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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O sentimento de si e o estranho1

 

Ego feeling and the uncanny

 

El sentimiento de sí mismo y lo siniestro

 

Le sentiment de soi et l'inquiétante étrangeté

 

 

André De MartiniI; Nelson Ernesto Coelho JuniorII

IPsicanalista. Doutor em psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Foi pesquisador em pós-doutorado vinculado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
IIProfessor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Psicanalista. Autor de Dimensões da intersubjetividade (2012) e, em coautoria com Luís Claudio Figueiredo, de Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura (2018), entre outros livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais da área

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo sobre o texto "O estranho", de Freud, a partir dos deslocamentos do sentimento de si, o que pode ser o terceiro elemento necessário, previsto por Freud, para a constituição do estranho. Trata-se de uma primeira aproximação mais sistemática da ideia de que o estranho (seja na experiência narrativa literária, seja na realidade comum) é produzido pelas operações ambivalentes da linguagem e do corpo, resultando em uma tensão e perturbação dos limites e fronteiras do eu. Por fim, consideraremos as temáticas da cisão, da afirmação e recusa, fundamentais para entender a estrutura do eu e seu atravessamento simultâneo por distintas matrizes da intersubjetividade, ou seja, pela presença do outro em sua função constitutiva das subjetividades.

Palavras-chave: o estranho, eu, sentimento de si, intersubjetividade, percepção


ABSTRACT

This article presents a study about "The Uncanny" (Freud, 1919). The author starts from the displacements of the Ego feeling which may be, according to Freud, the third element necessary for the constitution of the uncanny. It is the first time of a more systematic approach to the idea that the uncanny (whether in literary/narrative experience or in ordinary reality) is produced by the ambivalent operations of language and body, and the result is a tension and disturbance of the boundaries and borders of the Ego. Finally, we will consider themes such as splitting, affirmation, and disavowal. They all are essential for understanding the structure of the Self and its simultaneous crossing through different matrices of intersubjectivity, that is, through the presence of the other in its constitutive function of subjectivities.

Keywords: the uncanny, Ego, Ego feeling, intersubjectivity, perception


RESUMEN

En este artículo se presenta un estudio sobre el texto "Lo Siniestro" (Freud, 1919) a partir de los desplazamientos del sentimiento de sí, lo que puede ser el tercer elemento necesario, previsto por Freud, para la constitución del siniestro. Se trata de una primera aproximación más sistemática de la idea de que lo siniestro (ya sea en la experiencia narrativa literaria, o en la realidad común) es producido por las operaciones ambivalentes del lenguaje y del cuerpo, resultando en una tensión y perturbación de los límites y fronteras del Yo. Por último, consideraremos las temáticas de la escisión, de la afirmación y del rechazo, fundamentales para entender la estructura del Yo y su travesía simultánea por distintas matrices de la intersubjetividad, o sea, por la presencia del otro en su función constitutiva de las subjetividades.

Palabras clave: Lo siniestro, Yo, sentimiento de sí, intersubjetividad, percepción


RÉSUMÉ

Cet article présente une étude du texte "L'inquiétante étrangeté" (Freud, 1919) à partir des déplacements du sentiment de soi, ce qui peut être le troisième élément nécessaire, prévu par Freud, pour la constitution de l'inquiétante étrangeté. Il s'agit d'un premier abordage plus systématique de l'idée que l'inquiétante étrangeté (que ce soit dans l'expérience narrative littéraire ou dans la réalité ordinaire) est produite par les opérations ambivalentes du langage et du corps, entraînant une tension et une perturbation des limites et des frontières du Moi. Nous examinerons enfin les thèmes du clivage, de l'affirmation et du déni, fondamentaux pour comprendre la structure du Moi et comment il est traversé simultanément par de différentes matrices de l'intersubjectivité, c'est-à-dire, par la présence de l'autre dans sa fonction constitutive des subjectivités.

Mots-clés: L'inquiétante étrangeté, Moi, sentiment de soi, intersubjectivité, perception


 

 

Introdução

Neste segundo artigo, continuaremos a explorar o tema do estranho, levando adiante a principal conclusão a que chegamos no trabalho anterior. Começaremos por uma breve recapitulação (De Martini & Coelho Junior, 2010).2

Em seu texto sobre o tema, Freud demonstra que é necessário o encontro de dois elementos para que a experiência do estranho surja: um estético (a produção do sombrio, do lúgubre, do assombroso) e um psicanalítico (o retorno do recalcado e a reativação de um modo de funcionamento mental primitivo). Isoladamente, nenhum deles é capaz de provocar o estranho. Contudo, Freud aponta ainda para um terceiro elemento, desconhecido, uma vez que mesmo essa junção pode, às vezes, falhar. Dá como exemplo os contos de fadas, em que raramente se experimenta o estranho, apesar de ambos os elementos estarem comumente presentes. Em seus termos: "As fábulas colocam-se abertamente na posição animista da onipotência dos pensamentos e desejos, e eu não poderia mencionar uma fábula genuína em que algo inquietante3 sucedesse" (1919/2010c, p. 367).

