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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

DIÁLOGO

 

O estigma e o ódio contra si mesmo1,2

 

Stigma and self-hate

 

El estigma y el odio de sí mismo

 

Le stigmate et la haine de soi

 

 

Alberto EiguerI; Tradução Marilei Jorge

IPsiquiatra e psicanalista. Membro da Sociedade Francesa de Terapia Familiar Psicanalítica (SFTFP) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a questão do estigma, que evoca inúmeros problemas ligados ao social e ao psíquico. Um estigma é uma anomalia, mas torna-se estigmatizante quando se desenvolve ódio contra si mesmo, quando nos depreciamos. O autor considera que o ambiente familiar representa um papel nessa evolução que não pode ser negligenciado. Estuda diferentes derivações e, em especial, as consequências do olhar do outro. Se o grupo social e o grupo familiar desempenham um papel nessa evolução, é com o grupo e escorando-se nele que a situação da estigmatização se inverterá e o estigma poderá tornar-se uma força. Um caso clínico permite ilustrar os efeitos do ódio contra si mesmo. As contribuições da filosofia e da sociologia ampliam esse debate.

Palavras-chave: estigma, estigmatização, preconceito, ódio contra si mesmo, olhar do outro, si mesmo, ego


ABSTRACT

The author discusses the problem of stigmatization, evoking many problems related to the social and the psychic orders. A stigma is a defect, but when it is stigmatized, self-hate develops and the subject depreciates him or herself. The author considers that family environment has an important role in this evolution. He studies diverse aspects, principally the consequences of the gaze of others. Since family and social groups play an important part in this development, it is in groups and with their support that the situation of stigmatization is reverted and stigma may become strength. A clinical case illustrates effects of self-hate. Contributions from philosophy and sociology expand this debate.

Keywords: stigma, stigmatization, prejudice, self-hate, the gaze of others, self, ego


RESUMEN

Este trabajo aborda el problema de la estigmatización: evoca numerosos problemas relacionados con lo social y lo psíquico. Un estigma es um defecto, pero cuando se lo estigmatiza, se desarrolla odio contra sí mismo, el sujeto se deprecia. Para el autor, el entorno familiar juega un papel importante en esta evolución. Estudia diversas derivas, principalmente las consecuencias de la mirada de los demás. Si los grupos familiar y social desempeñan un papel importante en tal evolución, es com estos grupos y apoyándose sobre ellos que la situación de la estigmatización se revertirá y que el estigma podrá transformarse en una fuerza. Un caso clínico ilustra los efectos del odio de sí. Las aportaciones de la filosofía y la sociología amplían este debate.

Palabras clave: estigma, estigmatización, prejuicio, odio de sí, la mirada de los otros, sí mismo, el yo


RÉSUMÉ

Ce travail aborde le problème du stigmate : il évoque de nombreux problèmes liés au social et au psychique. Un stigmate est un défaut mais il devient stigmatisant lorsqu'on développe de la haine à l'encontre de soi, que l'on se déprécie. Pour l'auteur, l'environnement familial joue une fonction non négligeable dans cette évolution. Il étudie différentes dérives et notamment les conséquences du regard d'autrui. Si le groupe social et le groupe familial jouent un rôle dans cette évolution, c'est avec le groupe et en s'étayant sur lui que la situation de la stigmatisation se renversera et que le stigmate pourra devenir une force. Un cas clinique permet d'illustrer les effets de la haine de soi. Les contributions de la philosophie et de la sociologie élargissent ce débat.

Mots-clés: stigmate, stigmatisation, préjugé, haine de soi, regard d'autrui, soi, moi


 

 

O ego pode acabar completamente modificado pela identificação, tornando-se o saldo intrassubjetivo de uma relação intersubjetiva.
JEAN LAPLANGHE & JEAN-BERTRAND PONTALIS

A noção de estigma evoca inúmeros problemas ligados ao social e ao psíquico. Um estigma é uma anomalia, uma marca que deixa uma chaga, uma doença de natureza física ou psíquica, de origem hereditária (cor da pele ou doença, a hemofilia, por exemplo), devida a um traumatismo, a um acidente, ou provocada por uma ferida que o sujeito se inflige, como na escarificação. O estigma pode ser vivido como invalidante sob um ponto de vista subjetivo, mas invalidez e estigma não são idênticos (Giordana, 2010; Goffman, 1963).

