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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

RESENHAS

 

Por que Winnicott?

 

 

Marcia R. Bozon de Campos

Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora do curso O Corpo na Clínica (no mesmo instituto)

Correspondência

 

 

Autor: Leopoldo Fulgencio
Editora: Zagodoni, São Paulo, 2016, 208 p.
Resenhado por: Marcia R. Bozon de Campos

 

 

A singular inserção de Winnicott na tradição psicanalítica

Por que Winnicott? integra a Coleção Grandes Psicanalistas (editora Zagodoni), dedicada à apresentação de autores da psicanálise, contextualizando sua obra na contemporaneidade através de um olhar sobre a inserção de cada um no campo psicanalítico e considerando a filiação deles ao pensamento freudiano em sua singularidade.

Já no início do livro, Leopoldo Fulgencio atribui a Winnicott o mérito de articular o pensamento de Freud, o pensamento de Klein e as descobertas do existencialismo moderno num sistema teórico e clínico próprio, pautado numa ética do cuidado psicoterapêutico, que vai além do tratamento proposto pela psicanálise no sentido ortodoxo. O autor apresenta Winnicott como um psicanalista formado na tradição psicanalítica, compartilhando com Freud concepções nucleares como a existência de processos inconscientes, a importância da sexualidade infantil e do complexo de Édipo na organização da vida psíquica, e a transferência e a resistência presentes no método de tratamento elaborado por Freud, por ele reconhecido e partilhado não apenas como método de tratamento, mas também como método de pesquisa, o que abriu espaço para que cada psicanalista pudesse fazer suas próprias observações clínicas, mantendo a psicanálise viva e em movimento.

Winnicott está, por assim dizer, realmente nas mãos de Freud e o tem nos seus ossos, mas não está sob o polegar de Freud, não o trata como uma autoridade religiosa a quem se deve idolatria, mas o considera um homem de ciência, que descobriu muitas coisas verdadeiras sobre a natureza humana, mas que também fez apreciações apenas introdutórias, intuitivas, sobre fenômenos que ele não pôde perceber muito bem, fato humano tão fundamental que Freud também errou. (p. 18)

Essa observação, interessante e precisa, permite ao leitor que se aproxima da obra de Winnicott construir desde o início um olhar atento para as inovações propostas por ele, sem no entanto perder de vista sua conexão com Freud e consequentemente com a psicanálise, leitura que se diferencia das que enxergam no pensamento do autor um novo paradigma, que viria substituir o freudiano, acarretando naturalmente um afastamento entre Winnicott e a psicanálise. Nessa perspectiva, o leitor pode acompanhar a construção de algumas concepções centrais do pensamento de Winnicott, como sua teoria do desenvolvimento emocional, sua concepção do humano, tanto no desenvolvimento saudável quanto no patológico, assim como as implicações de suas ideias para a clínica, no que se refere aos objetivos dela e ao método de tratamento.

O primeiro capítulo do livro oferece ao leitor um panorama dos principais conceitos propostos por Winnicott, compondo uma narrativa fluida e de fácil leitura, sem contudo deixar escapar a complexidade que sua compreensão demanda, o que torna o texto ao mesmo tempo consistente e acessível. Fulgencio começa sua narrativa sobre a especificidade da obra de Winnicott expondo com muita clareza as razões pelas quais este pode ser considerado um psicanalista existencialista, creditando a Winnicott a introdução na psicanálise de um novo ponto de vista sobre a natureza humana, segundo o qual o homem é criador de si mesmo e do mundo em que vive. Para o homem, a necessidade de ser e de continuar sendo constituiria a base de sua humanidade e lhe conferiria uma tendência inata à integração.

Ora, é evidente a influência de Heidegger na construção do modelo ontológico de homem proposto por Winnicott, mas a singularidade está precisamente na relação com a concepção freudiana do homem regido pelas pulsões, de modo que a vida instintual e o corpo, presentes desde o início, integram aspectos da existência inerentes à necessidade de ser. Assim, na perspectiva da teoria do desenvolvimento proposta por Winnicott, a sexualidade passa a ser considerada uma aquisição do próprio processo de desenvolvimento infantil, e não seu fundamento. Diferentemente de Freud e Klein, que pensavam o desenvolvimento a partir do que o sujeito faz com os objetos com os quais se relaciona, sempre atravessados pelo amor e/ou pelo ódio, Winnicott introduz a necessidade da experiência de ser antecedendo ao fazer, entendendo que, num momento inicial da vida, quando a percepção da alteridade inexiste, os objetos são subjetivos, concebidos pelo bebê a partir de vivências satisfatórias proporcionadas pela mãe-ambiente. Fulgencio questiona o fato de muitos autores considerarem Winnicott um teórico das relações de objeto na história clássica da psicanálise, observando que o objeto subjetivo não pode ser considerado um objeto para o bebê, já que é um tipo específico de objeto concebido pelo próprio bebê, e não reconhecido por ele a partir de sua percepção do mundo.

