SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.53 issue1Beyond good and evil: some comments on the psychoanalytic view of hatredA model for the psychoanalytic treatment methodology author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Da criatividade às criações1: uma viagem na companhia de Winnicott, Bion, De M'Uzan e Anzieu

 

From creativity to creations: a journey in the company of Winnicott, Bion, de M'Uzan, and Anzieu

 

De la creatividad a las creaciones: un viaje en compañía de Winnicott, Bion, de M'Uzan y Anzieu

 

De la créativité aux créations: un voyage en compagnie de Winnicott, Bion, de M'Uzan et Anzieu

 

 

Luís Claudio Figueiredo

Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir da questão da criatividade, tal como pode ser identificada no pensamento de Winnicott e de Bion, apresentaremos algumas ideias sobre a criação - a decolagem criativa -, tomando por interlocutores os psicanalistas franceses Michel de M'Uzan e Didier Anzieu. Trabalharemos com a criação nas artes, na literatura, nas ciências e nas próprias teorias psicanalíticas. Veremos como a inveja inconsciente extravia ou obstrui o processo criativo.

Palavras-chave: psicanálise da arte, arte da psicanálise, criatividade, criação, inveja, gratidão


ABSTRACT

Starting from the issue of creativity as it may be identified in Winnicott's and Bion's thinking, we will present some ideas on creation - a creative takeoff - by using the French psychoanalysts Michel de M'Uzan and Didier Anzieu as interlocutors. We will work with creation in the Arts, Literature, Science, and Psychoanalytic Theories. We will also examine how unconscious envy misleads or obstructs the creative process.

Keywords: psychoanalysis of art, art of psychoanalysis, creativity, creation, envy, gratitude


RESUMEN

A partir del tema de la creatividad, tal como se puede identificar en los pensamientos de Winnicott y Bion, presentaremos algunas ideas sobre la creación - el despegue creativo - tomando como interlocutores a los psicoanalistas franceses Michel de M'Uzan y Didier Anzieu. Vamos a trabajar con la creación en las artes, la literatura, la ciencia y en las teorías psicoanalíticas. También veremos cómo la envidia inconsciente extravía, u obstruye, el proceso creativo.

Palabras clave: psicoanálisis del arte, arte del psicoanálisis, creatividad, creación, envidia, gratitud


RÉSUMÉ

À partir de la question de créativité, comme on peut l'identifier dans les idées de Winnicott et Bion, présenterons quelques idées concernant la création - le décollage créatif - en prenant comme interlocuteurs les psychanalystes français Michel de M'Uzan et Didier Anzieu. Nous travaillerons avec la création dans les arts, la littérature, la science et les théories psychanalytiques. Nous verrons aussi comment l'envie inconsciente peut égarer ou obstruer le processus de création.

Mots-clés: psychanalyse de l'art, art de la psychanalyse, créativité, création, envie, gratitude


 

 

Apresentação

Abordarei a criatividade tomando como fundamento o ensino de Winnicott e de Bion. Mas, para tratar das criações, ou seja, da atividade de criar obras de arte, de literatura, de ciência, e mesmo obras teóricas em psicanálise, precisarei recorrer também a outros autores, como os franceses Michel de M'Uzan e Didier Anzieu. Ao final, proporei o esboço de uma visão integrada sobre esses dois temas, articulando esses diversos pensadores, e tentarei, com base nisso, reunir a ideia da arte da psicanálise com a da psicanálise da arte.

 

Preliminares

Apesar da polêmica envolvendo a questão, acho importante assinalar a existência de uma "metapsicologia" em Winnicott, na qual se situam as noções de criatividade primária e self verdadeiro.

É claro que neste autor não encontramos nada equivalente à metapsicologia freudiana. Textos metapsicológicos, no sentido estrito, só vamos encontrar em Freud, em alguns seguidores próximos de Freud, ainda que dele divergentes, como Hartmann, em contestadores, como Fairbairn, e menos nitidamente em Federn, Kohut e alguns franceses. Já em Melanie Klein e Winnicott podemos falar apenas em "metapsicologias", entre aspas, mas sem ignorar essa dimensão de seu pensamento.

