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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo ene./mar. 2019

 

ÓDIO

 

Fanatismo, ódio e narcisismo de morte1

 

Fanaticism, hatred, and death narcissism

 

Fanatismo, odio y narcisismo de muerte

 

Fanatisme, haine et narcissisme de mort

 

 

Carlos Augusto Ferrari Filho

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Os fantasmas da intolerância e do radicalismo uma vez mais voltam a assombrar. Numa tentativa de compreender o fanatismo por meio de uma abordagem psicanalítica, o autor examina o papel do ódio nas relações de objeto entre indivíduos, e portanto também na cultura, como elemento modulador dessa guinada em direção à intolerância nos anos 2000. Para isso, apoia-se em algumas ideias do escritor israelense Amos Oz, extraídas do ensaio "Sobre a natureza do fanatismo". À luz da metapsicologia, estuda os seguintes fatores: narcisismo, masoquismo primário e sadismo, e relações entre o ego e um superego cruel, com ênfase na possível influência desses três fatores na gênese do pensamento fanático. Examina também o potencial sublimatório da empatia pelo suposto inimigo como elemento capaz de relativizar o fanatismo - por exemplo, quando se faz uso do humor.

Palavras-chave: fanatismo, ódio, narcisismo, narcisismo de morte


ABSTRACT

The ghosts of intolerance and radicalism once again come to haunt us. In an attempt to understand fanaticism within a psychoanalytic approach, we examine the role of hatred in the object relations between individuals, and therefore also in culture, as a modulating element of this shift toward intolerance in the 2000s. Ideas of Israeli author Amos Oz, selected from his essay "On the nature of fanaticism" (2011), are used as a clinical element. The following factors are addressed from a metapsychological perspective: (a) narcissism; (b) primary masochism and sadism; and (c) relations between the ego and a cruel superego, with an emphasis on the possible influence of these factors on the genesis of fanatical thinking. Also examined is the sublimatory potential of empathy toward the supposed enemy, as an element that can relativize fanaticism, such as when using humor.

Keywords: fanaticism, hatred, narcissism, death narcissism


RESUMEN

Los fantasmas de la intolerancia y del radicalismo vuelven a rondar. A partir de un intento de comprensión del fanatismo dentro de un enfoque psicoanalítico, se examina el papel del odio en las relaciones de objeto entre individuos y, por lo tanto, también en la cultura, como elemento modulador de ese giro hacia la intolerancia en los años 2000. Se utilizan como elemento clínico algunas ideas del escritor israelí Amos Oz extraídas de su obra "Sobre la naturaleza del fanatismo" (2011). A la luz de la metapsicología se estudian los siguientes factores: a) narcisismo; b) masoquismo primario y sadismo; y c) relaciones entre el ego y un superego cruel, con énfasis en la posible influencia de estos factores y la génesis del pensamiento fanático. Se examina también el potencial sublimatorio de la empatía en relación al supuesto enemigo como elemento capaz de relativizar el fanatismo, por ejemplo, cuando se hace el uso del humor.

Palabras clave: fanatismo, odio, narcisismo, narcisismo de muerte


RÉSUMÉ

Les fantômes de l'intolérance et du radicalisme viennent nous hanter une fois de plus. À partir d'une tentative de compréhension du fanatisme dans une approche psychanalytique, on examine le rôle de la haine dans les relations d'objet entre les individus et, par conséquent, également dans la culture, en tant qu'élément modulateur de ce tournant vers l'intolérance dans les années 2000. On utilise, en tant qu'élément clinique, certaines idées de l'écrivain israélien Amos Oz extraites de son ouvrage "Sobre la naturaleza del fanatisme" (2011). A la lumière de la métapsychologie, les facteurs suivants sont étudiés : a) le narcissisme; b) le masochisme primaire et le sadisme ; et c) les relations entre le moi et un surmoi cruel, en insistant sur l'influence possible de ces trois facteurs dans la genèse de la pensée fanatique. Il examine également le potentiel sublimatoire de l'empathie concernant le prétendu ennemi en tant qu'élément capable de relativiser le fanatisme, par exemple, lorsqu'on utilise l'humour.

