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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Emoção e o referencial de Bion: emoção, não emoção e linguagem do analista

 

Emotion and Bion's referential: emotion, non-emotion, and analyst's language

 

Emoción y el referencial de Bion: emoción, no emoción y lenguaje del analista

 

L'émotion et le référentiel de Bion: l'émotion, la non-émotion et le langage de l'analyste

 

 

Celia Fix Korbivcher

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora examina a noção de emoção sob o vértice teórico de Bion. Estuda situações clínicas que envolvem forte emoção e situações de ausência de emoção, específicas de estados primordiais da mente - estados autís-ticos e estados não integrados. Desenvolve ideias sobre o tipo de linguagem que o analista deve empregar diante desses estados de mente. Para isso, recorre à teoria de Transformações, de Bion, particularmente às transformações em O. Propõe que a linguagem do analista com tais pacientes poderia ser o que denomina de linguagem de emoção, o analista "tornando-se" a emoção do momento. Apresenta material clínico de dois pacientes com o intuito de ilustrar as questões levantadas no trabalho e estimular a discussão.

Palavras-chave: emoção, não emoção, linguagem do analista, estados primordiais da mente, transformações em O


ABSTRACT

In this paper, the author examines the notion of emotion under the vertex of Bion's theories. Among patient situations, she studies cases that involve strong emotion and situations of lack of emotion, which are specific to primitive states of mind - autistic states and unintegrated states. Inspired by Bion's Theory of Transformation (Bion, 1965), particularly transformations in "O", the author develops ideas on the type of language the analyst should use when dealing with these mental states. She proposes that the analyst's language for the access to these patients' mental states should be a "language of emotion", i.e. the analyst "becomes the emotion of the moment". And, from the author's perspective, this language is specific to transformations in "O". Clinical material is presented in order to illustrate the raised issues and stimulate discussion.

Keywords: emotion, non-emotion, analyst's language, Bion's theory, transformations in O


RESUMEN

La autora examina en este trabajo la noción de emoción bajo el vértice teórico de Bion. Se estudian situaciones de pacientes que involucran una fuerte emoción y situaciones de ausencia de emoción, específicas de estados primordiales de la mente, estados autísticos y estados no integrados. La autora desarrolla ideas sobre el tipo de lenguaje que el analista debe emplear ante estos estados. Para ello recurre a la teoría de transformaciones de Bion (1965), particularmente a las transformaciones en "O". La autora propone que el lenguaje del analista con tales pacientes podría ser lo que denomina un "lenguaje de emoción", el analista "convirtiéndose" en la emoción del momento. El material clínico de dos pacientes será presentado con el propósito de ilustrar las cuestiones planteadas en el trabajo y estimular la discusión.

Palabras clave: emoción, no emoción, lenguaje del analista, referencial de Bion, estados primordiales de la mente, transformaciones en O


RÉSUMÉ

L'auteur examine dans ce travail la notion d'émotion sous le côté théorique de Bion. Elle étudie certains cas de patients où l'on observe de fortes émotions et d'autres cas où l'on observe l'absence d'émotion, des cas spécifiques d'états primordiaux de l'esprit - des états autistiques et des états non intégrés. Cet auteur développe des idées concernant le genre de langage que l'analyste doit employer face à ces états de l'esprit. Pour ça faire, elle a recours à la théorie des transformations de Bion (1065), en spécial aux transformations en "O". Elle propose que le langage de l'analyste en présence de tels patients pourrait être ce qu'elle appelle un "langage d'émotion", où l'analyste "devient" l'émotion de ce moment-là. On présente le matériel clinique de deux patients dans le dessein d'illustrer les questions soulevées dans ce travail, et de stimuler la discussion.

Mots-clés: émotion, non-émotion, langage de l'analyste, états primordiaux de l'esprit, transformations en O


 

 

Em "O significado clínico da obra de Bion", Meltzer se pergunta:

Terá Bion sido bem-sucedido em construir uma teoria da mente que se presta a uma conceitualização substancial das emoções, que irá distinguir a psicanálise moderna de outras psicologias, incluindo a de Freud, na qual as emoções são tratadas seja como inserções primitivas, seja como ruidosa máquina ou manifestações corporais de estados mentais percebidos como emoções? (1998, p. 77)

Escrever sobre emoção é um desafio. Isso pode parecer paradoxal, por necessitarmos expressar em palavras experiências para as quais não encontramos meios precisos de tradução. Não temos acesso às emoções em si, apenas às suas aproximações. Emoções são vivências do indivíduo distantes do campo do conhecimento racional.