Em Klein, a ênfase na observação clínica encobre inúmeros pressupostos metapsicológicos sobre os primórdios da vida psíquica, sua organização e dinâmica, como no caso do conceito de posição; em Winnicott, a ênfase na experiência também mascara elementos metapsicológicos não plenamente reconhecidos como tais.

Por exemplo, ao "relatar" a experiência arcaica e inaugural de um bebê humano - algo que não pode ser objeto de observação nem de testemunho, e que está em grande parte construído teoricamente com base na clínica psicana-lítica com pacientes regredidos -, Winnicott propõe uma cena do corpo/mente aos pedaços, num estado inicial de não integração das vivências no tempo e no espaço, à espera do ambiente facilitador para o florescimento do vir a ser si mesmo singular do sujeito, relativamente unificado. No entanto, entre as vivências de não integração e a resposta empática do ambiente, é preciso postular a existência de um potencial de integração e criação que opera desde o começo da vida em cada bebê humano. A esse potencial de vir a ser Winnicott denominou true self (verdadeiro self ou self verdadeiro). É o que se expressa no chamado gesto espontâneo. É a esse gesto, na verdade, que deve ser dirigida a reposta empática do ambiente facilitador; é ele que, sendo sustentado, reconhecido e espelhado pela "mãe", vai operando uma integração gradual das vivências despedaçadas, uma integração verdadeira e que não seja da ordem das defesas capazes de gerar "falsas integrações", como no chamado falso self.

O amadurecimento emocional produzido pela operação do self verdadeiro reconhecido (e esse reconhecimento é fundamental) está nas raízes da criatividade primária, uma capacidade de produzir uma vida criativa, no sentido de ir entrelaçando estreitamente encontrar e criar, descobrir e inventar um mundo humano, pleno de valor e significado para cada sujeito. A criatividade primária está, assim, na origem da vida criativa, e não imediatamente na das criações.

Há fortes precursores da perspectiva winnicottiana acerca da criatividade psíquica primária, ainda que outros analistas não usem esse termo. Freud e Klein, por exemplo, apontam para uma dimensão "criativa" do psiquismo. Basta pensar no que Freud supõe acontecer quando, após uma experiência de satisfação, o objeto é perdido: o bebê alucina, uma atividade criativa essencial. Nos retornos do recalcado e (como pensamos atualmente) nos retornos do cindido, operam forças insistentes, que não só produzem repetições, mas, nos sintomas, nos sonhos e nas transferências, geram novidades. Não há nesses fenômenos apenas retorno e reedição; há também criação de novas formas e figuras. O isso freudiano (id) e a pulsionalidade daí emanada trazem consigo algo da criatividade psíquica. Por sua vez, o conceito kleiniano de phantasia inconsciente comporta uma dimensão criativa ainda mais acentuada que o isso freudiano: as phantasias inconscientes tanto já são um produto da criatividade de todas as operações psíquicas e corporais (por exemplo, as pulsões, ou instintos, como se expressam em inglês) quanto produzem movimentos psíquicos novos e originais. Nessa mesma direção, Winnicott nos fala da elaboração imaginativa das funções corporais, ainda distante do tema da criatividade primária, mas bem próxima da questão das phantasias inconscientes, tal como apresentada por Melanie Klein.

Na tradição freudo-kleiniana, Wilfred Bion ainda irá mais longe na apreensão dessa dimensão criativa. Os "pensamentos" à procura de um aparelho para pensar em Bion - pensamentos selvagens - são "emanações" da experiência emocional antes do processamento, mas que procuram entrada no psiquismo e nele criam espaços de continência, figurabilidade e transformação. Pensamentos selvagens - a rigor, protopensamentos ou pensamentos pro-tomentais - trazem consigo uma imensa carga criativa, e são capazes não só de mobilizar uma elaboração que os conduz a formas de pensamento maduro e conceitos como de criar um aparelho para pensá-los.