Assim, para além dos conteúdos estéticos sinistros e daquilo que retorna no psiquismo, há que cogitar outro elemento: "Então devemos estar prontos a aceitar que intervenham, para que surja o sentimento inquietante, outras condições além das mencionadas, relativas ao conteúdo" (p. 368).

Ao final do texto, na tentativa de sondar a natureza desse terceiro elemento, ele faz a distinção entre a experiência na realidade e na literatura (quando essa última se limita a uma elaboração meramente intelectual ou imaginativa do estranho). Para que se produza o estranho, é preciso que ele seja uma realidade vivida, e não apenas algo que entendemos intelectualmente, "sobre o qual se lê". Nas fábulas, está dado de partida que aquela não é a mesma realidade do leitor, mas uma realidade da fantasia, da qual ele toma certa distância. Os elementos lúgubres ou da ordem do recalcado ali presentes podem ser compreendidos e apreciados, mas não geram a experiência do estranho para o leitor.

Contudo, a distinção entre realidade e literatura não é definitiva, e Freud a desfaz para considerar outros gêneros em que o escritor, através de sua habilidade narrativa, é bem-sucedido em produzir o sentimento do estranho no leitor:

A situação é outra quando o escritor, aparentemente, move-se no âmbito da realidade comum. Então ele também aceita as condições todas que valem para a gênese da sensação inquietante nas vivências reais, e tudo o que produz efeitos inquietantes na vida também os produz na obra literária. ... Ele como que denuncia a superstição que ainda abrigamos e acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade comum e depois ultrapassá-la. Nós reagimos a suas ficções tal como reagiríamos a nossas próprias vivências; ao notarmos o engano, é tarde demais, o autor atingiu seu propósito. (p. 373)

Ou seja, ao especular sobre o terceiro elemento, Freud apresenta uma questão ligada à narrativa literária, a de como o leitor pode ser conduzido a sentir determinadas coisas, em oposição a apenas compreendê-las intelectualmente. Ele então interrompe a investigação enfatizando a necessidade de buscar no estranho condições para além dos conteúdos.

A partir desse apontamento final do texto de Freud, e utilizando os desenvolvimentos metapsicológicos da segunda tópica, acreditamos ter elucidado a natureza do terceiro elemento necessário ao estranho. Obviamente, é preciso transpor essa observação sobre a experiência narrativa literária para a experiência na realidade comum, algo que, além disso, não se reduziria a conteúdos específicos do estranho (o lúgubre e o material recalcado). A condução do leitor na experiência narrativa corresponde, em termos psicológicos, ao deslocamento do sentimento de si para fora de seu lugar habitual, o que também acontece na experiência do estranho na vida comum.

Freud demonstrou a preocupação em aproximar a experiência narrativa da leitura à vida real em seu texto: "Há muito ele não conhece ou experimenta algo que poderia lhe produzir a impressão do inquietante; primeiro tem de transportar-se para esse sentimento, evocar dentro de si a possibilidade dele" (p. 330). Nessa advertência inicial, Freud ressalta a importância de ele próprio (e, indiretamente, o leitor) haver-se com suas próprias experiências de sentimento do estranho. Deve "transportar-se", ou seja, o sentimento de si deve poder se alocar em lugares não familiares.

A tensão entre familiar e não familiar se produz, enquanto experiência, quando os efeitos lúgubres e o retorno do recalcado levam o sentimento de si para fora do eu, ou para partes suas clivadas, ou ainda para aspectos dos objetos internalizados. É preciso estar, momentaneamente, "fora de si". Isso pode acontecer pelo ressurgimento de um modo de funcionamento mental anterior à delimitação entre eu e não eu, pela reversão das posições ativa e passiva das pulsões (ambivalência), ou ainda pela tomada de consciência de aspectos do eu não integrados. São experiências que perturbam a impressão homogênea do eu.

O terceiro elemento, portanto, necessário para que se produza o estranho é a labilidade do sentimento de si - através dos trilhos ambivalentes do psiquismo (nas pulsões, na linguagem e na percepção, como veremos), uma parte do eu pode ser experimentada como estando fora de seu registro familiar. Sem essa condução, sem o abalo dos limites tópicos do psiquismo, os elementos lúgubres (oriundos da estética) e o retorno do recalcado serão sempre insuficientes, como acontece nas fábulas e nos contos de fadas.