A palavra emoção significa "e-moção", "em movimento", "ato de mover". Quando duas mentes se encontram, cria-se um movimento, uma tormenta, como diz Bion. É a emoção que vai unir essas duas mentes. Quando a tormenta surge, "não se pode saber logo o que seria essa tempestade, mas o problema é como tirar proveito dela, ou seja, como transformar uma circunstância adversa numa boa causa" (Bion, 1979/1994, p. 321).

Em nosso trabalho clínico, somos frequentemente expostos a situações em que predominam estados de forte turbulência emocional. Alguns pacientes, envoltos nessa atmosfera, não são capazes de conter a emoção em sua mente, transformá-la e pensar sobre ela. Ao contrário, descarregam-na de forma violenta sobre a mente do analista.

Outros pacientes nos convidam a partilhar experiências nas quais prevalecem manifestações da mente primordial: estados não integrados e estados autísticos - esses últimos, dominados por sensações que não adquirem representação. Tais pacientes evadem-se do contato com a emoção e expressam-se principalmente com o corpo, por ser ele o palco em que encontram um estado de alguma coesão e um sentido de existência.

De quais instrumentos o analista dispõe, eu pergunto, para operar situações aparentemente adversas como essas, a fim de facultar ao paciente viver suas emoções, conscientizar-se delas, contê-las em sua mente, transformá-las em pensamento e numa linguagem que possa ser comunicada?

Numa de suas conferências, Bion nos convida a indagar: "Quem é o paciente com quem nos encontramos ao se iniciar a sessão; é uma pequena criatura primitiva ou uma pessoa desenvolvida; e que linguagem vamos utilizar com ele para estabelecer contato?" (1978, p. 176).

Parodiando Bion, indago: que linguagem o psicanalista deve utilizar com seu paciente em face de estados psicóticos de intensa emoção? Que linguagem ele deve falar com estados primordiais da mente de seus pacientes cultos e desenvolvidos? Que linguagem ele deve empregar para se comunicar com o corpo de seu paciente, com seus estados não integrados e barreiras autísticas? Como pode o analista usar sua capacidade de reverie e de função alfa diante de tais situações?

O meu intuito neste trabalho é investigar o conceito de emoção sob o vértice do referencial de Bion. Examino a manifestação de estados psicóticos de intensa emoção, estados autísticos em que prevalece ausência de emoção e estados não integrados em que a emoção não encontra um continente que a contenha. Desenvolvo ideias a respeito do tipo de linguagem que o analista deve utilizar para acessar seu paciente envolto em estados dessa natureza. Recorro para isso à teoria de Transformações (Bion, 1965/1984b), destacando em particular as transformações em O. Proponho que a linguagem empregada pelo analista para alcançar tais pacientes seria o que denomino linguagem de emoção, o analista "tornando-se" a emoção, linguagem própria das transfomações em O. Apresento material clínico de dois pacientes, Arthur e Leo, com o objetivo de ilustrar as questões abordadas no trabalho e estimular a discussão.

 

Emoção

Como diz Meltzer (1998), Bion em sua obra constrói de maneira inédita os alicerces de uma teoria das emoções. Ele situa a emoção no centro do desenvolvimento mental através do aprender com a experiência. Segundo Bion, a emoção decorre da relação entre continente e contido, ou seja, do contato entre duas mentes. A função alfa, uma função da mente, converte as impressões sensoriais e emoções em elementos alfa, propícios para pensamentos oníricos. Se a função alfa não operar e não atuar sobre as impressões sensoriais e emoções, teremos elementos beta, que não se prestam para pensar, mas para ser evacuados.

A emoção é o primeiro passo para o pensamento. O contato com ela resulta numa experiência emocional. Para Bion (1962/1984a), é esse o campo de trabalho do analista na sessão.

Caso uma experiência emocional não adquira representação simbólica para ser utilizada em sonhos e pensamentos oníricos, ela deverá, de algum modo, ser evacuada da mente. É tarefa do analista, portanto, partindo de sua intuição treinada, conter essa experiência emocional e, por meio de sua capacidade de reverie e função alfa, nomeá-la, a fim de possibilitar ao paciente mantê-la em sua mente, pensar sobre ela e, eventualmente, tornar-se a experiência.