Na verdade, subjaz às teorizações de Bion a crença e aposta numa energia vital que diferencia os seres animados dos seres inanimados, o que o aproxima de Bergson e de sua teoria do élan vital. Bem bergsoniano, Bion sugere que nosso aparato intelectual - esquematizante, racional e matemático - é adequado para lidar, observar e medir apenas o mundo inanimado, mas que só através da intuição podemos ter acesso à vida propriamente dita. Um trecho no capítulo 6 de Learning from experience é totalmente formulado nestes termos: "Parece que nosso rudimentar equipamento para 'pensar' pensamentos é adequado quando os problemas estão associados ao inanimado, mas não quando o objeto da investigação é o fenômeno da vida ela mesma" (Bion, 1962, p. 14). Nessa medida, sem o nome de criatividade primária, encontramos em Bion, como em Winnicott, uma teoria da criatividade bastante reconhecível em sua ligação implícita com o filósofo francês d'A evolução criadora (Bergson, 1907).

 

Da criatividade às criações: domesticando pensamentos selvagens, Bion e Winnicott

Tomaremos de empréstimo o título de um livro de Wilfred Bion (1997/2018) para começarmos a nos aproximar do tema das criações. Vamos iniciar, porém, tratando do "método" winnicottiano, tal como exposto jocosamente num texto de 1945, deixando-nos guiar também pela leitura criativa que dele fez Thomas Ogden:

Não vou fazer uma revisão histórica, primeiro, e mostrar o desenvolvimento de minhas ideias a partir das teorias de outros, porque minha mente não funciona assim. Acontece que eu junto isso e aquilo, aqui e ali, formo minhas próprias teorias e então, por último, interesso-me em saber onde roubei o quê. Talvez esse método seja tão bom quanto qualquer outro. (Winnicott, 1978, p. 269)

Em sua leitura criativa, Ogden sugere que esse método está calcado justamente no que Winnicott pensa acerca do desenvolvimento emocional primitivo: "No processo de vir a ser um indivíduo, o bebê (e a mãe) juntam isso e aquilo, aqui e ali. A experiência primitiva do self é fragmentada, e ao mesmo tempo (com a ajuda da mãe) é 'reunida'" (2014, p. 120).

Nessa bela sacada de Ogden, fica faltando, contudo, o reconhecimento do papel da criatividade primária do bebê nesse processo de integração, reunião. De qualquer forma, é interessante vê-lo assinalar que a elaboração das teorias de Winnicott - uma verdadeira criação - se enraíza no mesmo "método" que opera na constituição de um self relativamente coeso. Ou seja, mediante a elaboração de suas ideias teóricas, Winnicott formulava seu idioma singular. Criar teoria era seu modo de dar continuidade a seu vir a ser.

Curiosamente, encontramos também uma "questão de método" em Bion quando ele fala de sua forma de usar os pensamentos selvagens. A passagem é um pouco longa, mas vale a pena reproduzi-la:

Se um pensamento sem pensador aparece, pode tratar-se de um "pensamento extraviado" ou pode vir a ser um pensamento com o nome e o endereço de um proprietário colado nele, ou pode ser um simples "pensamento selvagem". O problema do brotar de um tal pensamento é o que fazer com ele. O certo, se for mesmo selvagem, é domesticá-lo. Se o nome e o endereço do proprietário estiverem colados nele, ele poderia ser devolvido a seu dono, ou você pode deixá-lo de sobreaviso para vir buscá-lo quando quisesse. Ou, naturalmente, você poderia furtá-lo e torcer para que o dono se esquecesse dele, ou nem sequer notasse o furto, permitindo que você se apropriasse da ideia como se fosse sua. ... O que me interessa agora são aqueles pensamentos selvagens que brotam [itálico meu] e para os quais não há qualquer possibilidade de traçar de imediato qualquer tipo de posse ou mesmo de vislumbrar a genealogia daquele particular pensamento. (1997/2018, pp. 38-39)

Em seguida, Bion nos leva a considerar o estado de mente em que pensamentos assim brotam: um estado de mente relaxado, não integrado, onírico.

