansioso usa o mordedor. Ansioso com o quê? O que seu corpo diz? Como se deu essa tradução?

Mais algumas questões: a decisão de não interferir é uma opção? Acreditamos que não, que demonstra antes um investimento parental - nesse caso, na plenitude da bissexualidade narcísica, que se desenha de maneira emblemática na proposição do gênero neutro; assim a mãe o definiu, perpetuando o desmentido da sexualidade infantil. Entretanto, o garoto ainda diz: “Sou principalmente um menino, mas também sou uma menina”. Que liberdade é essa?

Em nome de uma suposta liberdade (“ser o que quiserem”), os pais não ajudam a criar as condições necessárias para que se estabeleça uma contenção interna - limites para que o desejo circule de forma menos assustadora e, paradoxalmente, mais livre; possibilidade de descobrir o quanto há de libertador conhecer o limite que a castração instaura. Nesse sentido, entendemos que a liberdade de escolha defendida pela mãe da criança pode ser lida como abandono. O acontecer desse processo causa o surgimento do sentimento de angústia, um pulsional que transborda e aciona a necessidade de descarga em ato: um “mordedor” que aplaque as intensidades incestuosas. Revela um desamparo, uma não tradução das demandas pulsionais, dificultando a criação de um corpo representacional, o que nos faz pensar num aprisionamento às identificações primárias: sou o que o outro quer que eu seja. Talvez o corpo diga algo que remete a ser o falo materno. Perpetuação da mãe fálica? Se assim o for, fica impedido de ascender à conflitiva edípica. Esse não acesso estará implicado na hegemonia do eu ideal: seguir sendo Sua Majestade o Bebê. Seria essa a fonte do gênero neutro?

Refletindo sobre esse interrogante, recordamos que Green (2012), falando da bissexualidade e de seus destinos, faz a seguinte analogia: Édipo positivo “dominante”, e Édipo negativo “recessivo”. Compreendemos essa analogia sob o prisma de que a resultante da constituição da sexualidade, centrada no complexo de Édipo, se dá pelas múltiplas formas de combinação desses fatores, em que o diferencial entre o “dominante” e o “recessivo” vai estabelecer o tipo de escolha de objeto: homossexual ou heterossexual. Especulamos que, no chamado gênero neutro, haveria não um diferencial, mas a proposição de uma equivalência entre o Édipo positivo e o Édipo negativo: ambos dominantes, feminino e masculino, numa completude - cenário condizente com a morte do desejo, o demoníaco, o “eterno retorno do mesmo” (Freud, 1920/2006, p. 147).

Diante dessa compreensão, nos posicionamos: somos antes de tudo a resultante da força do estrangeiro que nos habita. Decorre desse pensar que toda escolha do processo secundário é uma apresentação, com suas transformações, da força do desejo do inconsciente. Portanto, não escolhemos, somos escolhidos pelos destinos fundantes do nosso ser - ser que se constitui nos desdobramentos da sexualidade infantil. Seguindo nessa direção, podemos afirmar, por exemplo, que ser homossexual, heterossexual, ou ainda do chamado gênero neutro não é escolha, mas sim destino. Eis aí encenado, no dizer de Freud, a terceira ferida narcísica da humanidade: a castração fazendo história e nos reconvocando a ressignificá-la. Tudo isso objetivando não desconsiderar as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos.

 

Considerações finais: delineando as vicissitudes do Édipo

De vez que, excetuando-se casos muitíssimo raros, apenas uma espécie de produto sexual - óvulo ou sêmen - está presente numa pessoa. Os senhores, contudo, não poderão senão ter dúvidas quanto à importância decisiva desses elementos e devem concluir que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida, que foge do alcance da anatomia.
(Sigmund Freud)

O que mudou? Édipo está profanado? Nós, psicanalistas, seguimos pensando da mesma forma que Freud? Ou estamos diante de mudanças culturais, sociais, e isso impõe uma mudança teórica? A teoria está posta. É possível ampliar nossa compreensão, para dar conta das manifestações culturais e sociais, sem abrir mão da constituição psíquica dos seres humanos, conforme a teoria freudiana, fundamentada na sexualidade infantil, decorrente do encontro e do desencontro do corpo biológico e do corpo pulsional. Não só ampliar, mas trabalhar a teoria, afinal, “no princípio, as ideias devem conter certo grau de indefinição, e ainda não é possível pensar numa delimitação clara de seu conteúdo” (Freud, 1915/2004b, p. 145).

Desse modo, nos cabe reafirmar que nossas escolhas não são livres e arbitrárias. Partindo da bissexualidade, enquanto conceito polissêmico, o destino das moções pulsionais é delineado inconscientemente em comunhão com as figuras parentais. São as identificações de um lado ou do outro que, em seu descompasso, resultarão na disposição sexual. Portanto, não há de-generação nem inatismo nas diversas configurações da sexualidade, o que já era dito por Freud no início do século XX em relação à homossexualidade. De certa forma, o que existe é uma condenação - produto da dita moral sexual civilizada - característica do pensamento vigente em cada cultura. Por conseguinte, não existe um único modelo de vida sexual. A patologia ou a “maldita” normalidade se constroem na presença/ausência da inscrição simbólica da castração. Além de suas ideias, Freud nos deixa como legado suas dúvidas. Nesse sentido, questiona-se se a negação da satisfação completa é apenas de responsabilidade da pressão da civilização ou também algo da própria natureza humana, que incita outros caminhos. Assim, ratificamos: Édipo, enquanto produto de um processo identificatório, segue sendo profano do estabelecido; a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.

 

Referências

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Recebido em 21/11/2017
Aceito em 13/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado na mesa-redonda “A clínica psicanalítica hoje”, no 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, ocorrido de 1.° a 4 de novembro de 2017, em Fortaleza (CE).
2 Em “À guisa de introdução ao narcisismo” (1914/2004a), Freud utiliza o termo negação, na acepção de desconsiderar uma evidência. Nesse sentido, a palavra desmentido, ou denegação, parecería a forma mais adequada para traduzir Verleugnung. Entretanto, nesse momento do pensar freudiano, ainda não temos, com clareza, as diferentes formas de negar a existência de algo. Mais comumente, Freud vai usar a denegação ligada à impossibilidade de reconhecer a existência da castração (1918/1989b, 1927/2007b). É em 1923 que essa forma específica de negação adquire status constitutivo. Assim, nos atrevemos a pensar que a negação de 1914 -ou melhor, o desmentido - é uma espécie de primeiro tempo na estruturação metapsicológica desse conceito. Desmentir a sexualidade infantil - dos rebentos - é uma tentativa de desconsiderar o desejo sexual de plenitude parental.

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