Bion (1962/1984a) passa a centrar-se nos vínculos emocionais que conectam os objetos, e deixa de se interessar pela ideia de relações de objeto. De acordo com ele, as emoções têm a função de ligar os objetos, o que leva a compor as experiências emocionais. Os vínculos emocionais representam os três principais tipos de experiência emocional aos quais a função alfa se aplica: amor (L), ódio (H) e conhecimento (K), e seus negativos (-L, -H, -K).

Bion concebe o vínculo K como evolução de uma das emoções básicas pelo fato de o modelo de mente que emprega ser o de um aparelho para pensar os pensamentos e de aprender com as experiências emocionais que produzem impacto sobre ele.

Os vínculos negativos, por sua vez, caracterizam-se pela presença de manifestações de ódio dirigidas aos elos que unem os objetos, e não mais aos objetos. Não são os objetos que são atacados, mas os vínculos que os conectam. Pacientes que operam em -K têm "ódio a qualquer novo desenvolvimento na personalidade, como se o novo desenvolvimento fosse um rival a ser destruído" (Bion, 1962/1984a, p. 128). Inveja, voracidade, além de rivalidade e violência das emoções são os principais fatores presentes em -K, fatores esses que dificultam a atividade de conhecer.

 

Transformações em O

Escrever sobre O talvez pareça paradoxal, porque, como Bion o define, O é incognoscível. Podemos realizar apenas conjecturas a respeito dessa noção. O autor afirma:

Vou utilizar o sinal "O" para denotar o que seria a realidade última, representada por termos como realidade absoluta, verdade absoluta, deidade, infinito, coisa em si... "O" pode tornar-se, mas não pode ser conhecido. É escuro e sem forma, e entra no domínio de K quando evolveu num ponto no qual pode ser conhecido. (1965/1984b, p. 26)

Ele diz ainda:

Como passar de "conhecendo um fenômeno" para "sendo a realidade"? ... É possível, através da interpretação psicanalítica, efetuar uma transição de "conhecendo um fenômeno" para "sendo o self real"? . A interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento. . O hiato entre "conhecendo um fenômeno" e "sendo a realidade" se assemelha ao hiato entre "conhecendo sobre psicanálise" e "sendo psicanalisado". (1965/1984b, pp. 148-149)

Bion define O como a coisa em si, algo que não pode ser conhecido, mas apenas vivenciado. Sugere que a interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento: deve propiciar ao paciente tornar-se a emoção do momento e evolver, eventualmente, para algum conhecimento. Observa que o hiato entre conhecer um fenômeno e ser a realidade se assemelha ao hiato entre conhecer sobre psicanálise e ser psicanalisado. Proponho que possa haver um hiato entre o analista "conhecendo psicanálise" e "sendo psicanálise". Sendo psicanálise significa um analista que se apresenta na sessão com sua personalidade como um todo, com suas teorias encarnadas, agindo, re-agindo, interagindo com o paciente, um modificando o outro a cada movimento na sessão. O analista sendo psicanálise é um analista que se torna a realidade em vez de conhecer sobre ela.

A respeito de O, Grotstein escreve:

Bion atravessou agora o Rubicão da respeitabilidade psicanalítica em Londres e iniciou uma revolução metapsicológica, cujos ecos estão ainda repercutindo no panorama psicanalítico mundial ... e introduziu a incerteza cósmica interior ou exterior, a infinitude, o relativismo e a numinosidade como seu sucessor. (2007, p. 114)

Isso significa que Bion, ao conceituar O, promove uma mudança importante de paradigma na psicanálise. Ele abandona o âmbito do positivismo e expande a psicanálise para um campo infinito e ilimitado, escuro e sem forma, no qual o desconhecido, a incerteza, o mistério e a dúvida prevalecem.

Em Transformações (1965/1984b), Bion discrimina diferentes grupos de transformações, o que favorece ao analista orientar-se diante dos diversos níveis de comunicação propostos pelo paciente. Com sua visão multidimensional da mente, o autor oferece ainda uma base para o acréscimo de outros tipos de transformação.