Tanto no furto de ideias alheias que nos ocorrem sabe-se lá como (e isso pouco importa) quanto, mais ainda, no trato com ideias que brotam em nossa mente sem que sejam nossas ou alheias (não nos chegam com nome e endereço), o que nos cabe é domesticar ou "aclimatar", e para isso precisamos criar uma mente para pensá-las, criar um espaço mental para contê-las em nossa mente ampliada e na mente da comunidade a que pertencemos. Pensamentos extraviados ou selvagens passam assim da condição de elementos P para elementos a, são "domesticados".

Em resumo e usando a formulação de Winnicott: um pouco daqui, um pouco dali, sem saber direito de antemão o que foi roubado de quem e o que brotou da experiência emocional do sujeito, os tais pensamentos selvagens, que vieram a brotar sabe-se lá como, antes de qualquer processamento e elaboração vão aos poucos encontrando um lugar.

Desse modo, a criação se dá a partir de experiências emocionais fragmentadas, reminiscências pouco integradas, encontradas inesperadamente como pensamentos extraviados e furtos involuntários. Cria-se então algum "aparelho" - um domus -, um sistema mais ou menos integrado de ideias capaz de reunir o que veio na forma de pedaços ainda não metabolizados, uma reunião a ser realizada segundo o idioma próprio de cada um, idioma que vai sendo formulado em cada criação, em cada obra artística, literária, científica etc. Cada obra estética ou teórica acrescenta algo à formulação desse idioma, em cujo léxico, gramática, retórica e estilo se realiza o si mesmo do autor. Tudo isso é propulsionado pela criatividade primária, ou por seu élan vital. A ênfase bioniana na noção de brotar nos remete justamente ao élan vital criador de Bergson e, ainda mais profundamente, à noção grega de physis, tão bem elucidada por Heidegger (1968).

Para vir ao encontro do tema deste evento, a arte da psicanálise pertence ao âmbito da physis, como entendida por Heidegger, e não ao da fabricação. Nossa chamada técnica não fabrica nada, não manipula; é a técnica de dar a ver, dar a experimentar, dar a pensar e dar ao vir a ser suas infinitas possibilidades. Nisso reside a arte da psicanálise. Neste momento, nos sentimos à vontade para passar da arte da psicanálise à psicanálise da arte.

 

O disparador da passaqem da criatividade à criação: o momento da decolaqem

Começaremos retomando uma ideia de Michel de M'Uzan, recuperada e desenvolvida por Didier Anzieu: a criação pode ser entendida como resposta aos impasses, às crises na integridade narcísica.

Assumamos, como ponto de partida na apropriação e elucidação dessa ideia, uma desproporção permanente e constitucional entre continente e contido nas experiências emocionais. Nossos afetos tendem sempre a ultrapassar nossa capacidade de pensá-los, no sentido que Bion dá ao pensar, a capacidade de elaboração e processamento dos afetos. Nosso aparelho para pensar pensamentos está sempre sendo pressionado a se expandir, para conter e processar experiências emocionais. É nesse contexto que faz sentido conceber crises, rupturas e mudanças catastróficas, outra noção bioniana.

Michel de M'Uzan fala do saisissement que está na origem dos atos criativos, da criação de obras literárias. É interessante ressaltar que essa noção foi tomada pelo autor francês do matemático alemão Ferdinand Frobenius, o que expande, por si só, o alcance da ideia para além do campo da criação artística e literária. "De qualquer modo ... o instante do saisissement me parece dizer respeito a uma experiência traumática" (De M'Uzan, 1964, p. 7).