Essa solução cumpre igualmente a indicação freudiana de um elemento para além dos conteúdos do estranho, pois remete à tópica, à própria estrutura do psiquismo - algo para o qual não havia ainda formulação metapsicológica, o que viria a ser realizado quatro anos depois.4

Em termos do desenvolvimento, e da constituição primitiva do psiquismo, o sentimento de si é anterior à constituição de um eu bem delimitado. Sabemos que, de início, há um registro de si não individualizado, um si que não tem as fronteiras exatamente em torno de uma pessoa, que seria o bebê, mas que conjuga aspectos deste e do outro - a mãe ou quem quer que lhe faça as vezes. De modo semelhante, esse outro inicial, essa região não si, não adquiriu ainda para o bebê os contornos de um outro, de um objeto total, mas está mais próximo de um outro indistinto, um outro-ambiente (De Martini, 2006). Esse registro da constituição do psiquismo pertence a uma matriz transubjetiva, como veremos adiante. Em termos freudianos, corresponde a um dos modos de funcionamento mental primitivo, reativado na experiência do estranho.

Ao distinguir uma condição para além dos conteúdos, Freud (1919/2010c) percebe que o recalque não deve ser evocado nesses casos, pois significaria um alargamento indevido do conceito.5 Se o recalque é adequado para pensar no retorno das angústias infantis (notadamente aquelas referentes ao complexo edípico), a cisão é a defesa que melhor descreve os processos que ocorrem na estrutura do eu e nas relações com os objetos internos. A experiência do estranho conjuga ambos, não sendo possível na prática traçar limites muito rígidos entre recalque, cisão e reativação de um modo de funcionamento mental primitivo. Além do mais, a capacidade reflexiva do eu, presente nas operações ambivalentes do sentimento de si, é um elemento estrutural do eu e, nesse sentido, com existência independente das questões defensivas ou psicopatológicas. As temáticas da cisão, da afirmação e recusa, da ambivalência e da ausência de contradição são fundamentais para entender a estrutura do eu e seu atravessamento simultâneo por distintas matrizes da intersubjetividade, como veremos com Coelho Junior e Figueiredo (2004).

A mobilidade do sentimento de si representa um potencial de diferentes perspectivas ou referenciais para as experiências do eu. Ainda que, via de regra, o sentimento de si coincida com o eu, devemos enfatizar a disposição ambivalente das pulsões, da linguagem e da percepção, cujos "trilhos" podem conduzir a experiência subjetiva para fora dele. Assim, o sentimento de si poderá remeter, simultaneamente, ao eu e a um outro.

A ambivalência é um tema fundamental para o estranho. Tão importante quanto o colapso e esmaecimento das fronteiras eu-outro, familiar-estrangeiro, é a manutenção dessa separação em um registro paralelo (dual track, duas correntes da vida mental).6 Em seu texto sobre as pulsões, Freud (1915/2010d) descreveu as operações ambivalentes e suas possibilidades de troca e reversão, essenciais para compreender o estranho, particularmente no tema do duplo. Antes de prosseguir, relembremos dois dos destinos possíveis para as pulsões, especialmente relevantes para a discussão: 1) reversão no oposto, seja na inversão da atividade para a passividade, com a respectiva mudança na finalidade ou meta, seja na reversão do conteúdo amor-ódio pelo objeto; 2) retorno ao eu, no deslocamento ou no abandono dos investimentos do objeto.

 

O duplo

Uma possível e mais clássica interpretação do duplo observada por Rank (1925/1971) é a de que não se pode fugir do próprio passado. A cisão do eu em uma parte boa e outra má é também uma interpretação já conhecida da literatura, principalmente pelo viés moral. Além disso, muito frequentemente na literatura sobre o duplo, o protagonista enlouquece. Há um caráter persecutório, de usurpação, tendo no horizonte a inevitável morte de um ou outro da dupla. Um interesse amoroso aparece frequentemente como eixo da disputa, como solução, perda ou conquista final.

O eu não tolera a divisão, o compartilhamento, o roubo etc. que a existência do duplo engendra, e é nesse sentido, do abalo narcísico, que Rank procura se ocupar para compreender o motivo literário do duplo. Ele está interessado nos elementos psicológicos que se revelam a partir da literatura, mas que têm alcance para além dela, enquanto guias para a compreensão do psiquismo: "O duplo aponta 'para o eterno conflito do homem consigo próprio e com os outros, para a luta entre sua necessidade de semelhança e seu desejo por diferença'" (p. VII).

A disposição narcísica do duplo é bastante evidente, seja na perspectiva psicanalítica, seja na tradição literária (como o mito de Narciso, que lhe dá o nome). Rank traz um apanhado de mitos, lendas e tabus em que a preocupação com a própria imagem é o fator fundamental - como na fotografia, no espelho, na sombra, no sonho7 ou no reflexo da água parada. E, assim como no mito de Narciso, a relação com a morte também aparece no duplo. Rank considera que a conexão entre os elementos narcísicos e a morte é bastante intrigante, e não pode ser respondida apenas pela repetição do motivo mitológico de Narciso. Há uma conexão mais fundamental, que o autor observa a partir de Freud: o amor próprio deve ser entendido como uma compensação e uma modificação do elemento originário mortífero.

Em formas tardias e isoladas das histórias sobre o espelho, a morte e a desventura são substituídas pela visão de um futuro amor e bonança. São versões em que o caráter defensivo e compensatório assumiu o controle sobre a história. Esta é uma das razões pelas quais as fábulas não são estranhas: via de regra, são atenuações de versões mais sombrias e aterrorizantes, que foram se modificando ao longo do tempo.