Mots-clés: fanatisme, haine, narcissisme, narcissisme de mort


 

 

O sadismo mata o outro, mas o masoquismo mata o sujeito.

ANDRÉ GREEN

 

Introdução

Os fantasmas da intolerância e do radicalismo uma vez mais voltam a assombrar. Num contexto geopolítico infestado pelo nacionalismo exacerbado, no qual os que pensam diferente são vistos como o inimigo a ser destruído, nos sentimos perigosamente mais próximos de cenários beligerantes, que em tempos não tão remotos conduziram nações à guerra. Perde força a onda humanista da segunda metade do século XX, a qual, entre outros aspectos, valorizava o livre pensar. Numa tentativa de compreender o fanatismo por meio de uma perspectiva psicanalítica, abordamos a força do ódio nas relações de objeto, e portanto na cultura, como elemento modulador dessa guinada em direção à intolerância. O escritor israelense e ativista Amos Oz sustenta a ideia de uma saída negociada para o conflito entre Israel e Palestina, pela qual ambos aceitem como legítima a demanda do opositor. No ensaio "Sobre a natureza do fanatismo", Oz defende a universalidade de um "gene fanático que todos levamos dentro" (2011, p. 41), um fenômeno que, quando exacerbado, pode ser considerado um dos responsáveis pela nova onda de radicalização pós-anos 2000. Neste trabalho, que propõe uma leitura das ideias de Amos Oz à luz da metapsicologia, examinamos o possível papel na gênese do fanatismo dos seguintes elementos: 1) o narcisismo, em particular o conflito entre narcisismo de vida e narcisismo de morte; 2) o masoquismo primário e o sadismo, enquanto movimentos da pulsão que determinam a estruturação do sujeito e a sobrevivência do self; 3) a relação de dominação entre o superego e o ego. Examinamos também, brevemente, uma possível saída sublimatória para o fanatismo, catalisada pela relativização do controle sádico exercido pelo superego através do uso do humor.

 

Amos Oz e o pensamento fanático

Em essência, a batalha entre judeus e árabes palestinos não é uma guerra religiosa, ainda que fanáticos de ambos os lados façam o impossível para convertê-la em guerra religiosa. Fundamentalmente não é mais que um conflito territorial sobre a dolorosa questão: "De quem é a terra?". [Tratase de um conflito] entre duas reivindicações muito convincentes, muito poderosas a respeito de um único e pequeno país.

AMOS OZ

Boa parte da população dos povos envolvidos na rivalidade entre Israel e Palestina entende que a criação de dois Estados nesse restrito e intensamente disputado território seria a melhor saída para esse longo conflito.2 Apesar disso, não se visualiza no horizonte político a possibilidade de uma paz negociada para essa região enquanto, em ambos os lados, permanecerem no poder lideranças ultranacionalistas.

Amos Oz (2011) considera características do fanático a forte e inabalável crença de que a própria visão é a melhor e a determinação de impor seu pensamento ainda que por meio da força e, em casos extremos, da aniquilação de quem pensa diferente. Ele acredita que "há algo na natureza do fanático que é essencialmente sentimental e ao mesmo tempo carente de imaginação" (p. 24). A força da fé inabalável do fanático inunda seu discurso e sua prática com uma sentimentalidade exagerada, que atua para anular o outro através da tentativa de restringir sua capacidade de pensar. Tal ataque à diversidade de pensamento provoca um empobrecimento intelectual, um nivelamento por baixo, que esvazia, por retroalimentação, a criatividade no sujeito social, algo que seria expressão de uma suposta lei do "quanto menos criativo, melhor".

Do ponto de vista econômico, poderiamos especular, esse ciclo autolimitante seria consequência da ação deletéria da pulsão de morte, expressão de uma destrutividade que, em prol da sobrevivência psíquica, precisaria ser deslocada para fora do sujeito?