Essa concepção de objeto é introduzida por Winnicott na psicanálise e representa uma importante contribuição, pois está relacionada com a hipótese de que o bebê é capaz de criar o objeto que satisfaz a sua necessidade. Essa ação criativa ou gesto espontâneo possibilitará ao bebê articular suas percepções corporais com a rudimentar atribuição de sentido a tais acontecimentos, fazendo uma “elaboração imaginativa das funções corporais” (p. 3), que estará na base da formação da unidade psicossomática e na origem da própria psique. Nessa perspectiva, ressalta-se a introdução de uma noção de saúde muito particular, definida pela possibilidade de o indivíduo se adaptar ao mundo sem comprometer sua espontaneidade, nutrindo um sentimento de que sua vida é real e vale a pena ser vivida, ao contrário do estado patológico, no qual impera a sensação de que a vida é fútil e sem sentido.

Na sequência, o leitor é apresentado a um dos conceitos fundamentais do pensamento de Winnicott, a distinção entre um verdadeiro self e um falso self, sendo o primeiro uma expressão espontânea da essência do si mesmo, enquanto o segundo decorre de uma ação reativa e defensiva às falhas do ambiente, que, quando demasiadas, se tornam responsáveis por aniquilar o ser e o verdadeiro self. Fulgencio ressalta a singular caracterização das psicopatologias introduzida por Winnicott, a qual, divergindo tanto da psiquiatria clássica quanto de Freud e Klein, será norteada pelos modos de ser do indivíduo no mundo (decorrentes dos bons ou maus cuidados recebidos no início da vida) e pela consequente possibilidade de atingir o amadurecimento.

O segundo capítulo é dedicado às possibilidades de interesse da obra de Winnicott para as ciências, como a psiquiatria, a biologia, a educação, a semiótica e a linguística, as práticas jurídicas, a sociologia, a filosofia, a história do desenvolvimento da cultura, a assistência social e as neurociências.

Leopoldo Fulgencio inicia essa etapa do livro com uma importante reflexão sobre o interesse do pensamento de Winnicott para o método psicanalítico. Com esse intuito, retoma as características essenciais do método freudiano, explicitando as modificações propostas por ele na ontologia e nos objetivos do tratamento. Afirma que Winnicott concorda com os fundamentos da teoria psicanalítica, mas que, na sua compreensão, o inconsciente não advém do processo de repressão, estando associado ao que ele caracteriza como linha do desenvolvimento do ser sustentado pelo ambiente.

O autor nos convida a observar a forte influência do existencialismo no pensamento winnicottiano, situando as determinações advindas da vida pulsional e da sexualidade em outro lugar do processo de desenvolvimento emocional, sem todavia abandoná-las. Fulgencio diz que Winnicott redescreve os aspectos gerais formais característicos do método de tratamento psicanalítico, dirigindo o foco para o modo de ser do analista nesse processo. Considera que uma análise corresponde a um “encontro humano simplificado, porém verdadeiro” (p. 65), no qual o analista precisa se retirar para prover ao paciente os cuidados ambientais satisfatórios, a fim de que este possa sustentar seu sofrimento e a angústia proveniente de sua história pessoal, rememorada na relação com o analista. A versão dessa história recontada pelo paciente representa o caminho que o levará a encontrar meios de viver de acordo consigo mesmo, adquirindo a capacidade de estar com o outro sem perder sua espontaneidade.

Quanto aos objetivos da análise, Fulgencio conduz o leitor à compreensão das diferenças das proposições de Winnicott em relação às de Freud e Klein, embora deixe claro que a perspectiva dele está apoiada nas dos dois últimos autores. Afirma que, para Winnicott, um dos objetivos do tratamento psicanalítico é a integração do indivíduo, no sentido de conquistar um status unitário, no qual existe a percepção de que há um dentro e um fora e uma vida instintual sentida como algo advindo de dentro do sujeito. O autor destaca os aspectos gerais que orientam os tratamentos psicoterápicos para Winnicott, explicitando a compreensão e o tratamento das neuroses, das psicoses, da depressão, dos transtornos borderline, das psicopatias e das desordens psicossomáticas à luz de seu pensamento. Ressalta a proposição da regressão à dependência no tratamento psicanalítico como uma nova chance de desenvolvimento do self, a partir da possibilidade de o paciente retomar, no setting analítico, experiências traumáticas sem sofrer ameaça de aniquilamento.

Ainda nesse capítulo, Fulgencio se dedica a outro conceito fundamental da teoria winnicottiana: a universalidade da ação de brincar. Uma de suas mais importantes contribuições para a psicanálise, os fenômenos transicionais representam a transição do bebê em estado de fusão com a mãe para um estado de reconhecimento do mundo externo. Winnicott acredita que essa separação entre o eu e o mundo é uma conquista que depende de um ato criativo por parte do bebê, uma ação espontânea de encontrar um objeto no mundo e atribuir a esse objeto um valor subjetivo, a fim de criar um objeto único a partir do objeto encontrado.