Rank destaca o medo neurótico da morte (tanatofobia) como parte essencial das questões narcísicas que configuram o duplo, sendo a origem de todas as outras formas de medo: da perda da própria sombra, da própria imagem, de um perseguidor, do envelhecimento e da expectativa da morte. A morte, acima de tudo, é a morte do eu. Mais do que qualquer instinto biológico de autopreservação, é a perda da própria identidade que é temida e equacionada com a morte. Esse é o narcisismo do duplo, o amor último por si próprio, de modo que até o suicídio e a perda da vida podem ser preferíveis ao tormento da perda da imagem de si. Ao tentar eliminar o duplo, o protagonista quer livrar-se da culpa, dos desejos incestuosos, dos impulsos repreensíveis, dos aspectos maus de si que projetou nesse outro eu. Se em um primeiro momento o duplo é uma solução, um depósito de todas as fraquezas, no momento seguinte ele ameaça com o maior dos roubos, o da própria identidade, e por isso deve ser destruído.

Essa concepção do duplo, como uma espécie de prenúncio terrível da morte do eu, encontra também em Freud uma corroboração nos termos da segunda tópica:

Assim, a conhecida afirmação que propaga que todo medo nada mais é que o medo perante a morte não faz sentido e tampouco se justifica. Parece-me bem mais acertado diferenciar o medo perante a morte do medo (real) sentido diante do objeto, e ambos do medo neurótico diante da libido. Entretanto, essa é uma difícil tarefa do ponto de vista psicanalítico, pois a morte é um conceito abstrato, seu conteúdo é negativo e não é possível encontrar nenhum elemento correspondente no inconsciente. A única possibilidade que vejo é imaginarmos que o mecanismo de sentir medo da morte entre em ação quando o eu dispensa amplas parcelas do investimento libidinal nele acumulado, isto é, quando ele se abandona a si próprio, tal como o faz nos episódios de medo diante de certos objetos (quando ele abandona o objeto desencadeador de medo). (1923/2007a, pp. 64-65)

Assim, andam lado a lado o amor e encantamento pela imagem que o eu tem de si e o terror e ameaça de destruição que isso pode trazer. Esse tipo de consideração psicanalítica sobre o narcisismo permite a Rank, então, retomar os temas literários do retorno do passado e da divisão moral do eu, agora sob uma nova luz. A explicação alegórica do duplo como o retorno inexorável do passado pode ser reinterpretada a partir da ideia da fixação narcísica. O eu tem uma história, versões de si abandonadas e reconstruções que podem, momentaneamente, "voltar à tona", causando espanto, horror ou admiração:

[O poeta romântico] Jean Paul conta, como uma de suas lembranças mais notáveis da infância, que o insight "Eu sou um eu" veio a ele quando garoto como um relâmpago; e desde então permaneceu como uma imagem brilhante à sua frente. (Rank, 1925/1971, p. 36)

O fascínio com a percepção da distinção e surgimento do eu, experimentado por Jean Paul, deve certamente seu brilho ao registro, ainda presente, de um estado anterior do qual se destacava, e que podia ser rememorado. Esse é um excelente exemplo da existência prévia do sentimento de si em relação ao eu, e que se mantém como um fio condutor na passagem de um estado anterior para aquele de delimitação e descoberta de um novo sentimento de si e uma nova forma de enunciação - "Eu sou um eu".

Encontramos no texto de Freud uma descrição desse estado anterior do eu, também dentro da temática do duplo:

É fácil apreciar, seguindo o modelo do tema do duplo, os outros distúrbios do eu explorados por Hoffmann. São um recuo a determinadas fases da evolução do sentimento do eu, uma regressão a um tempo em que o eu ainda não se delimitava nitidamente em relação ao mundo externo e aos outros. (1919/2010c, p. 364)

De modo similar, o tema da divisão do eu pode ser ampliado para além das questões morais do bem e do mal, acrescentando-lhe nuances que só seriam possíveis a partir da investigação psicológica. Podemos, por exemplo, retomar a divisão do eu em termos econômicos, ou seja, das estruturações psíquicas que ocorrem em função das experiências de prazer-desprazer: "O mundo exterior se divide para ele [eu-de-prazer] em uma parte prazerosa, que incorporou em si, e um resto que lhe é estranho [Fremde]" (Freud, 1915/2010d, p. 75).

Nessa perspectiva, a conotação moral encontra raízes em disposições psíquicas e no desenvolvimento, como também apontara Freud:

Conforme expus em outra parte, o eu-prazer presente no início do desenvolvimento quer introjetar tudo que é bom e expelir de si tudo que é mau. Inicialmente, para o eu-prazer não há diferença entre o mal, o que é estranho ao eu e tudo aquilo que se situa fora do eu. As três categorias são idênticas. (1925/2007b, p. 148)

No evento do duplo, o sentimento de si é experimentado alternadamente em ambas as dimensões do eu, uma que se mantém familiar e outra que se torna estranha.