A ideia de estigmatização deriva do termo estigma. Ela significa rejeição e marginalização, o que desencadeia sofrimento, culpa e/ou vergonha em quem o porta, e piedade ou desprezo em quem está diante dele. Vou cruzar essa problemática com a do ódio contra si mesmo, que é uma das suas consequências, mas também um fator agravante. De fato, o estigma, por mais real que seja, só é doloroso à medida que o sujeito o considera estigmatizante (Goffman, 1963). O sujeito pode tentar ocultá-lo, mas sabe que está ali. Mesmo que ele o dissimule, de qualquer modo adivinhariam sua existência. O estigmatizado exageraria, uma compensação que se percebe como artificial (Lacaze, 2012).

É possível que ele consiga inverter a situação e fazer do estigma o ponto de partida para uma adaptação de sucesso e utilizá-lo para selecionar escolhas de vida apropriadas.

Essa evolução faz lembrar outras formas de estigma. Em sua definição, fala-se de marca, tal como uma cicatriz na pele. Ora, certas marcas tornam-se símbolos de pertencimento a um grupo. É o caso das cicatrizes simbólicas feitas na pele (escarificações rituais, tatuagens etc.), pelas quais muitos jovens e membros de certas profissões, como os marinheiros, são aficionados. Outras pessoas dão uma nova significação a suas cicatrizes para mostrar, por exemplo, que querem compartilhar o sofrimento do Cristo. Nas tatuagens e nas pinturas sobre o corpo de inúmeras culturas, também se trata de selar o pertencimento ao grupo, as proezas guerreiras ou o nome e o retrato das pessoas às quais se está sentimentalmente ligado. Nesse caso, sem dúvida, a marca é parte da identidade.

Convenhamos, porém, que o estigma é geralmente vivido como uma anomalia. O olhar negativo do outro é um fator cujo papel é inegável. O sujeito detesta nele o que é considerado um objeto de depreciação. A discriminação e a segregação são as consequências disso. Carreiras se rompem, perspectivas de futuro se fecham, o sujeito se vê reduzido a opções que não correspondem nem às suas capacidades nem às suas aspirações e às de sua família.

O sujeito se identifica, por mimetismo, com aquele que o rejeita, atacando seu ego e seu vínculo com o outro. Seu amor por si mesmo, sua crença em si e seu narcisismo declinam. O estigmatizado acredita, com toda certeza, que ele é desprezado. O devotamento do outro será interpretado como "caridade", sem interesse, como falta de "verdadeira empatia".

Mas por que o olhar do outro se torna tão vital que a identidade da pessoa fica a tal ponto tributária? Por que o superego é desalojado e substituído pelo julgamento de um estranho? E por que o sujeito não consegue desenvolver um olhar interior autônomo, para privilegiar, assim, seu próprio olhar acima do olhar do outro? Se esse olhar externo favorece semelhantes distorções, não é conveniente que nos interroguemos sobre o lugar do olhar de cada um dos pais na visão que o sujeito cria de si mesmo? Os vínculos primários e a intersubjetividade, bem como a transubjetividade, estariam em questão, sem sombra de dúvida.

 

Compensar seu estigma ou inverter sua ação?

A conotação negativa que o sujeito atribui ao estigma é, portanto, a origem do ódio contra si mesmo. Para se livrar dele, Michel Wieviorka propõe que o estigmatizado tome um caminho em que sua diferença possa ter uma conotação positiva, ele mesmo se vivenciando "como um ser capaz de trazer algo de construtivo, de positivo, de culturalmente valorizado ou valorizável" (2001, p. 123).