De acordo com Bion (1997), umas das descobertas fundamentais da psicanálise seria o contato com equivalentes de restos embrionários, com estados mentais arcaicos encontrados em indivíduos civilizados e cultos, que exercem a função desenvolvida da fala, mas que apresentam padrões primordiais de comportamento. Tais estados mentais arcaicos correspondem ao que o autor denomina de estados inacessíveis da mente, estados embrionários acompanhados de manifestações de medo subtalâmicas. Essa área relaciona-se, a meu ver, à área dos fenômenos não integrados.1

Diante de estados não integrados, o indivíduo desenvolve barreiras autísticas, como uma proteção contra vivências de extrema vulnerabilidade e terror. No âmbito autístico, as relações entre eu e não eu ocorrem por meio de objetos-sensação (objetos e formas autísticas) (Tustin, 1986/2012). O indivíduo adere a superfícies em continuidade para evitar vivências de terror em face da consciência da separação corporal do objeto.

Em 2005, propus aproximar os fenômenos autísticos e a teoria de Transformações. Sugeri introduzir nessa teoria um novo grupo de transformações: as transformações autísticas. Em 2009, propus incluir também os fenômenos não integrados, constituindo as transformações não integradas.

As transformações autísticas, como as concebo, caracterizam-se por se formarem num meio autístico, o que implica a ausência da noção de objeto externo e interno. Algumas de suas invariantes seriam: presença de atividades autossensuais, ausência de vida afetiva, experiência de vazio afetivo. As relações entre eu e não eu ocorrem, como já mencionei, por meio de objetos-sensação (objetos e formas autísticas).

As transformações não integradas acontecem num meio não integrado. São caracterizadas pela presença de intensas manifestações corporais não mentalizadas, sem representação psíquica. Algumas de suas invariantes seriam: presença de manifestações corporais, constante estado de extrema vulnerabilidade, vivências de ameaça de queda num buraco negro, de diluição e de dissolução, ou seja, ameaça contínua de perda da noção da própria existência.

 

Linguagem do analista

Como sabemos, a palavra é um dos principais meios de trabalho do analista. Ela decorre da transformação da experiência emocional em elementos alfa, a fim de tornar essa experiência passível de pensamento. No entanto, pode revelar ou esconder, dependendo do tipo de emoção do momento; pode constituir um verdadeiro obstáculo na comunicação. A intuição e a imaginação do analista serão elementos importantes no processo de escolha da linguagem que ele utilizará com o paciente (Chuster, comunicação pessoal, 2016).

A linguagem usada pelas mães com os bebês pré-verbais é a prosódia do manhês. O bebê é atraído pela emoção da mãe veiculada por essa prosódia. O bebê "lê as expressões faciais da mãe e compreende seu significado emocional quando há uma concordância entre o léxico (verbal) e o não léxico (sons, entonações e gestos), aspectos da linguagem falada" (Norman, 2004, citado por Reiner, 2012, p. 34). Nesse tipo de linguagem, o relevante não é o conteúdo, o significado das palavras que a mãe emprega com o bebê, mas a prosódia. A emoção da mãe é veiculada por essa prosódia, pela entonação de sua voz, por sua musicalidade e ritmo, pela expressão facial, por seu tônus muscular ao carregar o bebê etc. Essa seria uma linguagem de emoção, a mãe em uníssono com o bebê, tornando-se a emoção do momento. Nos termos de Reiner (2012), seria a linguagem do tornando-se.

Proponho que o modelo de comunicação próprio da linguagem do manhês da mãe com o bebê corresponde, em certa medida, à noção de transformação em O (Bion, 1965/1984b). Esse tipo de transformação é uma experiência que emerge em certo momento da sessão analítica, momento em que paciente e analista encontram-se em uníssono, compartilhando ambos uma vivência emocional comum. Essa experiência não pode se tornar conhecida ou ser traduzida em palavras, mas apenas vivenciada. Sugiro que a linguagem que promove experiências dessa natureza seria uma linguagem de emoção, o analista tornando-se a emoção do momento, distante da linguagem do conhecimento (K). O analista comunica de modo verdadeiro, em determinado instante, algo que promove uma mudança no curso da sessão. Cada membro do par se modifica a partir desse instante, passando ambos a operar na dimensão de O.

Bion sugere a noção de linguagem de êxito, baseada na ideia de Keats a respeito do homem que alcança, "o homem que, por meio da capacidade negativa, tolera dúvidas, incertezas, mistérios, sem a busca desesperada pelo fato ou motivo" (1970/2004, p. 125). A linguagem de emoção decorre do uso da capacidade negativa por parte do analista, podendo tornar-se uma linguagem de êxito, uma linguagem que vai permitir que uma nova experiência seja criada.