 

O sentimento de si e as matrizes da intersubjetividade

Vimos como o tema do duplo abrange diversas modalidades do sentimento de si, que pode habitar as sombras, as imagens refletidas, outros corpos, os sonhos etc., em uma cena dramática de disputa, perseguição, busca pelo amor e morte. A divisão do eu e a ambivalência dos processos mentais levou Freud a aprofundar sua compreensão estrutural do psiquismo. Em 1923, publicou o texto O eu e o id, em que descreve instâncias fundamentais do conflito psíquico (eu, id, supereu), ampliando as delimitações já existentes (realidades interna e externa, consciente e inconsciente). Ao longo das décadas seguintes, a psicanálise voltaria sua atenção cada vez mais para a linguagem, para as relações de objeto e para aquilo que também se chamou de problemática da intersubjetividade. Os desenvolvimentos estruturais que resultaram na elaboração da segunda tópica - a investigação da cisão, das introjeções, das identificações, das incorporações e da estrutura do eu - complementam os aspectos econômicos e dinâmicos com que os temas do duplo e do estranho foram formulados originalmente.

O estranho nos lembra que a realidade do psiquismo é a de distintos espaços, da diferenciação do eu consigo próprio e do atravessamento pelo outro, tudo sob a marca das pressões da sexualidade, dos impulsos internos e externos. Além de tornar porosos os limites entre o eu e o outro, o deslocamento do sentimento de si pode criar distensões na própria estrutura do eu, como nos exemplos do pensamento mágico e da compulsão à repetição, ou ainda na existência de aspectos seus oriundos de incorporações não perfeitamente assimiladas.

A temática do duplo e suas variantes também nos faz lembrar que a própria ideia da existência de uma alma indivisa e eterna deveu sua origem a esse cenário multifacetado da estrutura do eu. Por isso, parece-nos temerário quando psicólogos e mesmo psicanalistas tratam o eu como uma espécie de entidade transcendental. Nesse sentido, Federn faz uma advertência bastante pertinente quanto a tomar o eu como uma entidade única ou indivisa, idêntica a si própria: "A observação dos componentes do eu tem sido ignorada por aqueles autores que ... atribuem a ele uma 'unidade homogênea', de modo que para eles o termo eu era quase sempre sinônimo do antigo termo alma" (1953/1977, p. 38).

Para uma melhor apreensão do tipo de cenário múltiplo que corresponde ao psiquismo, vejamos a caracterização do campo intersubjetivo proposta por Coelho Junior e Figueiredo (2004), organizado pelos autores em quatro matrizes fundamentais, com suas respectivas referências na psicologia, na filosofia e na psicanálise. Elas apresentam aspectos imediatamente reconhecíveis na temática do estranho.

A primeira matriz, transubjetiva, é aquela que forma o solo comum da experiência de si e do outro, dos elementos previamente compartilhados sem os quais nenhuma comunicação pode se estabelecer. A expressão de si já é, de partida, conjugada com as formas e a expressão dos objetos e dos outros. Para Max Scheler, retomado por Merleau-Ponty, "a consciência é inseparável de sua expressão (em consequência do conjunto cultural de seu meio), e não há diferença radical entre consciência de si e consciência do outro" (1988, p. 43).

Heidegger (1927/1962) oferece outro modelo dentro dessa mesma matriz: somos lançados em uma existência que nos precede e que delimita as possibilidades e condições que cada um terá por horizonte. O singular, o próprio, é algo que surge em conjunto com uma tradição que o antecede.

Para Heidegger, [há] um ser-aí, um Dasein, e um Mitsein (ser-com). Nos textos posteriores a Ser e tempo, será a dimensão do logos, da linguagem, que portará a marca desse transubjetivo primordial e constituinte das possibilidades de existir, de escutar, de falar. (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 18)

A dimensão transubjetiva da linguagem é de especial interesse para nós, pois entendemos ser ela uma das origens dos trilhos ambivalentes na estrutura do psiquismo.

Nesse registro, a alteridade surgirá desde o início em um solo de inclusão primordial, que serve de acolhimento e sustentação para as experiências subjetivas distintas: "Trata-se, é evidente, de uma modalidade pré-subjetiva de existência" (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 17). É a origem, portanto, da familiaridade em sua apreensão mais fundamental, uma ligação insuspeita que antecede a própria distinção de um eu e de um não eu.