Em tom irônico, Oz diz também que o "fanático é um grande altruísta", pois em geral mostra-se mais interessado nos demais do que em si mesmo. Ele quer redimir, salvar o outro, nem que para isso seja necessário, in extremis, exterminar o pecador. "O fanático está mais interessado no outro do que em si mesmo, pela simples razão de que tem um si mesmo bastante exíguo, ou em absoluto nenhum si mesmo" (p. 28). Esse pseudoaltruísmo, amor objetal incapaz de sustentar-se, decorreria do amor narcísico marcado pelos desinvestimentos da pulsão de morte. Economicamente, diríamos que o falso altruísmo do fanático, um amor-ódio ambivalente, reedita primitivas vivências demarcadas pelas vicissitudes do sadismo-masoquismo dentro do espectro do narcisismo de morte.

Existem saídas para essa enrascada, produzida pelo pensamento fanático tanto nos indivíduos quanto na cultura? Amos Oz acredita que "a imaginação talvez possa imunizar parcial e limitadamente contra o fanatismo" (p. 32), referindo-se à possibilidade de escapar às armadilhas do pensamento único, da convicção de que se está do lado certo numa suposta guerra pela verdade. Constituiriam alternativas o exercício da empatia em relação às ideias do outro, notadamente quando elas causam antipatia, assim como a adoção de certa autocrítica em relação às próprias convicções. Esses elementos, segundo Oz, costuram as condições para a construção "da capacidade do humor", que "é um grande remédio" (p. 34). Ele afirma:

A habilidade de rir de nós mesmos é uma cura parcial. A habilidade de nos vermos como os outros nos veem é outro remédio. A habilidade de existir em situações com final aberto, inclusive de aprender a desfrutar de tais situações, de aprender a gozar com a diversidade, também pode ajudar. (p. 34)

Ser capaz de imaginar caminhos alternativos para si mesmo, nos quais o sujeito pode empaticamente colocar-se no lugar do inimigo, teria o condão de transformar, elaborativamente, relações de objeto? Em outras palavras, seria o bom humor uma via sublimatória para o ódio?

Ainda discorrendo sobre como lidar com o fanatismo, parafraseando John Donne,3 Oz acrescenta que "nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme e a outra olhando o oceano" (p. 39). Referindo-se à natureza das relações de objeto características do fenômeno do fanatismo, acrescenta:

[Homens em conflito,] essas duas penínsulas deveriam estar relacionadas e, ao mesmo tempo, ser deixadas livres. ... Imaginar o outro, reconhecer a península que há em cada um de nós, pode constituir ao menos uma defesa parcial contra o gene fanático que todos levamos dentro. (p. 41)

Será possível sentir empatia pelo inimigo? O que fazer para relativizar nossos preconceitos? Como respeitar uma posição contrária, mesmo que legítima, quando ela se choca, ou compete, com os nossos interesses? Como dividir espaços quando há o desejo narcísico no sujeito, natural, que evoca um tempo de domínio do princípio do prazer, de querer tudo só para si? Ao falar de um gene fanático que todos levamos dentro, Oz descreve, à sua maneira, toda uma fenomenologia decorrente daquilo que pensadores psicanalíticos descreveram e nomearam, por exemplo, como efeitos da parte psicótica da personalidade (Bion, 1957), ou de uma organização narcisista (Rosenfeld, 1988), ou de uma organização patológica da personalidade (Steiner, 1989). Cabe lembrar que, quando Freud se ocupou em seus trabalhos pioneiros sobre os destinos da pulsão e as relações primitivas de objeto, em particular sobre o interjogo entre sadismo e masoquismo na estruturação do sujeito, já estavam postos alguns elementos que permitem pensar a gênese do fanatismo. É de algumas ideias de Freud - e de Green, quando este fala sobre o narcisismo - que vamos tratar a seguir.