No saisissement, o psiquismo é tomado por algo que lhe surge como que a partir de um "de fora", seja um fora de sua circunscrição física - como estímulos sensoriais -, seja um fora que, paradoxalmente, irrompe de dentro - como uma emergência pulsional e afetiva, ou uma imagem -, mas que põe em risco a consistência e unidade do eu.

O saisissement leva à ruptura da unidade narcísica, ou seja, a um retorno provisório à não integração. É a partir dessa experiência traumática que, em nosso entendimento, se explica a liberação e potencialização da criatividade primária. Agora, porém, não se trata apenas de constituição narcísica, mas de reparação narcísica mediante a criação de suplementos simbolizantes.2

Essa ideia de De M'Uzan explica por que os artistas e demais criadores não se notabilizam pela grande capacidade de simbolização. Ao contrário, trazem déficits nessa capacidade que os deixam particularmente às voltas com a desproporção antes assinalada entre a proliferação de respostas afetivas e imagéticas à experiência traumática e as formas disponíveis para contê-las e significá-las. Mediante a criação de obras, geram-se suplementos à sua capacidade simbolizante deficitária, criam-se objetos novos que correspondem a uma mente expandida. Ferreira Gullar dizia: "A arte existe porque a vida não basta". A famosa frase de um de nossos maiores poetas capta muito bem a ideia de suplemento, tão bem diagnosticada pelo analista francês em sua apreciação da "função" das obras criadas por artistas e literatos.

A expansão da mente se realiza nos objetos culturais que criamos -porque a vida não basta -, entre eles as teorias psicanalíticas, para enfrentar um déficit em nossa capacidade simbolizante, sempre aquém das necessidades quando clinicamos.

É com base nessas ideias de De M'Uzan, expressas num pequeno artigo de 1964, que Didier Anzieu (1981) elabora uma teoria mais completa do que ele chama de decolagem criativa,3 ou seja, a passagem da criatividade para a efetiva criação de obras, na qual, nas mais diversas áreas da produção estética, mas também nas ciências e na psicanálise, suplementos simbolizantes são necessários para conter e transformar nossas experiências emocionais. De acordo com Anzieu, a decolagem criativa depende de uma identificação heroica, isto é, de uma identificação com alguma figura exponencial e grandiosa de realizações criativas, não necessariamente na área em que o sujeito vai "decolar" - como foi o caso da identificação de Freud a Goethe. Mais adiante, retornaremos a essa questão para entender um extravio dessa identificação grandiosa, o qual produzirá um transtorno e mesmo uma impossibilidade na passagem da criatividade para a criação.

A partir de tais considerações, podemos abordar a questão da poesia (poiesis) no sentido amplo da criação. Poesia, nesse sentido ampliado, inclui a prosa de alta qualidade estética e a boa ficção, mas também a poética musical, pictórica, escultórica, arquitetônica, fotográfica, fílmica, coreográfica, além da criação teórica e científica, como era o caso do matemático Frobenius.4 Lembremos que coube a Freud um Prêmio Goethe pela qualidade poética de seus escritos.

Sugerimos a necessidade de levar em conta a criatividade do autor e seu "método" de decolagem na criação de obras e na formulação progressiva de seu(s) idioma(s) (cf. Bollas, 1992).5 Acreditamos que todos nós - ainda quando procuramos ter mais consciência do que roubamos e de quem, como é meu caso - fazemos algo parecido com o que confessa Winnicott: um pouco daqui, um pouco dali. E o fazemos quando conseguimos sustentar um estado de não integração, um estado semionírico, como sugere Bion, para lidarmos com o brotar de pensamentos extraviados e pensamentos selvagens. Ambos os tipos de pensamento, de diferentes maneiras, nos remetem a uma dimensão de alteridade - uma "alteridade do mesmo", paradoxalmente - que irrompe na unidade narcísica e a rompe.6

 

Inveja e gratidão na decolagem criativa: possibilidades e percalços

Também é necessário registrar a existência de empecilhos à decolagem. Talvez um dos mais sérios seja a transformação da identificação heroica, apontada por Didier Anzieu, numa relação de inveja.