Essa inversão positiva permitiria sair de uma lógica de exclusão, em que se estaria totalmente associado a um ponto de vista social, ou entendido dessa forma. O estigmatizado poderia tentar lutar a seu modo, para explicar que sua diferença não deveria ser objeto de opróbrio, mas esse é um combate a longo prazo e, certamente, arriscado, marcado por dúvidas e pelo temor de não ter êxito, o que se soma à anomalia de não ser "como todo mundo".

É ao acreditar que sua realidade é digna de ter uma conotação construtiva que ele reagirá, a exemplo dos afro-antilhanos e dos africanos (Césaire, 1939/1956) ao descobrirem uma cultura africana densa por sua história e rica pelos valores que transmite: a solidariedade familiar, o respeito aos mais velhos, o lugar singular do corpo em sua riqueza expressiva. O sentimento de pertencimento a seu grupo social favorece, no sujeito, aptidões, como nesse caso a sensibilidade musical, a percepção dos ritmos (dança) e a criatividade artística, herdadas e desenvolvidas pelo grupo comunitário. Portanto, o estigma pode se tornar força motriz. Ele ajuda a aproximar-se dos semelhantes, a estreitar os laços do grupo e a animar um combate social tendo em vista transformar a estigmatização em integração. Wieviorka (2001) lembra que essa inversão do estigma remete a um trabalho sobre si mesmo e à confrontação com a sociedade, para defender sua diferença e explicar as vantagens do multiculturalismo, em um enriquecimento da sociedade. O orgulho é recuperado, até mesmo ostentado. Em resumo, o estigma é enriquecido com novas significações (Eiguer, 1999).

Mas o trabalho sobre si mesmo: como ele é feito?

Parece-me importante ressaltar o papel da família, ao mesmo tempo no movimento negativo da vivência estigmatizante e na evolução positiva. A família tem muito a ver com a transmissão da vergonha. Ela é atingida em seu todo, especialmente se transmite seus atributos estigmatizantes pelos genes e/ou por seu pertencimento identitário (ciganos, judeus, armênios etc.).

Todavia, Wieviorka (2001) adverte que o processo positivo de inversão pode fracassar e a sociedade continuar rejeitando o estigmatizado, com este mergulhando no aniquilamento de sua diferença, de sua identidade, até mesmo de sua pessoa. Ele pode também ficar tentado a acreditar estar defendendo sua identidade singular ao alimentar seu ódio contra o outro, através de argumentos xenófobos dirigidos às pessoas do grupo majoritário.

Essas considerações são apresentadas a partir de uma perspectiva psicossocial. Elas nos esclarecem em mais de um aspecto, nos ajudam a melhor entender o funcionamento psíquico dos estigmatizados e de suas famílias. É o que tento fazer nos tópicos a seguir.

 

Do ódio contra si mesmo ao ódio contra sua herança

Desejo citar alguns exemplos em que se materializam, no portador do estigma, o ódio contra si mesmo e as defesas que ele cria para ocultar ou anular sua diferença. Aqui estão algumas manifestações possíveis:

• O branqueamento da pele entre pessoas de origem asiática, afro-antilhana, africana ou árabe; o alisamento do cabelo entre pessoas dos três últimos grupos; também, as diferentes mudanças de aparência pelo recurso a cirurgia estética e reparadora.

• A reconversão a outra religião, principalmente a de expressão majoritária.

• A adoção de argumentos racistas contra sua singularidade.

• A redução da diferença a um único traço, em detrimento dos outros, como a redução da cultura à religião, embora ela seja bem mais complexa do que isso. Observe-se o caso dos judeus europeus que esquecem que a identidade judia implica outras dimensões além da religião. Ao mesmo tempo, "exclui-se" do campo judaico os judeus ateus e laicos, por exemplo.

• A adoção de uma posição em falso self.

• A generalização desses funcionamentos entre os membros do grupo familiar ou entre parte dele.

• A escarificação. Um adolescente que se escarifica pode detestar em si mesmo um traço positivo de sua pessoa que ele imagina suscetível de agradar ao outro. Ele tende assim a punir sua sedução "natural" ou a querer privar o outro da satisfação que ele provoca. Trata-se de um ataque ao vínculo intersubjetivo.