A segunda matriz é a traumática, que apresenta a alteridade como uma fonte incontornável de fraturas, fragmentações e inadaptações entre eu e outro. Ela exige do psiquismo um trabalho permanente de tentativa de ligação e elaboração, aquilo que Freud identificou como um trabalho primário, que se sobrepõe ao princípio do prazer-desprazer. O autor de referência aqui é o filósofo lituano, radicado na França, Emmanuel Levinas:

O outro é de fato concebido como uma radical alteridade, que não deve ser entendida nem abordada a partir de uma experiência que se caracterize como uma assimilação daquilo que a princípio já se oferece como assimilável. Uma relação intersubjetiva para Levinas (1974) implica, necessariamente, certo deslocamento, certa cisão ou modificação na experiência subjetiva, seja em sua constituição primeira, seja em subjetividades já constituídas. (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 20)

O caráter persecutorio, a compulsão à repetição e o efeito intrínsecamente perturbador do estranho apontam para um tipo de experiência traumática. Também o duplo, uma vez criado, traz uma perturbação ao eu que não pode mais ser desfeita. Em nossa análise da experiência de leitura de Mishima, no artigo anterior, demonstramos o caráter traumático e de contágio do estranho, não apenas para o protagonista da história, mas para o próprio leitor. Uma vez libertado, o estranho é um gênio que não pode mais ser colocado de volta na garrafa.

A terceira matriz, interpessoal, é aquela que identificamos mais intuitivamente como intersubjetividade. Diz respeito ao campo de interações e trocas entre sujeitos singulares, mas tomados em um contexto social. A constituição dos bens culturais acontece nesse campo de trocas, em que os gestos e endereçamentos mútuos vão ganhando sentido no processo social compartilhado. O modelo a que se referem os autores é o do funcionalismo norte-americano de George Herbert Mead (1910). É aqui que talvez faça mais sentido a ideia de semelhança, do reconhecimento que encontramos no duplo enquanto um eu separado, ao mesmo tempo igual e diferente de mim.

Por fim, a quarta matriz é a da intersubjetividade intrapsíquica, que revela a fecundidade dos objetos internalizados e incorporados no psiquismo, o que chamamos de teoria das relações de objeto. (Na verdade, trata-se do conjunto formado pelas teorias e contribuições de autores como Freud, Klein, Fairbairn e Winnicott.)

Embora esses objetos "internos" possam ter tido, em algum momento da vida do sujeito, seu correlato "externo", real (no sentido empírico), não é a partir dessas possíveis referências externas que sua efetividade se verifica, já que, como objetos internos, passam a observar leis e funcionamentos peculiares e desconhecidos no mundo externo. (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 23)

Ainda que internalizados, são vividos como realidades concretas, que definem quem somos e os objetos sobre os quais agimos e que agem sobre nós. Além disso, são marcados pelos diferentes tipos libidinais de investimento, com suas características próprias: escopofílicos, orais, anais, fálicos, genitais, parciais, totais, narcísicos ou de objeto, ativos, passivos etc.

Esse é um dos motivos pelos quais o estranho pode ser tão assustador: é possível encontrar fora aquilo que achávamos pertencer a um domínio exclusivamente familiar. Ao mesmo tempo, determinados objetos externos podem ser estranhos e assustadores porque sua ação parece ignorar a separação entre eu e mundo externo e nos atingir de dentro, por assim dizer.

Podemos notar que as matrizes apresentam contradições ou aspectos irreconciliáveis entre si, que tampouco pareceriam se unificar sob alguma ideia ou princípio que as encaixasse em um modelo intersubjetivo geral. Ao mesmo tempo, na prática, também nunca comparecem de forma exclusiva ou pura. Os autores entendem que elas funcionam em uma lógica de suplementaridade, conforme o proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida (1967), em que "cada dimensão é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos" (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 24). Elas devem ser concebidas como "trilhas simultâneas" nos processos de constituição e elaboração da subjetividade.

A ideia da simultaneidade de registros do funcionamento psíquico é antiga. Desde a neurologia e a psiquiatria do século XIX, já encontramos modelos sobre "estratos" dos conteúdos mentais, por exemplo. Com Freud, contudo, pela primeira vez a noção de conflito ganha um aspecto central e uma formulação consistente, que vai, aos poucos, adquirindo o estatuto de um modelo do aparelho psíquico, com reiterada eficácia clínica. Das primeiras ideias de uma dinâmica entre material consciente e reprimido, chegamos a uma variedade de teorias que foram encontrando, no século seguinte, derivações, aprofundamentos e modelos mais específicos sobre diversos tipos de funcionamento psíquico. A observação de um modo de funcionamento mental primitivo ressurgindo a partir de certas condições, no texto sobre o estranho, é um exemplo desse tipo de simultaneidade. A ideia freudiana de sobredeterminação mantém-se até hoje como um paradigma para considerarmos a atuação de lógicas e funcionamentos diversos no psiquismo. A formulação do campo da intersubjetividade, nas figuras das matrizes, segue o mesmo tipo de desenvolvimento.