 

Rudimentos do pensamento fanático sob a perspectiva do narcisismo

O ódio permeia as relações matizadas pelo fanatismo. Ódio ao outro, aos direitos do outro e, em especial, ao direito deste de pensar diferente. Se fôssemos pôr em palavras a intenção fanática, diríamos: "Não tens o direito de existir e muito menos o direito de dizer o que pensas, pois odeio perceber que pensas diferente. É o meu ódio que me legitima, quando ajo para eliminar-te. A tua morte me faz bem, porque reafirma a minha posição no mundo. Aniquilando-te, garanto a minha sobrevivência, ou a sobrevivência da minha fé, a fé na minha convicção, que para mim é a expressão da verdade absoluta".

Considerar o atentado suicida, uma das expressões mais radicais do fanatismo, a partir da perspectiva do sujeito que se mata em nome de uma suposta causa maior nos conduz a pensar sobre os destinos da pulsão e, em particular, sobre o narcisismo. Deixando de lado um complexo conjunto de variáveis, que inclui razões socioeconômicas e geopolíticas e, em especial, aspectos da feroz luta pelo poder, para nos centrarmos numa reflexão psicanaliticamente orientada, e fazendo ainda a ressalva de que a responsabilidade maior deve ser imputada à mente fanática, que à distância, friamente, decide onde e como acontecerá o próximo ataque, não caberia falar desse ato como um desesperado esforço pela descarga para fora de um instinto de morte desenfreado, que teria como objetivo uma imaginada sobrevivência do self? E, ato contínuo, pensar que, através da perpetuação dos efeitos terríveis de tal gesto, esse derradeiro movimento pudesse expressar o desejo de redimir uma existência insuportável?

Sem dúvida, estamos nos referindo aqui à dimensão delirante da alucinação negativa, seguida da gratificação alucinatória do desejo, na qual se abriga a fantasia onipotente de que o sacrifício garantiria, ativamente, a passagem ao paraíso. Seria a redenção, no último instante, a purificar uma existência de sofrimento, suportada passivamente.

Na tentativa de compreender o pensamento fanático como um conflito entre narcisismo de vida e narcisismo de morte, podemos ver na desinvestidura narcísica um possível destino alternativo à destrutividade potencial da pulsão de morte. Como afirma Green, "o narcisismo aparece como o núcleo mais medular das pulsões de vida, como o eixo portador de todo o futuro do eu, [sendo] o único, nessa época, que pode exercer uma resistência organizada contra as pulsões de morte" (2014, p. 58).

Por que a realidade externa se torna, nesses casos da mente fanática, intolerável? Não seria exatamente porque obriga a admitir a presença do outro, de um objeto que pensa, que tem ideias próprias, constituindo-se a diversidade uma ameaça mortal - uma realidade na qual os direitos e a voz do outro ferem de morte, a ponto de causar a imperiosa necessidade de explodi-la? Aquilo que se produz no polo motor, bombas que explodem tudo em mil pedaços, faz lembrar algo como a descarga maciça da pulsão de morte, uma deflexão daquela certa quantidade de pulsão de morte - masoquismo primário - que "não compartilha [da] transposição para fora [do sujeito, e] permanece dentro do organismo ... libidinalmente presa" (Freud, 1924/1976d, p. 204). Esse ritual suicida, organizado em torno de uma fantasia onipotente de ressurreição, funcionaria também, ao destruir as restrições impostas pelo mundo externo, como uma derradeira tentativa de garantir algo que seria como uma imortalidade delirante.

De acordo com Freud, a necessidade de lidar com a força da pulsão põe em movimento, através de investiduras (pulsão de vida) e desinvestiduras (pulsão de morte), a possibilidade de discriminação de um sujeito e, progressivamente, de um outro, o objeto, numa sucessão de movimentos que ativa o nascimento do psíquico. A partir dos trabalhos de 1920 (1976a) e 1921 (1976e), quando acrescenta à teoria da libido o conceito de uma dualidade pulsional entre forças de vida e forças de morte, o autor apresenta uma descrição mais abrangente da destrutividade, fortemente voltada para as noções de compulsão à repetição e autoagressão.