 

O trabalho sobre si mesmo e os fundamentos da identidade

A relação do estigmatizado com o social é indiscutível, mas o trabalho sobre si mesmo é uma preliminar. O ódio contra si mesmo preexiste a qualquer consideração a respeito do estigma. Blaise Pascal (1669/2000) relaciona o ódio contra si mesmo ao fato de que o sujeito se vê como um pecador entregue à sua volúpia natural; mas ele não é forçosamente destrutivo e pode ajudar a nos conhecermos melhor.

No artigo "Pascal: o ego" (1997), Le Guern estuda a origem do ego, sublinhando a guinada pascalina. Descartes (1637/1974), através de seu "Cogito, ergo sum", considera que a questão do ego está estreitamente associada à razão. Depois dele, Pascal liga essa questão à possibilidade de amar ou de odiar, ou mais precisamente ao fato de que o ego pode ser amado ou odiado. Para Pascal, o ego não é uma abstração; suas qualidades tomam um sentido na medida em que são objeto de sentimentos que emanam dos outros. Outro testemunho de sua tomada de posição em relação à vida emocional é o adágio extraído de seus Pensamentos: "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Se o intelecto tem uma parte brilhante, a razão, o coração tem um lado sombrio e misterioso, a intuição. Ela é sensível às emoções, às impressões internas, vindas do coração. Não se alcança a verdade enquanto não se está em paz consigo mesmo. E o coração tem uma parte ligada ao mundo.

Antes de abordar o ódio contra si mesmo na obra de Pascal, é tentador precisar em que aspecto o ego, em psicanálise, difere daquele de Pascal e em que eles se parecem, ou melhor, o que, do ego psicanalítico contemporâneo, já está presente naquele proposto por Pascal. Na obra de Freud, o ego evolui até sua formulação mais completa, a de 1920, mas essa evolução continua. Sua conceitualização segue duas linhas: uma ressalta os conflitos do ego às voltas com a realidade, com o id e com o superego, que são independentes um do outro, mas se comunicam entre si; a outra insiste na oposição do ego aos objetos (Laplanche & Pontalis, 1967).

Na primeira linha, o ego sofre as coações das instâncias e da realidade. Segue-se um conflito entre elas - o ego é submisso a uma tripla servidão (Freud, 1923/1991). Quando se trata de moderar as reivindicações do id, o ego serve de porta-voz do princípio de realidade. Em todos os casos, o ego só se desenvolve ganhando terreno sobre o id. Depois de Freud, aprofundaram-se os vínculos entre o eu e o outro. Em especial, observa-se aí uma nova

instância: o si mesmo, que se enriquece daquilo que o mundo remete ao ego. Melhor dizendo: eu me encontro em uma dependência, em relação ao modo como o mundo me olha e me julga; eu me sinto digno de valor pelo reconhecimento, primeiramente do outro, em seguida de mim mesmo, quando o reflexo externo se torna reflexo interno e quando ele se desenvolve, na medida em que me vejo como um outro me olhando. O ego lida com percepções. O que acabamos de ver é uma delas.

O ponto de encontro com o ego pascalino se situaria aqui: o ego é um ego submisso ao olhar dos outros. São preocupações comuns ao filósofo e aos psicanalistas. Diante do enigma da formação do ego, Laplanche e Pontalis concluem, por exemplo:

O ego não é tanto um aparelho que viria a se desenvolver a partir do sistema percepção/consciência, mas uma formação interna que encontra suas origens em certas percepções privilegiadas, que provêm não do mundo exterior em geral, mas do mundo inter-humano. (1967, p. 253)

Não encontro alusão mais clara à intersubjetividade dos vínculos primários. Com certeza, a definição analítica será diferente da definição de Pascal, na medida em que este ignora o inconsciente e o aparelho psíquico, ignora a função das pulsões, do narcisismo, da sexualidade infantil e da identificação. Essa última teria sido útil para ele: a identificação permite o desenvolvimento do ego graças à integração de novos atributos.