 

Material clínico

Arthur, 8 anos

Quando o chamo na sala de espera para a sessão, Arthur deixa o corpo flácido despencar no chão. Ele se arrasta até a sala de análise e se atira sobre o divã, onde permanece esparramado por algum tempo. A seguir, levanta-se e pega duas espadas grandes de plástico na caixa de brinquedos. Com muito cuidado, ele as enfia em ambas as pernas, na lateral da calça. Confere com atenção se a perna direita está firmemente sustentada e depois repete a operação com a outra perna. Muda a posição das espadas, enfiando uma delas por dentro da camisa, nas costas, cobrindo sua coluna dorsal. Passa a andar todo orgulhoso pela sala, exibindo seu corpo ereto e firme.

Em outra sessão, ao chamá-lo, encontro-o todo esparramado sobre o corpo do motorista, totalmente absorto com um celular. Ele não reage à minha presença. Finalmente, meio cambaleante, com o corpo flácido, dirige-se à sala e atira-se no divã, onde fica por um tempo. Em seguida, solicita que eu lhe faça um avião de papel. Tenta fazê-lo voar, mas isso não acontece - ele logo cai. Arthur fica muito bravo, lança o avião longe e, de súbito, atira-se no meu colo. Assusto-me ao ver aquele corpo estranho em cima de mim, uma massa flácida, sem vida, dando a impressão de que iria se dissolver e se esparramar. A minha emoção diante desse quadro é de muito desconforto, por não despertar ternura, acolhimento, diferentemente do que ocorre com outras crianças que buscam o meu colo.

Digo a Arthur que ele ficou bravo porque o avião não voou e caiu, talvez do mesmo modo que seu corpo, que não se sustenta em pé, por sentir não ter nada firme dentro de si, por sentir que tem um corpo mole e sem forma. Desloco-o para o sofá e procuro em sua caixa um fantoche. Mostro-lhe o corpo do fantoche, um corpo mole, sem contorno, esparramado. Digo que talvez ele se sinta como aquele fantoche, sem nada dentro do corpo. Enfio a mão no corpo do fantoche e faço Arthur observar como ele está firme agora. Digo que, ao grudar o seu corpo no meu, ele se sente mais firme e mais seguro. Arthur me escuta atentamente. A seguir, desliza o corpo para o chão e pega a família de bonecos, recolhendo-se numa atividade em que faz alguns movimentos acompanhados de sons. Escuto-o dizer: "Me cura, me cura!" Comento:

Você está me pedindo ajuda para não sentir tanto medo de se esparramar e de desaparecer para sempre. Você sente que, se eu segurar o seu corpo e tudo o que tem dentro dele, se ficar colado no meu colo, você se tornará menos amedrontado.

Continua entretido com os bonecos e diz: "Me segura! Eu vou virar uma gosma e derreter. Me segura, por favor! Por favor, me segura! Uma pessoa está caindo de um prédio, e se você a segurar, ela vai se salvar". Agarra-se em minha perna, fica colado em mim e diz: "Eu adoro você!" Pega uma boneca e fala de um paraquedas: "Eu tenho um paraquedas. Paraquedas salvam pessoas quando elas estão caindo, mas algumas pessoas morrem quando o paraquedas não funciona e não abre. Se você desce devagar com o paraquedas, ele salva você. Me salva! Me salva!" Observo:

Você tem medo de cair e não ter nada para segurá-lo, e tenta se segurar em mim como se eu fosse um paraquedas que não vai deixar você cair e desaparecer para sempre. Você agora está podendo falar para mim o que lhe dá tanto medo e está podendo me pedir ajuda.

Leo, 22 anos

Ao encontrar Leo para a sessão, percebo-me apreensiva devido a algumas faltas suas e a situações de tensão ocorridas entre nós em sessões anteriores. Eu não sabia o que me esperava. Nesse dia, Leo parece calmo. Entra, deita-se e diz num tom meio animado: "Tive um fim de semana diferente. Saí, fui a umas baladas, bebi muito e fiquei muito alegre, contente, como há muito tempo não ficava" Fala entusiasmado sobre as baladas e sobre os contatos diferentes que tivera no fim de semana. A seguir, bem mais desanimado, diz que apesar disso sente-se num estado de profunda solidão e que, ao chegar a sua casa depois das baladas, caiu na cama e ficou completamente largado.