A partir dessas concepções, é possível pensar em um modelo psicopatológico baseado nos entraves, nas fixações e nos impedimentos de algum (ou de muitos) dos tipos de funcionamento psíquico. O resultado seria uma espécie de psiquismo "empobrecido" em suas possibilidades ou recursos de elaboração e de produção de experiências. É exatamente isso que propõe Grotstein, ao tomar como pano de fundo a ideia do "duplo trilho" e acrescentar que a "a psicopatologia pode ser pensada enquanto uma situação em que o paciente se vê dominado por um trilho único e absoluto (ciclópico)" (1978/2000, p. 84), em que a possibilidade de experimentar uma perspectiva estereoscópica (ou seja, múltipla) foi perdida.

Ele considera a existência de uma espécie de função autorreflexiva da mente, que tem por resultado algo muito semelhante ao efeito do estranho e do duplo:

Eu postulo a operação de um princípio psíquico (uma faculdade) de "duplo trilho" [dual track], no qual a mente pode se tornar, normal e transitoriamente, parcialmente dissociada, a fim de obter autorreflexão ... e intersubjetividade ... e ser capaz de "se ocupar" [to mind] da mente de outro. (p. 84)

Em estados patológicos, o sentimento de si ficará limitado quanto a sua potencialidade de gerar experiências em outras partes ou outros objetos na multiplicidade da estrutura psíquica. Poderá ficar enredado em fixações ou ser colonizado por aspectos defensivos do eu, por compulsões, pela repetição, por aspectos sádicos do supereu, por objetos sabotadores etc., perdendo por fim seus potenciais transicionais e estereoscópicos. Em vez de exercer uma função mediadora e de sondagem entre as distintas partes do psiquismo (por exemplo, no trabalho onírico), o sentimento de si perderia sua labilidade, tornando-se monotemático e monótono.

Nos últimos tópicos deste artigo, vamos fazer algumas considerações e apontamentos sobre a natureza ambivalente da percepção e da linguagem.

 

A origem da ambivalência no corpo

A natureza estrutural e tópica do psiquismo parece remeter a uma necessidade contínua de elaboração, que não pode ser contida em um único modelo. Como observamos antes, nenhuma das matrizes da intersubjetividade é suficiente, por si mesma, para as demandas de elaboração psíquica. Elas tampouco formam ou somam qualquer tipo de modelo intersubjetivo final, estando fadadas a um contínuo percurso suplementar e sem síntese. As cisões, o duplo, a função reflexiva do psiquismo ou a proliferação de objetos internalizados nunca esgotam a exigência de novos trabalhos, levando sempre o sentimento de si para fora do familiar (Heimliche).

Como aponta Figueiredo, há no psiquismo uma raiz essencialmente avessa à influência dos objetos (nem tudo pode se reportar, portanto, à comunicação ou à simbolização): "Por não ser de natureza intersubjetiva, o id não é diretamente acessível às alteridades, sendo, por princípio, refratário à intersubjetividade, às linguagens. ... Ele é a resistência essencial de que falara Freud, raiz da reação terapêutica negativa" (2012, p. 255).

Tomaremos então a irredutibilidade do id como ponto nevrálgico para o corpo e para a linguagem, exigindo de cada um deles o contínuo trabalho de deslocamento e busca de novos objetos e enunciações. A natureza ambivalente dos processos psíquicos, das enunciações do eu e do sentimento de si, como vimos na pesquisa sobre o estranho e o duplo, remete a essa exigência fundamental de elaboração daquilo que não se esgota em um sentido único.

O corpo, a corporeidade, é uma temática psicanalítica de difícil delimitação, pois abarca tanto sua dimensão mais biológica, somática, quanto sua realidade simbólica e atravessada pelas fantasias. Marca historicamente a origem da própria psicanálise, como sabemos, enquanto esgotamento do modelo médico e biológico para investigar as patologias envolvendo os sintomas neuróticos. Ainda é o campo primordial das investigações psicanalíticas, o que por vezes pode ficar esquecido pelo fascínio com a linguagem, com o risco de exclusão da percepção, dos afetos e da sexualidade:

É preciso insistir nas concepções freudianas e recuperar o lugar da corporeidade na teoria e na clínica de Freud e, em particular, recuperar a relação entre a corporeidade e o eu. Trata-se de dar relevo, inicialmente, ao que Freud indicou como o nascimento do eu, ou seja, uma diferenciação com relação ao id, uma protosseparação com relação às pulsões e à dimensão propriamente somática. (Coelho Junior, 2012, pp. 81-82)

A observação da ligação do corpo com o eu é central para as questões do duplo. A corporeidade remete ao eu, ao id (enquanto representante das pressões somáticas internas e externas) e ao outro, ao semelhante. Como afirmou Freud, nesta famosa passagem:

Outro fator, além da influência do sistema Pc [percepção], parece ter tido efeito sobre a gênese do eu e sua diferenciação do id. O corpo, principalmente sua superfície, é o lugar do qual podem partir percepções internas e externas simultaneamente [aussere und innere Wahrnehmungen]. É visto como outro objeto, mas ao ser tocado produz dois tipos de sensação, um dos quais pode equivaler a uma percepção interna. ... Também a dor parece ter nisso [na formação do eu] um papel. ... O eu é sobretudo corporal, não é apenas uma entidade superficial [Oberflachenwesen], mas ele mesmo a projeção de uma superfície. (1923/2010b, pp. 31-32)