Retomando o argumento, a identificação heroica é uma resposta grandiosa ao aspecto insuportável dos antigos traumatismos quando são evocados pela experiência traumática do saisissement. Mas se o herói, modelo para a identificação, torna-se objeto de uma inveja excessiva - visto que alguma inveja é natural que emerja - esse "sentimento",7 principalmente na condição de inveja inconsciente, poderá resultar em destrutividade e, numa formação de compromisso, em imitação. Nesses casos, a capacidade de criar será realmente impedida ou se extraviará numa atividade de pura cópia. Que a imitação surja como um meio-termo entre o impulso de destruir e o de preservar é algo que ainda não parece ter sido suficientemente estudado, embora as relações entre inveja, gratidão e criatividade sejam reconhecidas desde Melanie Klein (Klein, 1990; Roth & Lemma, 2008).

Evidentemente, não se trata de uma imitação primária, ou de uma imitação defensiva, precursora da identificação com o agressor, tal como Ferenczi postulou em seu Diário clínico (1990).8 Trata-se aqui de uma imitação que resulta de uma relação de objeto muito ambivalente com o modelo heroico: pela via imitativa, o modelo heroico é morto e, ao mesmo tempo, preservado. Em sua figura mais consumada, a morte do modelo e sua fiel preservação caracterizam-se como plágio. Às vezes, no lugar de um plágio, o resultado é, por exemplo, uma composição inconsistente tipo Frankenstein, um texto que dá a impressão de ser uma colcha de retalhos. Embora a colagem e o recurso a citações possam ser elementos legítimos de uma composição original,9 o que se sente nas obras em que prevalece a inveja inconsciente é a ausência do idioma singular do autor.

A principal consequência dessa via mimética ditada pela inveja é a impossibilidade de uma decolagem criativa. Sabemos que, durante certo período de formação, a cópia pode ser uma prática necessária, se não mesmo inevitável, mas a decolagem só ocorre quando a identificação heroica ultrapassa a imitação e o plágio. O que estamos sugerindo é que essa ultrapassagem requer uma atenuação da inveja inconsciente para que a relação com o modelo de referência comece a se pautar pela gratidão. Freud, podemos supor, tinha Goethe como herói, não para invejá-lo, mas para lhe ser grato.

No entanto, a capacidade criativa do autor, liberada pela gratidão na identificação heroica, nada produziria sem a criatividade do leitor (apreciador, ouvinte, espectador etc.) e seu "método" na recepção criativa de obras. Também em relação aos receptores de suas obras, o criador será grato, pois sem eles as obras não se realizariam totalmente.

É preciso que as criações exerçam o efeito do saisissement, levem seu público a um estado de relativa não integração, para que isso reclame e potencialize sua capacidade criativa, a fim de recriar a obra, ou melhor, criá-la de novo no idioma original que então se articula na mente do receptor. Assim, a mesma obra será recriada por diferentes públicos em diferentes épocas e espaços de sua recepção. Mas, igualmente, para que se dê uma recepção criativa, é necessário que os leitores agradeçam à obra e seu autor por sua existência.

Em outras palavras, a criatividade nos aparece como função do campo: há uma função poiética do "autor", que opera como instalador e curador de um campo criativo que convida o receptor criativo a operar como cocurador, criando de novo a obra em sua recepção, ambos movidos por uma mútua gratidão.