Todavia, o ego de Pascal estaria próximo do eu e do si mesmo contemporâneo. Podem-se associar essas reflexões às dos autores modernos preocupados em determinar os fatores que estimulam ou inibem a autoestima. E o ódio, ao contrário do ego, não é o problema mais importante do deprimido, enfraquecido em seu si mesmo, seu ego, seu narcisismo? Não se introduziu a noção de crítica social para recomendar ao deprimido que evite o contato com as pessoas que o censuram (André, 2008)? Pelo modo como Pascal elabora o vínculo do sujeito às voltas com o olhar do outro e como ele propõe que o outro o integre em si, ele traz elementos originais.

"O ego é odiável" é a fórmula apresentada por Pascal. O ego é odiável, mas por quem? - questiona-se Le Guern.

A interpretação que vem mais amplamente à mente, quando se toma esse enunciado isolado de seu contexto, é que deveríamos odiar a nós mesmos. Mas, do ponto de vista da concepção pascalina do ego, essa interpretação é inaceitável. Aquele que odeia é necessariamente o sujeito; ora, para Pascal, o sujeito é o outro. A frase colocada na boca do interlocutor, de Mitton [personagem imaginário com quem Pascal dialoga], "não se tem mais motivo para nos odiar", significa: os outros não têm mais razão para nos odiar. Mas a transformação preconizada pela honestidade mundana não vai além das aparências. "O ego é odiável" significa, pura e simplesmente, que os outros não têm o direito de me odiar, porque eu sou, na qualidade de herdeiro do pecado original, um ser de concupiscência. O que Mitton encobre, o que ele se esforça realmente para esconder, é a tríplice libido: libido sentiendi [desejo sensual], libido sciendi [desejo de saber], libido dominendi [desejo de poder]. São as três concupiscências que tornam o ego digno de ser odiado. (1997, p. 179)

Segundo Pascal, o ego não é definitivamente corrompido pela "anomalia": cada ser humano está em condições de voltar a ser o que ele foi antes da queda, um ser natural. Isso significa que ele pode se emendar, reencontrar a virtude e, assim, ser digno de se fazer amar.

Para Pascal, a solução é religiosa, mas nós podemos estender essa perspectiva ao trabalho do sujeito para a conquista da verdade sobre si mesmo, em polêmica com suas tendências contraditórias, pulsão e censura, desejo e realidade, id e superego. É dessa maneira que se progride melhor no conhecimento de seu ser íntimo, descobrindo suas fraquezas, e não sentindo orgulho de suas pretendidas "virtudes". A autocrítica é um formidável motor; o auto-conhecimento, uma potencialidade de mudança. Nisso, ela pode favorecer o narcisismo trófico, a serviço do crescimento. Certos indivíduos utilizam a autocrítica para valorizar-se; outros, para tornar-se melhores. Diante do estigma, assim que estamos sob a influência do olhar do outro, o ódio contra si mesmo nos parece sem recurso. Aí está como, com Pascal, se pode transformar esse impasse em uma força.

 

Destinos do estigma

O estigmatizado espera muito do ambiente humano que o cerca. Sua aspiração é ser reconhecido, levado em conta, considerado um semelhante. Poucas palavras, sobretudo poucos gestos, vão tranquilizá-lo e permitir-lhe sentir-se apoiado. Como está trancado em sua bolha, ele descobrirá com surpresa que o grupo familiar, ou o de seus semelhantes, também está afetado. É uma ferida que atinge a identidade coletiva. Daí em diante, os objetivos da família parecem irrealizáveis.

No caso em que o estigma deixa um de seus membros inválido, não é raro que os outros se solidarizem espontaneamente. Por vezes, sob a pressão dos pais, as outras crianças (irmãos e irmãs do estigmatizado) se privam de solicitar amor, atenção, conselho, ajuda, lazer etc. Isso não parece contribuir para a saída da crise familiar.

