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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo out./dez. 2018

 

RESENHAS

 

Briefe an Jeanne Lampl-de Groot (1921-1939)1

 

 

Cornelia Ivon Mensak-Sporner

Membro da Associação Germânica de Psicanálise e do Instituto em Colônia-Düsseldorf. Doutora em medicina pela Universidade Ruhr de Bochum, Alemanha

Correspondência

 

 

Editora: Gertie F. Bogels
Editora: Psychosozial, Giessen, 2017, 184 p.
Resenhado por: Cornelia Ivon Mensak-Sporner

 

 

Esta obra constitui um importante trabalho para a história da psicanálise. A editora, Gertie F. Bogels, é analista didata da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) em Amsterdã (Associação Psicanalítica dos Países Baixos), psiquiatra e redatora da revista Tijdschrift voor Psychoanalyse, na qual publicou artigos como “O destino da psicanálise na Holanda”.

Na introdução, Bogels apresenta o descobrimento das cartas de Freud a Jeanne Lampl-de Groot. Em um artigo no Jahrbuch der Psychoanalyse (Fichtner, 2008), ela encontrou a frase de Freud ao chegar a Londres, em 1938: “Diante da grande miséria, esta do emigrante é minúscula” (p. 9). Jeanne, aliás Adriana Lampl, sua última candidata, posteriormente conhecida no âmbito internacional e uma das pioneiras da psicanálise holandesa, emigrou para a Holanda com as duas filhas e o marido judeu, Hans Lampl, na mesma época. Ambos fugiam da brutal opressão do regime nazista.

Fascinada pela maneira sensível e profunda de Freud transpor aquela situação sociopolítica para um cotidiano familiar, e sabendo das inúmeras cartas que ele havia escrito a pessoas famosas, como Karl Abraham, Eugen Bleuler, Carl Gustav Jung, Marie Bonaparte e Thomas Mann, Bogels resolveu procurar as cartas que ele teria escrito a Lampl na Biblioteca do Congresso, em Washington. Encontrou 76 cartas em alemão antigo (Sütterlin) e obteve a ajuda de Gerhard Fichtner para traduzi-las. Professor de história e ética da medicina na Universidade de Tübingen, Fichtner digitalizou muitas cartas de Freud e foi editor do volume As cartas para a noiva, que contém as cartas de Freud à futura esposa, Martha Bernays.

Edith Berkowits-Lampl, filha de Jeanne, pôs à disposição de Bogels uma série de cartas de Lampl aos pais na Holanda, de quando fazia análise em Viena, além de fotografias e cartões-postais. Entre esse material, há uma carta de Anna Freud a Lampl em que ela diz: “Destruí suas cartas a papai, porque sei que essa é sua vontade” (p. 11). A falta de contracorrespondência acompanha o leitor até o fim do livro como um fator enigmático, por vezes pesaroso, por vezes inspirador, já que abre o campo para a imaginação.

O capítulo “Jeanne Lampl-de Groot (16 de outubro de 1895 a 4 de abril de 1987)” traz uma biografia de Lampl e de sua família na Holanda. Destaca-se um fator comum na biografia de Freud e de Lampl: ambos perderam um irmão mais novo na infância. Esse sofrimento teria originado o vínculo especial entre os dois, proximidade que se estendeu por mais de 20 anos, até a morte de Freud.

Bogels detecta sintomas de luto em relação à irmã perdida - atos falhos nas cartas de Lampl para a mãe, o tipo de contato musical entre mãe e filha (Paixão segundo Mateus, de Johann Sebastian Bach, e Canções sobre a morte das crianças, de Gustav Mahler) e fases depressivas até a evolução da própria análise, quando Lampl encontra palavras para elaborar o luto com os pais. Com 80 anos de idade, camuflada no anonimato, ela finalmente escreve “O luto numa menina de 6 anos”, com base na reconstrução da análise de uma paciente adulta.

Através das cartas, Bogels analisa o primeiro contato de Lampl com Freud em 1921, criando para o leitor uma atmosfera de primeira entrevista. Por um lado, ela vê a simpatia de Freud por essa jovem médica, da mesma idade que sua filha Anna; por outro lado, vê a empolgação e a resistência de Lampl - por exemplo, quando ela adia o começo da formação para ficar mais tempo de férias na Itália.

Aos 26 anos, ela dá início à análise didática, com cinco sessões semanais, de 55 minutos cada. Passa a assistir a aulas no Instituto de Viena juntamente com Anna Freud, e mantém amizade com esta até o fim da vida. Ela conhece o marido, Hans Lampl, no 7.° Congresso Internacional de Psicanálise, em Berlim (1922), quando é apresentada a ele por Freud como “a jovem holandesa”. Esse congresso marca o início da psicologia do ego, com a presença de Sándor Ferenczi, Karl Abraham, Melanie Klein e Karen Horney.