Freud refere-se a um oscilante interjogo econômico entre investir e desinvestir, no qual o que importa prioritariamente é a estruturação do sujeito e, a seguir, o reconhecimento do objeto. Numa tentativa de simplificação, poderiamos dizer que, em nome da sobrevivência do self, é a investidura do eu pela pulsão de vida, o narcisismo de vida, o movimento de abertura que avaliza o começo da existência psíquica, já que é esse o fato que se contrapõe à força da pulsão de morte, que opera no sentido da não vida, ou seja, de um hipotético desinvestimento absoluto.

Green, em seu conceito de andaime do narcisismo, que descreve tanto a força estruturante quanto o aspecto frágil do "todo-poderoso e vulnerável narcisismo", diz que, para assegurar a sobrevivência da pulsão de vida, "a resistência se organiza em torno desse corpo [narcísico autoerótico] em luta contra as pulsões de morte ameaçadoras" (2014, pp. 59-60). Assim, o narcisismo é um

refúgio em que se instala a vida [através de algo que funciona] como um prodigioso biombo, que ao se organizar parece não ter falhas, [e no entanto, quando] a estrutura psíquica chega a fissurar-se, [este] se reduz a nada mais do que fachada, uma aparência que deixa transluzir sua fragilidade. (p. 60)

O autor ressalta que, diante da falta, ou restrição, do amor objetal, a investidura narcísica, abrigo provisório para a libido, representa uma instância de vida que freia ou, na pior das hipóteses, atenua as forças de não vida, denotando a proteção e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade desse arranjo.

Nessa perspectiva, o grito-ataque do fanático não poderia ser considerado um derradeiro esforço (fadado ao fracasso) desse andaime narcisista, uma espécie de última viagem (sem volta), em que aniquilar o inimigo estaria a serviço do repúdio à insuportável presença do objeto diferenciado?

 

Mente fanática: implicações do ódio no narcisismo de morte

O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor.

Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo.

SIGMUND FREUD

O ódio parece ser companhia inseparável do fanatismo, talvez porque a intensidade desse sentimento, tão ativo, aparentemente contra tudo e contra todos, seja expressão do grau de desamparo tantas vezes experimentado passivamente na infância primitiva - talvez porque represente algo como o retorno do registro de vivências de não acolhimento e de desencontro, mas não quaisquer desencontros: estaríamos falando de frustrações repetidas diante da urgência da necessidade de atendimento, ou seja, do lento mas inexorável apagamento das investiduras da pulsão de vida. É esse ódio que nos leva a pensar no traumático nas relações primitivas de objeto como elemento significativo na gênese da mente fanática, especialmente nas vicissitudes do desinvestimento da pulsão de morte, movimento capaz de apagar a força de investidura da pulsão de vida e que, ao cobrir com desesperança aqueles momentos de vivo desejo direcionados a um não eu, faz com que, de maneira inapelável, a imagem do outro dentro do sujeito vá sendo revestida como objeto cruel, na medida em que este repetidamente desaponta.

Consideram-se aqui as possibilidades do traumático como expressão, primeiro, na situação de excesso - o invasivo objeto perverso violador do self - e, segundo, nos casos de perda ou de falta, quando o que dói é a dor do desinvestimento forçado, após a retirada do objeto libidinalmente investido, até então disponível. Se depois do traumático a vida cronologicamente continua, ainda assim é necessário, em termos do self, lidar com zonas de experiências não elaboradas e, muitas vezes, não elaboráveis. A tendência seria a busca, através da compulsão à repetição, de relações de objeto em que se cristalizam, inclusive no transgeracional, saídas passivo-agressivas para o interjogo sado-masoquista sofrido passivamente.

Caso o narcisismo se configure como de morte ou, avançando em direção à triangularidade edípica, na estruturação do superego - quando os objetos parentais introjetados chegam também carregados de vivências marcadas pelo desinvestimento, representando algo como uma sucessão de vidas delimitadas pelo narcisismo de morte -, será muito difícil, para não dizer impossível, que um narcisismo de vida se estabeleça, pelo menos de forma que crie raízes profundas no sujeito. Na primeira situação, trata-se das implicações do predomínio de um narcisismo de morte na ontogênese, enquanto na situação seguinte seria o caso de considerar os efeitos do narcisismo de morte como elemento que, ao se introduzir no sujeito por via identificatória (superego), constituir-se-ia em algo como traços transgeracionais, um fenômeno que tenderia a se perpetuar no filogenético.