Para atingir a inversão positiva do estigma em uma identidade assumida, não convém que os substitutos familiares se questionem sobre o papel que eles representaram e que eles devem representar daí em diante? Cada um dos pais tem expectativas ideais para o filho; ele deverá ser competitivo em inúmeras áreas. Isso o consolaria de suas falhas, de sua castração. Para a mãe, a criança representa o falo ideal sonhado; para o pai, o continuador que se inscreverá nos mais nobres valores de sua linhagem. Filho sonhado, idealizado, preenchendo uma carência. O ideal familiar é partilhado entre cada um dos membros da família, reunindo essas aspirações superiores. Os narcisismos feridos, o de cada um e o da família ancestral, queriam encontrar uma consolação na geração presente. Se a criança não preenche essas condições, como superar esses sofrimentos?

A criança, por sua vez, idealiza o vínculo primário com a mãe. Extrai daí toda a sua força, que evoluirá em autoestima. Inspira-se nas expectativas ideais dos pais para configurar seu ser sujeito. Mais precisamente, o núcleo de sua identidade se funda sobre a introjeção da fantasia parental da criança perfeita, que circula no vínculo intersubjetivo criança-pai-mãe.

Quando um handicap é descoberto, os olhos que observam o bebê refletem o estranhamento, a dor, a angústia do futuro. E um processo, que conduz ao enfraquecimento de si mesmo, começa a funcionar na criança: ela não poderá suportar a decepção de seus pais.

A diversidade dos casos de estigma que tento lhes apresentar não deveria impedi-los de notar que uma unidade psicogenética poderá ser encontrada se relacionarmos o ódio contra si mesmo e a vivência familiar, especialmente o sofrimento narcísico, o que não é um problema pequeno quando se trata da família: sua honra, seu orgulho, seus ideais estão comprometidos. O caso que relato a seguir ilustra esse processo.

 

A família diante do estigma físico

A família G me procura para tratar das dificuldades do filho mais velho, de 3 anos (Pierrot), que se tornou caprichoso, ativo, violento e desobediente após o nascimento do irmão, então com 8 meses (Jeannot). O mais velho sofre de uma luxação congênita do quadril, que exigiu várias cirurgias e inúmeros tratamentos, os quais lhe permitiram evoluir fisicamente. Os pais falam com muita emoção dos tratamentos realizados, da angústia que os dominou, dos sofrimentos físicos da criança durante esse processo. Ele me parece se desenvolver bem, já fala com bastante correção, aparenta ser esperto e disponível para o trabalho psicológico. Jeannot, presente à entrevista, é sorridente, comportado e sensível. Ele não apresenta problema físico. No início, Pierrot teria aceitado bem a chegada do irmão, mas em seguida tornou-se violento em relação a ele. Na entrevista, ele se mostra sobretudo indiferente a Jeannot e suporta mal que nos interessemos por ele.

A mãe confirma que essa atitude é cada vez mais manifesta. Explica que Pierrot foi elogiado e bastante protegido durante os dois primeiros anos de vida. Muito preocupados, os pais sempre aceitaram seus caprichos e o cercaram de um máximo de ternura, evitando que ele sofresse a menor contrariedade. Apesar de seus progressos físicos recentes, eles dizem não estar ainda totalmente tranquilizados.

Após uma conversa com a família, propus instaurar uma sessão semanal para Pierrot e sessões mensais para toda a família.

O que ficará demonstrado pela sequência da terapia é que Pierrot não esperava tanto e que se instaurou um mal-entendido: ele tinha pensado que, se era tão privilegiado por tantos cuidados e se seus pais eram tão atenciosos com ele, era por ser uma "criança adorável", sobretudo para a mãe. Na verdade, ele não sofria com sua diferença; eram os pais que se ressentiam com o estigma. Ele se considerava uma criança excepcional e, provavelmente, concebia a fisioterapia como carícias um pouco mais fortes. Quando Jeannot nasceu, foi como uma ducha fria: havia outra criança na casa; essa vinda ao mundo desmantelava sua teoria.