Acompanho a narrativa. Penso numa polaridade entre excitação e depressão, mas não comento nada. Sinto-me pisando em ovos, temendo suas reações explosivas, inesperadas, que muitas vezes ocorrem depois de minhas falas. Passa algum tempo, e digo que estamos nos encontrando após vários dias separados; que talvez ele tivesse se sentido abandonado, só, durante o fim de semana, e que nas baladas encontrou algo que o fez se sentir melhor, mas que isso não durou. Num tom mal-humorado e hostil, Leo responde que os contatos das baladas foram muito bons mesmo, mas que se sente muito desanimado. Ele parece impenetrável.

Na tentativa de minimizar seu sofrimento, convido-o a se indagar se tanto a alegria das baladas quanto o desânimo, a solidão, precisariam ser tão intensos, e acrescento que talvez pudesse resgatar em sua mente o registro de momentos em que se sente bem, como nas baladas, a fim de não se sentir tão abandonado, tão só. Imediatamente, ele reage num tom de muita violência: "Eu sabia que você ia dizer isso! Você sempre diz a mesma coisa, sempre diz que eu deveria fazer diferente do que eu faço! É sempre assim! Eu até já sei o que você vai dizer! É sempre assim!"

Fico surpresa com essa reação abrupta, desproporcional. Percebo que Leo tinha escutado algo totalmente diferente do que eu dissera. De modo espontâneo, pergunto: "Mas o que foi mesmo que você escutou do que eu disse? Você poderia repetir?". Muito enfezado, ele não reage. Insisto, e com muita má vontade ele repete as mesmas palavras que eu tinha dito anteriormente. Percebo que, conforme vai falando, seu tom e sua emoção vão se modificando, dando a impressão de estar entrando em contato com sua situação mental.

Digo que ele parece, sim, escutar algo que está dentro de si, sempre a mesma coisa, críticas e maus-tratos, e que é difícil para ele tolerar que eu seja uma pessoa separada, que eu esteja lhe dizendo algo diferente daquilo que escuta. Leo me ouve atentamente, sua emoção se modifica, o clima de hostilidade desaparece. Num tom mais depressivo, observa: "Percebo o que você está dizendo".

Após um tempo em silêncio, envolto em muita dor, comenta: "Eu me lembrei de algo que li há muito tempo que falava a respeito disso" Pergunto sobre essa lembrança, e ele explica que era algo que dizia que, "para formar um par, é preciso ser só, é preciso ser um". Diz que escutou isso há muito tempo e que só agora fez sentido para ele. Fico impressionada com essa lembrança, que irrompe ali, naquele instante - com o modo como transformou o que havíamos vivenciado há pouco na sessão. Observo que algo tinha se modificado dentro dele, que por meio dessa lembrança estava expressando sua percepção de que é só, de que somos separados e do quanto lhe é doloroso aceitar essa condição, a condição de desamparo e vulnerabilidade à qual se referiu no início da sessão. Digo que estava podendo formar ali um par comigo.

A sessão termina.

 

Discussão

Como considerar as importantes mudanças psíquicas ocorridas com Arthur e Leo a partir da linguagem utilizada pela analista?

Poderíamos indagar: o que nos leva a pensar que o analista, operando com transformações em O, utilizando uma linguagem em que o paciente se torna a emoção, possibilita a ele promover mudanças emocionais importantes? Por que operando com transformações em K, ou seja, com uma linguagem que aumente o conhecimento sem a contraparte emocional, o analista não propiciaria essa experiência?

Ambos os materiais apresentados, penso, ilustram essas questões.