Winnicott confere uma importância crucial à ação criativa nos processos de integração da criança, base para o desenvolvimento saudável, considerando que a criatividade norteará, por toda a vida adulta, determinada maneira de se relacionar com o mundo, seja nas relações interpessoais, no trabalho ou na própria análise, correspondendo a uma possibilidade de habitar uma área intermediária, um espaço transicional, uma área da experiência que permite a manifestação do self verdadeiro, através de ações espontâneas e não pautadas na submissão. Esse é o espaço da arte, da religião, do trabalho e da vida social em geral, o que leva Winnicott a afirmar que “o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento” (p. 108). O autor observa que esse é um ponto de divergência em relação à teoria freudiana, para a qual a cultura advém de um processo de sublimação. Winnicott propõe uma teoria da cultura radicalmente diferente, concebendo a entrada no mundo cultural como a expansão de determinado modo de relação com a realidade, por meio do qual o indivíduo encontra formas de dar sentido a si mesmo e ao mundo em que vive.

O terceiro capítulo aborda o mais significativo ponto de divergência entre Winnicott e Freud: o conceito de pulsão de morte. Winnicott adota uma posição radicalmente contrária ao conceito de pulsão de morte proposto por Freud, assim como ao posterior uso desse conceito na Sociedade Britânica de Psicanálise. Seu principal argumento é que a vida não deriva propriamente do inorgânico, mas sim de outra vida; que o ser humano se origina não da matéria inanimada, mas de um estado de solidão essencial, que representa um estado de não ser que antecede à vida. Afirma que a própria natureza humana constitui uma continuidade de ser entre os dois estados de não ser, o de ainda não estar vivo e o de já não estar mais vivo. Em sua opinião, Freud entendeu a ideia inicial, mas errou ao considerar que esse estado anterior à vida seria inorgânico. Concorda com Freud que a morte não é passível de ser compreendida pelo ser humano para além de uma projeção desse estado inicial anterior à vida, no entanto vê a passagem para a morte como um retorno ao estado de solidão inicial.

Dado esse ponto de ruptura, Winnicott desenvolve sua teoria sobre as origens da agressividade baseado em fatos empíricos, levando em conta a relação do indivíduo com o ambiente, afirmando que o impulso amoroso primitivo é inerente ao fato de estar vivo e corresponde a uma expressão do ser a partir de sua motilidade no estado de dependência absoluta, no qual ainda não existe uma realidade não self, tampouco uma intenção de destruir o objeto. Nessa perspectiva, Winnicott elabora o conceito de uso do objeto, através do qual a realidade externa é criada por meio da destruição e da sobrevivência do objeto. Leopoldo Fulgencio contribui para a compreensão desse conceito observando que “não é o objeto, ele mesmo, em sua totalidade, que é destruído, mas sim a sua natureza de ser um objeto puramente subjetivo ou transicional” (p. 159). O uso do objeto não consiste, portanto, numa ação que visa intencionalmente destruir o objeto, mas representa a expressão da criatividade originária e do viver espontâneo decorrente da motricidade. Ao ambiente caberá a sustentação desse processo, pois caso as falhas sejam demasiadas o objeto não sobreviverá.

Ao pensar sobre outro aspecto relacionado à pulsão de morte, a compulsão à repetição, o autor ressalta que falhas ambientais ocorridas em momentos nos quais o indivíduo não tinha meios de lidar com elas sem ser aniquilado impedem que o vivido seja experienciado, permanecendo congelado, à espera de que ele possa vir a integrá-lo em sua área de controle. Leopoldo Fulgencio sugere que Winnicott utiliza a ideia do fort-da proposta por Freud para compreender a compulsão à repetição, ao se referir à necessidade de a experiência traumática ser revivida num momento em que o self possa se retomar como agente, remetendo-se ao momento anterior ao surgimento das defesas relacionadas ao trauma.

Nos capítulos 4 e 5, o autor traz uma preciosa contribuição aos estudos do pensamento de Winnicott, elencando trechos selecionados da obra dele, abordando continuidades e rupturas em relação à escola psicanalítica, fundamentos de seu pensamento, fragmentos associados à psicopatologia e concepções clínico-teóricas, tudo isso seguido por uma minuciosa apresentação do conjunto de publicações de Winnicott, baseada nos 12 volumes que compõem sua obra completa, publicados em 2016 em língua inglesa. Fulgencio termina com uma indicação de leitura secundária, organizada em torno de alguns temas, como controvérsias sobre a importância da obra de Winnicott e estudos dedicados às relações entre Winnicott e outros psicanalistas, oferecendo um generoso material de pesquisa aos interessados em aprofundar-se no estudo de sua obra.

 

 

Correspondência:
Marcia R. Bozon de Campos
Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 122
05415-012 São Paulo, SP
Tel.: 11 3085-1592
marciarbozon@gmail.com

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