Em inúmeras famílias, um filho único fica confuso após o nascimento de um caçula, mas aqui o enfraquecimento dos pais levou a que se alterasse a relação que mantinham com Pierrot desde o início de sua vida. Eles se esqueceram de tratá-lo como um filho igual aos outros, com ternura e rigor, segundo cada situação. Além disso, de acordo com o que me deram a entender, o problema físico tinha sido determinante no projeto de "fazer um segundo". Eles se consideravam pais condenados, até mesmo malditos. Carregavam uma tara genética que transmitiriam à descendência? Era preciso saber o mais rápido possível.

O que acabo de expor, eu compreendi sucessivamente e por etapas. Continuo.

A concepção de Jeannot e seu nascimento transtornaram totalmente o jogo familiar. Pierrot se vingava a seu modo, tornando-se insuportável e ao mesmo tempo detestável. Apesar de uma clara melhora a partir das primeiras entrevistas, persistiram ódios e decepções entre os membros da família durante certo tempo. O que pôde favorecer o surgimento de um comportamento mais cooperativo de Pierrot foi a análise das atitudes rígidas em cada um dos membros da família, que estimulavam sua agitação e sua oposição. Em uma sessão familiar, ressaltei que tudo isso provocava um sofrimento insuportável na mãe, desorientada para compreender por que a criança tinha mudado tanto em um ano. Também apelei para a responsabilidade de cada um, mais concentrada no seu sofrimento pessoal que no estado emocional do outro. Por exemplo, não podendo mais suportar a situação, os pais se mostravam demasiado reativos, sem procurar escutar o que Pierrot queria lhes dizer. Acrescentei que ele não parecia querer reconhecer a aflição dos pais, e que Jeannot (ainda um bebê), por seu ar alheio a tudo isso, parecia ignorar que a família estava dilacerada. Apesar da pouca idade, as crianças devem ter entendido minha mensagem. Na sequência, Pierrot manifestou um movimento de reaproximação. Acreditei importante incluir Jeannot em minha interpretação, a fim de que isso fosse escutado pelos outros, porque eu percebia que os pais já o hiperprotegiam.

Com Pierrot, em terapia individual, trabalhei duro todas as semanas. Hiperativo, ele desenhava e brincava pouco, mas brincando comigo estabilizou-se mais. Algumas cenas representadas por nós dois:

• Nós éramos bombeiros chamados para apagar o fogo em um apartamento situado nos andares superiores. Chegávamos e salvávamos, segundo a sessão, uma velha senhora, um bebê, uma criança, um cachorro etc. O jogo se repetiu com variantes. Pierrot queria geralmente ser o "salvador". Ele redobrava de esperteza e recebia os aplausos de vizinhos testemunhas da cena. Ele parecia adorar subir na "escada" e se mostrar fisicamente hábil (naquele momento, ele não tinha mais dificuldades para andar ou correr).

• Ele fazia o papel da mãe de uma criança que não tinha mais leite para a mamadeira. Eu era tanto um vizinho quanto o pai, a quem ele pedia que fosse buscar leite na farmácia. Ela estava fechada por motivo de férias ou porque era muito tarde. Ele me mandava percorrer o bairro até achar o leite. O jogo variou em seguida: o leite não era encontrado, e a criança ficava sem comer. Pierrot, a mãe, permanecia insensível.

• Ele me pediu para brincar de Chapeuzinho Vermelho e o lobo, determinando que fizéssemos um e depois o outro o papel da vítima, fraca ou aterrorizada, ele escolhendo para si o "bom papel". Por exemplo, eu fui a vovó devorada pelo lobo, além de uma Chapeuzinho ingênua, tola, que não se lembra do que acontece no conto e que, demorando-se no bosque colhendo morangos, não sabe evitar o perigo.

• Pierrot esperava que eu me zangasse, explodisse, o punisse, o proibisse de tocar um objeto ou de realizar um gesto. Ele parecia surpreso que minha única reação fosse interpretar sua agressividade. Essa compreensão deve tê-lo sensibilizado.