Arthur, ao encontrar-se com a analista, uma pessoa separada, sente-se ameaçado de perder a sustentação de seu corpo (transformações não integradas). Ele busca nas espadas - objetos concretos, duros e firmes - um modo de obter alguma firmeza para se manter em pé (transformações autísticas). Essa busca frenética de Arthur por um estado de coesão no corpo revela um sentimento de ameaça de derramar-se, de diluir-se, de cair num espaço sem fim (transformações não integradas). Ele não desenvolveu um endoesqueleto capaz de manter seu corpo ereto e coeso, nem uma pele psíquica capaz de reunir e conter seus conteúdos internos e estabelecer um limite entre dentro e fora. Através do jogo com o avião, ele propõe continuar a explorar a sustentação de seu corpo. Diante da falta de sustentação do avião, Arthur lança abruptamente seu corpo flácido, um corpo inanimado, sobre o colo da analista. Esta vive uma forte emoção diante do contato com esse volume esparramado sobre si. Por meio de uma linguagem de emoção, ela procura intuitivamente o fantoche, um boneco de corpo vazio e flácido, e traduz para Arthur o modo como ele sente seu corpo (transformações O → K). Essa manifestação provoca uma ruptura no padrão de comunicação de Arthur até aquele momento. Ele se torna consciente de seu estado vulnerável, e passa a ser capaz de pedir ajuda, (transformações O → K). Ele diz: "Me cura! ... Me segura! ... Eu vou ... derreter". Por meio do paraquedas, dramatiza ainda seu pedido de que a analista opere como esse paraquedas, que o segure, o sustente e o proteja de cair e de desaparecer para sempre.

Leo, por sua vez, de início se relaciona com a analista como com uma figura de sua criação, sem percebê-la enquanto figura real. Ele ataca a analista violentamente, acusando-a de ter dito algo que, segundo ele, não corresponde com a realidade. A analista, imersa na emoção despertada pelas transformações projetivas e em alucinose de Leo, nota que ele tinha escutado não a ela, mas a algo de sua própria criação. Em contato com o estado mental de Leo, a analista utiliza de maneira espontânea uma linguagem simples e verdadeira, calcada em sua emoção. Solicita ao paciente que reproduza o que tinha escutado da analista. Essa formulação estimula Leo a criar um recuo da situação de alucinose em que estivera envolvido, tornando-se capaz de escutar o que de fato a analista dissera. Ele se conscientiza de seu estado de alucinose, o que propicia uma mudança em seu estado de mente, e também no curso da sessão. Leo se deprime e de pronto oferece uma lembrança: "para formar um par, é preciso ser só", o que só fizera sentido naquele momento. Com isso, ele revela ter ocorrido algo novo, diferente daquilo que tinha vivido até então na sessão. Surge a dolorosa dimensão da consciência de ser separado, de ser . Esse é um momento único, verdadeiro, de forte emoção, em que paciente e analista encontram-se em uníssono, uma experiência intensa, difícil de traduzir em palavras, que pode ser apenas vivenciada. Poderiamos fazer uma conjectura: se a analista, em vez de solicitar a Leo que repetisse o que escutou, lhe oferecesse uma interpretação clássica, com conteúdo persecutórios, possivelmente o convidaria a operar em níveis do conhecimento racional, distantes da emoção, dificultando-lhe o aprendizado.

Tanto com Arthur quanto com Leo ocorreu uma mudança importante em seus estados de mente ao longo da sessão, na direção do crescimento. A linguagem utilizada pela analista, uma linguagem de emoção, foi um fator determinante para isso acontecer. Assim como o bebê em relação à prosódia do manhês de sua mãe, o paciente é atraído pela emoção do analista presente no campo. Essa emoção é veiculada não só pela "prosódia" do analista, mas por sua presença como um todo na sala de análise. Em minha opinião é essa linguagem que poderá favorecer um contato mais verdadeiro entre o par.

Neste ponto, retomo a indagação de Meltzer: "Terá Bion sido bem-sucedido em construir uma teoria da mente que se presta a uma conceitualização substancial das emoções, que irá distinguir a psicanálise moderna de outras psicologias?" (1998, p. 77). Deixo a pergunta em aberto...

 

Referências

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Correspondência:
Celia Fix Korbivcher
Rua João Moura, 647/34
05412-911 São Paulo, SP
Tel.: 11 3088-2051
celiafix@uol.com.br

Recebido em 1/12/2017
Aceito em 3/12/2018

 

 

1 O fenômeno não integrado (Bick, 1986) caracteriza-se pela ausência da noção de um limite capaz de manter os conteúdos emocionais reunidos, resultando na falta de discriminação das substâncias internas e das substâncias corporais. Será a partir da introjeção de um objeto externo interagindo continuamente com a superfície do corpo do bebê que se formará uma pele psíquica, dando início às fantasias de espaço interno e externo. Se por alguma razão houver distúrbios na função da pele primária, uma segunda pele será desenvolvida, a fim de proteger o bebê de vivências intoleráveis de não integração. Ameaças de queda num espaço sem fim, de diluição, de liquefação são expressões desses estados.

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