Uma situação não exclui a outra. É provável que, num elemento tão complexo, multideterminado e recorrente como o fanatismo, essas fenomenologias de um narcisismo de morte onto e filogenético aconteçam de maneira superposta e complementar. Viria antes a desestruturante fragilização primária do self pelo excesso de vivências marcadas com a força do desligamento? Ou o viés traumático estaria deslocado no sentido do sadismo secundário, consequência da carga tóxica gerada pela identificação e introjeção de objetos via estruturação do superego?

Em ambos os casos, o problema para o sujeito é ter que lidar com um excesso de forças de não vida, quando o desafio é, primeiro, a sobrevivência do self e, segundo, o nascimento da noção interna do objeto, ou seja, quando a demanda inadiável se relaciona ao viver psíquico.

Por óbvio, as forças de vida predominam. No entanto, no contexto da mente fanática, como tolerar a diversidade no seio da família, nos grupos, enfim na cultura, quando não está efetivamente constituída no interno, no espaço do vínculo, a tolerância ao outro? Como esperar algo de bom, no sentido de ter esperança, quando as relações de objeto primitivas carregadas com a desesperança da não vida tornam-se um imperativo? Se a capacidade de pensar criativamente está como que sequestrada pela desinvestidura do narcisismo de morte, que vida resta ao sujeito? Uma vida à beira da morte talvez, e se possível com um fim que carregue junto, para a morte, objetos experimentados como intrinsecamente malvados.

 

Caminhos alternativos à libido objetal

A descrição do desenvolvimento inicial do ego feita por Freud em 1915 (1976c), portanto ainda dentro da primeira tópica, refere-se à capacidade de, através de uma incipiente estruturação psíquica, estabelecer ativamente não só a distinção entre o interno e o externo, mas também a possibilidade de processar, via identificação e projeção, as primitivas experiências de prazer-desprazer.

O ego da realidade original ... se transforma num ego de prazer purificado, [em que] o mundo externo está dividido numa parte que é agradável, que se incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do próprio eu, que projeta no mundo externo e sente como hostil. O sujeito coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer. (p. 157)

Na construção da representação, ou melhor, na possibilidade de representação simbólica desses acontecimentos psíquicos inaugurais, uma "primeira objetividade [consiste na] capacidade de reconhecer em si mesmo o agradável e o desagradável, já que o mundo externo é, em si, indiferente" (Laplanche & Pontalis, 1967/2010, p. 141).

No caso do pensamento fanático, haveria a possibilidade de a excessiva carga de desinvestidura do narcisismo de morte determinar certo impedimento ao livre trânsito da libido objetal e o decorrente reforço da libido narcisista. Nesse sentido, a intolerância do fanático não poderia ser entendida como expressão da aversão pelo objeto? Ou, olhando através do seu contrário, como expressão da repulsa ao diferente, uma evidência do apego à indiferenciação, em que a tentação de retorno ao ego do prazer purificado, delirante repúdio às diferenças, se configuraria como ponto de fixação da libido?

Quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, prazer e desprazer significam relações entre sujeito e objeto. ... falamos de uma atração exercida pelo objeto proporcionador de prazer e dizemos que amamos esse objeto. Inversamente, se o objeto for uma fonte de sentimentos desagradáveis, há uma ânsia (urge) que se esforça para aumentar a distância entre o objeto e o ego. Sentimos a repulsa e o odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se a ponto de [causar] uma inclinação agressiva contra o objeto - uma intenção de destruí-lo. (Freud, 1915/1976c, p. 158)

Um exemplo disso não seria o altruísmo exagerado a que se refere Amos Oz, possível expressão do amor narcísico ambivalente, que diante da frustração explode em ódio?