• Durante as duas sessões seguintes, ele via fantasmas perigosos, que invadiam a sala de terapia. Ele os combatia com armas e sempre ganhava. Não suportava minhas intervenções, especialmente quando eu ressaltava sua vontade de se mostrar superior e de humilhar ou me humilhar para esconder sua humilhação. Ele tinha um ar de triunfo quando, na brincadeira, me convidava a segui-lo como um cãozinho na coleira, me dava ordens e queria me rebaixar. Eu sempre aceitei suas propostas, reservando-me o direito de intervir na brincadeira, geralmente, por pequenas observações. Ele modificou sua atitude em relação a mim. Quando, daí em diante, ele manifestava resistências, ele preferia se calar, ou brincar de fazer a sesta, como se quisesse me dizer: "E agora, o que você vai me dizer desta brincadeira?". Aos 4 anos, parecia pensar como encontrar a melhor maneira de me dominar. Não excluo, no entanto, que suas produções fossem também menos calculadas, isto é, inconscientes. Mas ele parecia, cada vez mais, sentir prazer nesse trabalho.

• Quando ele estava calmo, nós "nos tornávamos" uma família que partia alegre em viagem, em seu carro cheio de "malas" (os brinquedos da caixa), mas ele se esquecia geralmente de levar Jeannot ou os bichinhos de pelúcia do irmão, que ficavam em casa.

Nas sessões familiares, a brincadeira era bem diferente. Pierrot se exasperava quando não estava no centro da discussão e, zangado, podia derrubar a caixa das canetinhas. Uma vez, ele representou um acrobata que se lança do trapézio, caindo sobre a banqueta. Esse modo de se jogar sobre a banqueta tinha alguma coisa de erótico... A mãe ficou impressionada ao vê-lo agir assim e teve medo de que ele se machucasse, quando objetivamente não havia perigo. Lembrei que, na sessão anterior, Pierrot tinha me dito ao sair "Até logo, papail", e que a mãe tinha se apressado em lhe explicar que eu não era seu pai.

 

Conclusão

À primeira vista, Pierrot detestava o irmão, mas não a si mesmo. Os pais rejeitavam sua anomalia, sentiam-se inconscientemente envergonhados de carregar uma herança defeituosa e de tê-la transmitido. Era seu estigma infame. Eles se odiavam. Essa aversão repercutia sobre o conjunto da família. Em Pierrot, a estigmatização de sua malformação complicou sua visão das coisas. A malformação física tornou-se um estigma a partir do momento em que a família se preocupou com ele. Do contrário, ele a teria vivenciado de outra maneira. Em todo caso, isso criou um mal-entendido que contribuiu para deformar a ideia que ele tinha de si próprio. De uma criança que parecia imperfeita para os outros, ele se tornou, para si mesmo, digno de alta veneração. Ele podia se permitir tudo. Não demorou a demonstrá-lo, desejando fazer as leis. Quando o irmão nasceu, ele pensou que tinha caído em uma armadilha e que não era uma criança adorável, mas depreciada daí em diante?

Para compreender o ódio contra si mesmo, os jogos de espelhos e de reflexos ego/o outro nos levam a uma pista promissora. Avançaremos nos questionando por que damos tanto crédito ao que os outros pensam de nós.

Nascer com uma anomalia ou criá-la nós mesmos estará estreitamente ligado ao ódio contra si mesmo enquanto ignorarmos o compromisso invalidante estabelecido pelo olhar do outro. Desmanchar esse olhar é uma tarefa a ser cumprida com o apoio da terapia familiar psicanalítica (TFP).

Antes de realizar a inversão positiva do estigma, é importante que o sujeito contribua para liberar os pais dos preconceitos que o estigmatizam.

 

Referências

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Correspondência:
Alberto Eiguer
154 Rue d'Alésia
75014 Paris, France
albertoeiguer@msn.com

Recebido em 8/3/2019
Aceito em 22/3/2019

 

 

1 Trabalho original publicado em 2013: Le Divan Familial, 31,71-84.
2 Agradeço aos membros do Comitê de Redação e Leitura do Divan Familial, bem como a Carine Maraquin, pela leitura atenta deste trabalho e por suas sugestões.

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