E ambos, no fundo, agradecem à obra criada pela oportunidade que ela lhes dá de encontro e de amadurecimento singular. Pois no centro desse campo está a própria obra com sua criatividade sui generis. Trata-se, portanto, de ver na obra de arte um poderoso objeto, capaz tanto de despertar fantasias quanto de contê-las, e de convocar simultaneamente autor e receptor para uma experiência criativa ao mesmo tempo compartilhada e absolutamente singular.10

Assim, cada obra de arte participa da formulação do idioma do "autor" e da criação de seu próprio aparelho de recepção criativa, vale dizer do idioma em que ela poderá ser recriada, apreciada e dita. Isso, às vezes, leva muito tempo, principalmente quando se trata de uma obra-prima fortemente inovadora. Por exemplo, é muito conhecida a passagem de Proust em À la recherche du temps perdu em que o romancista francês comenta a relação do público com as obras de Beethoven. Diz ele:

Foram os próprios quartetos de Beethoven (os de número XII, XIII, XIV e XV) que levaram 50 anos para dar vida e número ao público dos quartetos de Beethoven, realizando desse modo, como todas as grandes obras, um progresso, se não no valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos largamente constituída hoje pelo que era impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá-la. Isso que se chama posteridade é a posteridade da obra. É preciso que a obra ... crie ela mesma sua posteridade. (Proust, 1919/1957, p. 82)

Isto é, a audição dos quartetos tanto gerou imediatamente um saisissement traumático nos ouvintes quanto, no prazo de 50 anos, uma expansão da mente coletiva capaz de apreciá-los. Nessa medida, hoje essas obras já fazem parte da mente expandida dos ouvintes que as ouvem e de todas as obras musicais que se seguiram.

Igualmente, no caso de Van Gogh, em algumas décadas criou-se uma comunidade de apreciadores de sua pintura que não existia na época em que foram feitas, mas que não existiria ainda hoje senão como efeito dessas mesmas pinturas, desprezadas comercialmente em vida do pintor. Elas, desde então, fazem parte da mente expandida dos apreciadores de pintura em geral.

Ou seja, mesmo depois de produzida, uma obra-prima realmente original pode precisar de tempo para sua plena decolagem, o que só acontece quando se forma o campo criativo que lhe é próprio. Hoje, somos todos gratos a Beethoven e a Van Gogh.

Geralmente, contudo, a formação desse campo de decolagem não é tão demorada. As criações artísticas funcionam como convites mais rapidamente respondidos pelos eventuais receptores criativos, os campos se constituem e reconstituem mais prontamente, e nesses processos intermináveis nossos idiomas singulares vão se articulando e nosso vir a ser individual e coletivo vai sendo desenvolvido.

 

A arte da psicanálise

Trazendo de volta a questão da psicanálise da arte para a da arte da psicanálise, sugerimos que a criação de teorias psicanalíticas obedeça ao mesmo padrão e sirva às mesmas finalidades. Elas surgem quando nossas experiências emocionais nos desafiam e nos atordoam, pondo nossa criatividade primária novamente em ação potencializada. Então, criamos ideias, conceitos, teorias, novas estratégias e procedimentos para que nossa mente se expanda, de modo que possa conter e transformar os afetos e nos restabelecer alguma, sempre relativa e precária, unidade narcísica; criamos uma mente mais ampla e mais apta para nos ajudar a exercer nossa arte.

No entanto, essa mente expandida sempre chegará, para quem dela necessita e a cria, um pouco atrasada, e será no fundo insuficiente. Como todos os humanos, mas talvez de modo ainda mais intenso e sofrido, continuaremos carregando a desproporção entre nossos afetos e nossa capacidade de pensar. A angústia é nossa mais fiel e constante companheira.

Hora de lembrar os conhecidos versos de Drummond (1942/2012, p. 23):

Lutar com palavras

é a luta mais vã.

Entanto lutamos

mal rompe a manhã.

 

Referências

Andrade, C. D. (2012). O lutador. In C. D. Andrade, José (pp. 23-26). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1942)        [ Links ]

Anzieu, D. (1981). Le corps de l'œuvre. Paris: Gallimard.