Em abril de 1925, Jeanne se casa com Hans na cidade de Haia. Nas cartas da época, há congratulações, bem como insinuações sobre a expansão da família: “Que não fiquem só a dois!”. O casal vai morar em Berlim, na Vila Lampl, arquitetada por Ernst Freud, amigo de Hans e filho de Freud. Sua casa passa a ser um ponto de encontro de colegas, com uma ala para os consultórios do casal. As filhas, Henriëtte e Edith, nascem em 1926 e 1928.

Nesse período, Lampl escreve seu primeiro trabalho científico: “O desenvolvimento do complexo de Édipo na mulher” (1927). Sua correção à teoria de Freud ressalta a posição materna e está diretamente relacionada à sua preciosa experiência como mãe. Esse também é um momento de entusiasmo pela psicanálise entre psicólogos, médicos e leigos em Berlim, assim como de perigo e violência nas ruas dessa cidade.

Em 1933, Lampl decide voltar a Viena com as filhas e o marido judeu, por conselho de Freud, pois este partia do princípio de que o povo austríaco não permitiria a anexação alemã. Nesse ponto, Bogels aponta divergências na Sociedade Psicanalítica Holandesa da época: tanto recebia colegas judeus refugiados quanto compartilhava ideias nazistas. Jeanne não conseguiu emigrar para os eua, mas foi bem-aceita na Sociedade Holandesa e soube aproveitar a experiência clínica e institucional de Berlim e Viena.

Lampl manteve seus contatos internacionais, apoiando assim atividades no pós-guerra, como a organização de um congresso europeu em Amsterdã (1947) e o intercâmbio regular entre holandeses e alemães através de Alexander Mitscherlich. Muitos professores universitários na Holanda saíram de seu divã, numa época em que quase todos os professores de psiquiatria adulta e infantil eram psicanalistas. Sua relação com colegas proeminentes, como Heinz Hartmann, Heinz Kohut, Serge Lebovici e Anna Freud, lhe permitia um olhar analítico aberto.

Ela se preocupava em integrar a psicanálise infantil e enfatizava as experiências pré-verbais. Com seu incentivo, foram organizadas formações analíticas infantis em Amsterdã: em 1966, num intercâmbio com Anna Freud; de 1976 a 1980, num intercâmbio com profissionais das clínicas Tavistock e Hampstead, entre eles Moses Laufer, Anne-Marie Sandler e Joseph Sandler. Seu fascínio pelos primórdios da vida infantil parece uma preconcepção das teorias atuais sobre attachment e mentalizing Embora Lampl gostasse de se movimentar por diferentes linhas psicanalíticas, não apreciava muito as ideias de Melanie Klein. Achava que posição esquizoparanoide e posição depressiva eram nomenclaturas muito psiquiátricas.

Em 1965, para o seu 70.° aniversário, foram publicadas suas obras completas: O desenvolvimento da mente. Em 1985, para o seu 90.° aniversário, as obras completas foram reeditadas, com a adição dos trabalhos mais recentes: O homem e a mente.

Lampl tinha paixão pelas terapias de alta frequência, de quatro a cinco vezes por semana, e enfatizava a importância de criar um espaço para o desenvolvimento do processo analítico. Não nutria simpatia, porém, pela formação combinada, que une psicoterapia com terapia de alta frequência e que atualmente faz bastante sucesso na Holanda. Temia uma perda de intensidade do processo e uma consequente desvalorização da essência do método analítico. Além do trabalho persistente até a idade avançada, Bogels enfatiza o dom de Lampl para atrair pessoas e fazer que essas relações durassem e crescessem.

O capítulo intitulado “Minha cara Jeanne” é dedicado às cartas de Freud a Lampl, entre 1921 e 1939. Elas são numeradas de acordo com as versões originais, listadas em novembro de 1986, em Londres, por ocasião de sua entrega oficial, por Lampl, ao presidente e ao vice-presidente da IPA, Robert Wallerstein e Joseph Sandler. O volume apresenta uma cópia completa de cada carta. Nas notas de rodapé, a editora faz comentários, observações e indicações do contexto histórico. Resenhar essa riqueza de detalhes é impossível, motivo pelo qual prefiro dar um exemplo:

Prof. Dr. Freud, Viena IX, Berggasse 19. B01

Seefeld42 i.T.

11.9.21

Prezada senhorita doutora,43

Correspondências como a sua, eu sempre recebo com muita simpatia. Eu não poderia atendê-la no momento porque não tenho hora livre para análise, mas isso fecha com seus planos de permanecer na Itália pelos próximos meses. Entre janeiro e a Páscoa, provavelmente terei tempo para a senhorita, e então lhe escreverei para o endereço de sua casa, a fim de combinarmos a data exata do início. Esta é a parte preparatória essencial da formação, a análise pessoal. Durante esse período a senhorita poderá ler teoria, assistir a palestras e a assembleias.

Após o término da autoanálise é recomendável ir a Berlim para começar o tratamento de pacientes na policlínica psicanalítica lá existente. A senhorita também poderá fazer a formação completa em Berlim, já que tudo é oferecido lá.