O fanático é uma criatura por demais generosa.4 ... Quer salvar tua alma. Redimirte. Liberar-te do teu pecado, do erro, do [vício de] fumar ... melhorar teus hábitos, conseguir que pares de beber ou de votar. ... Dos dois um: ou nos abraça no pescoço porque nos quer de verdade, ou se lança em nossa jugular se demonstramos ser uns mal-agradecidos. (Oz, 2011, p. 28)

O que o fanático ama é a ausência das diferenças. Enquanto o outro é visto como sua extensão narcísica, o fanático derrama-se em cuidados e atenção, mas, logo que a alteridade é percebida, sente explodir em si o desejo de aniquilamento desse outro.

Diríamos que esse altruísmo postiço, o "si mesmo bastante exíguo", ancorado na função andaime do narcisismo de vida, é suficientemente forte para assegurar a sobrevivência do psíquico diante do caos das desinvestiduras maciças. Por outro lado, qual duas faces da mesma moeda, atesta a vulnerabilidade desse arranjo no fanático, quando ele tem de lidar com o livre pensar do outro.

Essa confusão entre amor e ódio, ou essa labilidade dos afetos, caberia na descrição do que Freud chamou de fases preliminares do amor:

Reconhecemos [na] fase de incorporação ou devoramento um tipo de amor [ambivalente] que é compatível com a abolição da existência separada do objeto. Na organização sádico-anal, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia de dominar, para a qual o dano ou aniquilamento do objeto é indiferente. (1915/1976c, p. 160)

A metáfora do homem-península versus o homem-ilha pode ser entendida como alusão à problemática envolvida com o amor-ódio da ambivalência. Mas é também uma crítica à natureza guerreira do ser humano, fato que o leva, em face das disputas, a confundir vencer com destruir, em detrimento da busca de uma solução negociada, em que cada uma das partes aceita perder um pouco em prol de um acordo razoável, realista e com benefícios compartilhados. Na lógica do guerreiro, ganhar é ficar com tudo, sem nada deixar ao oponente.

Todo sistema político e social que nos converte a todos, e a cada um de nós, numa ilha darwiniana e ao resto da humanidade em inimigo, ou em rival, é uma monstruosidade. Mas todo sistema político, ideológico ou social que quer converter-nos apenas em moléculas [homogêneas] também o é. (Oz, 2011, pp. 39-40)

 

Relativizando fronteiras

Escapar do domínio fanático, quando se está dentro de conflitos de longa duração, significa respeitar a singularidade; implica exercitar a tolerância diante das diferenças, reconhecer peculiaridades e divergências. Segundo Amos Oz, significa acima de tudo desenvolver a capacidade de colocar-se no lugar do outro, perceber o problema identificado com a perspectiva do outro, pois a empatia com a dor e a raiva que o inimigo sente contra nós tem o condão de relativizar as coisas. "Nenhum dos lados é uma ilha, nem pode mesclar-se totalmente com o outro. Essas duas penínsulas deveriam estar relacionadas e, ao mesmo tempo, ser deixadas livres" (p. 41).

Pensando nessa comparação metafórica dentro de uma perspectiva psicanaliticamente orientada, poderiamos olhar para a intensidade da presença do narcisismo de morte no tempo primitivo onto e filogenético como um elemento de distinção conceituai entre relações-de-objeto-peninsula e relações-de-objeto-ilha. Assim, quando o objetivo for minimizar os efeitos do universal "gene do fanatismo", será necessário buscar saidas sublimatórias, re-forçadoras do narcisismo de vida, a exemplo do humor, naquelas situações em que o sujeito se sente perigosamente próximo de seus preconceitos (quando não, imerso neles). Nesse sentido, Freud e Oz têm uma posição semelhante. Escrevendo sobre o humor, Freud afirma:

[Na] atitude humorística, o superego está realmente repudiando a realidade e servindo a uma ilusão. [Nesse caso] encaramos esse prazer menos intenso [de divertir-se com algo sério] como tendo um caráter de valor muito alto; sentimos que [isso] é especialmente liberador e enobrecedor. ... O principal é a intenção que o humor transmite. [Ele] significa: "Olhem! Aqui está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças". (1927/1976b, p. 194)

De acordo com esses autores, o humor possibilita que coisas sérias, como o conflito entre narcisismo de vida e narcisismo de morte, sejam consideradas por meio de uma perspectiva relativizante. Certo distanciamento poderia permitir perceber que, na raiz de prolongadas disputas por território, a acirrada luta pelo poder geopolitico se prestaria também como cenário que repetiria compulsivamente primitivos sofrimentos infantis, a exemplo da reedição de questões e disputas fronteiriças, entre sujeito e objeto ou entre ego e superego. A ênfase está em conseguir pensar com liberdade, com a equidistância em relação ao conflito que o humor permite, nas ocasiões em que o sujeito fica dominado pela lógica da verdade irrefutável - em outras palavras, relativizando o peso de um superego cruel que asfixia as capacidades adaptativas do ego. Tal postura não implica menosprezar a importância dos elementos constitutivos do conflito em si, mas perceber o que é intrínseco à própria subjetividade. Distinguir os interesses legitimos nos dois lados facilita imaginar, através do pensamento criativo, soluções que contemplem tanto os interesses do sujeito quanto as necessidades do objeto.

 

Reflexões

Discutimos a hipótese de que no fanatismo o ódio à diversidade poderia ser entendido como expressão de registros primitivos não elaborados, produto de vivências do desencontro persistente entre o desejo de um sujeito que muito quer, ou muito necessita, e o objeto que não pode, não quer ou não tem o que dar. Nessa perspectiva, talvez se pudesse pensar no tenaz ódio do fanático, contra tudo e contra todos, como uma possível "linguagem" para o narcisismo de morte, um esforço desesperado e infrutífero que tenta contar a história do traumático decorrente da desinvestidura (pulsão de morte), que silenciosamente vai apagando no sujeito a expectativa do encontro com a vida psíquica (pulsão de vida). Na medida em que se constitui muito mais como registro de representação-coisa do que de representação-palavra, evidentemente não se poderia dizer que estamos de fato diante de uma linguagem (para o narcisismo de morte). Melhor talvez seja pensar esses fenômenos como pertencentes à ordem do não simbólico, dos elementos fadados à repetição compulsiva no próprio sujeito ou em seus descendentes - algo que, nesse caso, se tornaria uma compulsão à repetição transgeracional. Certas radicalizações do fanatismo, como o atentado suicida do homem-bomba, são no entanto tão ruidosas que, do ponto de vista da cultura, tornou-se um desafio inadiável esforçar-se para, em termos do mundo interno, visualizar os elementos responsáveis por esse gesto terrível, buscando entender a mente fanática.

 

Referências

Bion, W. R. (1957). Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities. The International Journal of Psychoanalysis, 38(1),266-275.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

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Correspondência:
Carlos Augusto Ferrari Filho
Rua Tobias da Silva, 253/203
90570-020 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 3222-6864
augustoferrari@terra.com.br

Recebido em 14/3/2019
Aceito em 8/4/2019

 

 

1 Versão modificada de um artigo publicado em 2017: Odeio, então, existo! Fanatismo, uma linguagem (possível?) ao narcisismo de morte. Revista de Psicanálise da SPPA, 24(3),571-585.
2 Uma pesquisa de opinião recente feita pela Universidade de Tel Aviv, juntamente com o Centro de Investigação Política de Ramala, mostrou que 55% dos israelenses e 44% dos palestinos entendem que a criação de dois Estados seria a melhor saída para o longo conflito entre Israel e Palestina (Sanz, 2017).
3 John Donne ficou famoso por sua poesia metafísica no século XVII. Oz alude a uma frase desse poeta (transformando-a): "Nenhum homem é uma ilha".
4 O estilo desse autor demonstra como o humor pode ser um antídoto contra o fanatismo.

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