Bergson, H. (1907). Dévolution créatrice. Paris: PUF.         [ Links ]

Bion, W. R. (1962). Learning from experience. London: Jason Aronson.         [ Links ]

Bion, W. R. (2018). Domesticando pensamentos selvagens (L. C. U. Junqueira Filho, Trad.). São Paulo: Blucher. (Trabalho original publicado em 1997)        [ Links ]

Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano (R. M. Bergallo, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1989)        [ Links ]

De M'Uzan, M. (1964). Aperçus sur le processus de la création littéraire. In M. de M'Uzan, De l'art à la mort (pp. 3-27). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1990). Diário clínico (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Heidegger, M. (1968). Ce qu'est et comment se détermine la φύστς. In M. Heidegger, Questions i et il (K. Axelos et al., Trads., pp. 471-582). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1940)

Klein, M. (1990). Envy and gratitude. London: Hogarth Press.         [ Links ]

Ogden, T. (2014). "Desenvolvimento emocional primitivo", de Winnicott. In T. Ogden, Leituras criativas (T. M. Zalcberg, Trad., pp. 117-142). São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 2001)        [ Links ]

Proust, M. (1957). À sombra das raparigas em flor (M. Quintana, Trad.). Porto Alegre: Globo. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Roth, P. & Lemma, A. (Orgs.). (2008). Envy and gratitude revisited. London: Karnac.         [ Links ]

Saunders, G. (2018). Lincoln no limbo (J. Dauster, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Winnicott, D. W (1978). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. W. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (J. Russo, Trad., pp. 269-285). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1945)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3086-4016 | 11 3083-3731
lclaudio.tablet@gmail.com

Recebido em 19/11/2018
Aceito em 3/12/2018

 

 

1 Palestra de encerramento da jornada Psicanálise da Arte e Arte da Psicanálise, realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), em novembro de 2018. Agradeço a Nelson Coelho Junior, Mauro Meiches, Paulo de Carvalho Ribeiro e André de Martini pelas leituras, críticas e sugestões; a Ana Sabrosa e Mônica Aguiar pelo convite; e a Andreia Rocha de Vasconcellos pela leitura das sucessivas versões deste texto, o que me ajudou a aperfeiçoá-lo.
2 Reencontramos aqui a ideia de pensar a criação em termos de reparação, proposta por Hanna Segal. No entanto, o sentido do que estamos sugerindo é bem distinto.
3 Não será possível neste momento fazer plena justiça às concepções de Anzieu, que elucidam profundamente as ideias de crise criativa e de saisissement traumático numa teoria geral do trabalho criador, em todas as suas fases e dinâmicas. Cabe assinalar que ele tirou de Proust a noção de decolagem criativa, à qual se associa a de identificação heroica, sugerida por Daniel Lagache.
4 É evidente que, nas ciências da natureza, há um lugar importante reservado às evidências, mas tanto a invenção de dispositivos e delineamentos experimentais quanto a criação de hipóteses e teorias decorrem de uma atividade criativa que se aproxima do que estamos chamando de poética.
5 O plural se justifica seja pela existência de autores como Fernando Pessoa, que precisam formular diversos idiomas para dar conta da complexidade de suas experiências emocionais, seja pelo fato de um mesmo psicanalista, por exemplo, ter de formular diversos idiomas para estabelecer contato com diferentes pacientes e conter as experiências emocionais particulares a cada encontro.
6 Por vias distintas, Paulo de Carvalho Ribeiro e André de Martini me chamaram a atenção para o lugar da alteridade e da diferença na passagem da criatividade às criações.
7 A rigor, não se trata de um sentimento (por isso as aspas), uma vez que essa inveja é uma inveja inconsciente e, nessa medida, não é propriamente sentida enquanto tal.
8 Em seu Diário, Ferenczi sugere a relação de imitação entre o meio e uma espécie animal e também como resposta do sujeito traumatizado ao agressor.
9 É o caso do romance extraordinariamente criativo Lincoln no limbo, de George Saunders (2018).
10 Coelho Junior (comunicação pessoal) sugere a ideia trazida por André Green do par pulsão-objeto como relevante, no plano metapsicológico, para a compreensão desse campo de criatividade.

Creative Commons License