Com as melhores recomendações para o cumprimento de seus propósitos

Seu devoto

Freud

Frl. Dr. Jeanne de Groot

Belvedereweg 11, Den Haag, Holland

 

42 Seefeld, cidadela no Tirol, um dos destinos preferidos para as férias da família Freud.
43 A primeira carta de Freud para Jeanne nos mostra como era simples a candidatura para a formação analítica na época. A carta traz o endereço dos pais de Jeanne. Freud usa um tom gentil, ao mesmo tempo pessoal e pragmático. Vê-se que a análise didática, ali denominada autoanálise, já era parte obrigatória da formação.

Na carta B15, Freud faz referência a Otto Rank e Dorothy Burlingham, e menciona seu trabalho de apoio à psicanálise leiga, para defender Theodor Reik. A editora nos explica o contexto. Na carta B17, encontramos um Freud generoso, que congratula Jeanne por seu “primeiro filho intelectual”, e aberto à contestação dela à teoria da inveja do pênis: “Isso me parece plausível, mas é necessário continuar observando”. Aponta passagens no texto que requerem correções ou acentuações. Ele se refere ao já mencionado artigo “O desenvolvimento do complexo de Édipo da mulher”, no qual Lampl diz que a menina teria sensações sexuais semelhantes às do menino com o pênis, através da vagina e do clitóris. Entretanto, ela ressalta o fato de que a relação da menina com a mãe é mais intensa e complexa, com o que confirma os trabalhos de Karen Horney. Em “Sobre a sexualidade feminina”, Freud a cita: “Devo concordar com o trabalho de Jeanne Lampl-de Groot em pontos substanciais. Ali é reconhecida a completa identidade pré-edípica do menino e da menina, a atividade fálica da menina perante a mãe é observada e comprovada” (1931/1968, p. 519).

Esse capítulo mostra um Freud moderno e participante na criação das filhas de Jeanne. Ele não se detém diante da vida conjugal de Jeanne, diante dos problemas de saúde do marido dela e tampouco diante de suas próprias queixas corporais ou as de seus colegas: “Eitingon está acamado e não consegue mexer o braço esquerdo. ... O que estará por trás disso?” (B39). Ele é duro no julgamento de Fenichel e Reich: “Comecei a luta contra os agressores bolchevistas” (B32), mas também se autocritica na discussão com Einstein (“Por que a guerra?”): “Este trabalho não salvará a humanidade” (B57).

No capítulo “Fragmentos de cartas de Jeanne Lampl-de Groot aos pais”, acompanhamos o fato de que a formação analítica ser financiada por eles é causa de conflitos. A capacidade de convencê-los do empreendimento aumenta à medida que Jeanne se torna mais convicta da autoanálise e obtém resultados com seus próprios pacientes. Vemos que sua identidade psicanalítica cresce e que ela tem prazer em discutir com os colegas e, rivalizando, com a mãe. Ficamos surpresos ao constatar que Freud não teve pudores de solicitar ajuda ao generoso pai de Lampl para financiar a análise de um jovem russo necessitado (o Homem dos Lobos). Mesmo que hoje tenhamos o que contestar quanto à conduta pouco abstinente de Freud, concordamos que se tratou de uma relação analista-candidato frutífera.

No posfácio, Joachim Danckwardt comenta ver em Jeanne uma testemunha de uma psicanálise em transição, desde a teoria do instinto de morte (1920), uma psicanálise hipotético-biológica, até a evolução para uma psicanálise hermenêutica, baseada na validade de dados clínicos e hipóteses demonstráveis. Ele aponta o livro O homem e a mente como uma resposta de Jeanne às cartas B40 e B61 de Freud. Em seus artigos, ela se dispõe a descartar teorias quando hipóteses mais plausíveis são apresentadas.

Trata-se de um volume documental construído por meio de cartas, em que se verifica um intenso intercâmbio em nível pessoal, teórico e sociopolítico. Acompanhamos um Freud familiar, seu dia a dia, seu interesse por crianças e colegas, sua vida como professor, seu ponto de vista quanto ao nazismo e ao desenvolvimento das teorias analíticas. Mesmo faltando a contracorrespondência direta de Lampl, nós nos sentimos cúmplices dessa relação analista-analisado, tocados pela intimidade dela. O texto é lido com a leveza de um romance, embora seja um importante registro da história da psicanálise.

 

Referências

Fichtner, G. (2008). 'L. ein Stück kleines Emigrantenelend neben dem grossen”: Ein Brief Freuds an Jeanne Lampl-de Groot aus dem Jahre 1938. Jahrbuch der Psychoanalyse, 57,201-213.

Freud, S. (1968). Über die weibliche Sexualitat. In S. Freud, Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 517-537). Frankfurt am Main: S. Fischer. (Trabalho original publicado em 1931)        [ Links ]

Lampl-de Groot, A. (1927). Zur Entwicklungsgeschichte des Odipuskomplexes der Frau. Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 13,269-282.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cornelia Ivon Mensak-Sporner
Chopinstrasse 27
40593 Düsseldorf, Alemanha
Tel.: 0055 211 30205011
dra@mensak.de

 

 

1 Cartas a Jeanne Lampl-de Groot (1921-1939).

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