O corpo é, ele próprio, campo compartilhado com o outro, lugar de trocas, misturas e diferenciações, e sua disposição ambivalente foi um dos principais temas de interesse do filósofo francês Merleau-Ponty:

O enigma reside no fato de que meu corpo é ao mesmo tempo aquele que vê e que é visto. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o "outro lado" de sua potência de ver. (1964a, p. 18)

Partindo dos estudos sobre a percepção na tradição fisiologista da primeira metade do século XX, o filósofo nos oferece um paradigma epistemológico mais preciso sobre o corpo e a consciência perceptiva, sobre sua natureza complexa, mais próximo daquilo que a psicanálise tem a dizer sobre ele. O corpo do outro, aquilo que vemos e tocamos, participa de nossas fantasias, assim como nossas próprias atividades corporais e seus produtos serviram, no início da vida, como chaves de interpretação e aproximação ao mundo externo. A identificação mais primária do corpo com o mundo não é resultado de alguma projeção ou operação mental; é antes seu ponto de partida. Com o filósofo, temos que a ambivalência deve ser considerada um aspecto inaugural da estrutura da percepção.

Em seu último trabalho, O visível e o invisível, encontramos o projeto de uma ontologia que parte do sensível, tomando-o como um solo primeiro:

De sorte que o que vê e o que é visto se permutem reciprocamente [se récipro-quent], e não mais se saiba quem vê e quem é visto. É a essa visibilidade, a essa generalidade do sensível em si, a esse anonimato inato do eu mesmo, que há pouco chamávamos carne [chair], e sabemos que não há nome na filosofia tradicional para designá-lo. (Merleau-Ponty, 1964b, p. 183)

Ao mesmo tempo, adverte o filósofo, não devemos ignorar que essa comunicação primordial nunca se realiza definitivamente, e outros movimentos de separação e distanciamento mantêm os processos ambivalentes de reversibilidade em permanente movimento:

É tempo de sublinhar que se trata de uma reversibilidade sempre iminente e nunca realizada de fato. Minha mão esquerda está sempre em vias de tocar a direita [ou seja, em uma fusão sujeito-objeto] no ato de tocar as coisas, mas nunca chego à coincidência. (p. 194)

No artigo anterior, apontamos a necessidade de pensar no objeto da relíquia (como a foto de um ente querido falecido guardada na carteira) não apenas por sua imagem, mas por sua presença sensível disponível, uma espécie de novo corpo que guarda a alma ou uma parte daquele que se foi. Da mesma forma, é preciso considerar que o duplo é estranho não apenas por ser uma imagem do eu, mas por ter um corpo com quem o protagonista compartilha a mesma "carne" (chair). Por fim, o próprio filósofo chega a evocar a ideia do duplo para descrever esse registro primordial do corpo: "É o próprio sensível vindo a si e, em compensação, o sensível está perante seus olhos como seu duplo ou extensão de sua carne" (p. 152).

 

Conclusão

A constituição do psiquismo, com Freud, passa pelo trabalho fundamental das diferenciações - dentro/fora, eu/outro, processos primários/ processos secundários, inconsciente/consciente, realidade interna/realidade externa, passividade/atividade, bom/mau, presença/ausência -, para o qual a linguagem terá um papel essencial, ainda que não exclusivo. Isso pode ser observado de forma exemplar na análise que Freud (1920/2010a) faz do fort-da, quando as vocalizações do bebê transformam o simples aparecimento/desaparecimento em presença/ausência, ou seja, ofertam a esse processo um sentido psíquico, criam uma possibilidade de simbolização pré-verbal, que transforma a aniquilação do objeto, seu desaparecimento, em uma ausência que tem significância simbólica. Derrida também se interessou pela questão freudiana da diferenciação e pelo papel da reflexividade do sujeito nisso, do ponto de vista da linguagem: "Porque falar é saber que o pensamento deve tornar-se estranho a si próprio para ser dito e exposto. Então pretende, ao dar-se, reapossar-se de si" (1967/1995, p. 21, nota 18).

Ao fim do texto sobre o estranho, Freud apontara a versatilidade com que o escritor é capaz de fabricar situações fictícias da experiência do estranho, superando em muito aquelas que podem efetivamente se apresentar na realidade concreta. A realidade literária tem uma liberdade ímpar, sendo dado ao escritor poder transformar a linguagem sem as restrições da realidade material. A linguagem tem suas próprias estruturas ambivalentes, que antecedem e participam da constituição de cada indivíduo, ao mesmo tempo que é transformada gradualmente pelo comércio linguageiro dos indivíduos. Ou seja, são também da natureza da própria linguagem as operações ambivalentes, as opacidades, os equívocos, as trocas e as possibilidades de deslizamento.

Para finalizar, vejamos dois exemplos dos trilhos ambivalentes da linguagem. No primeiro, bastante familiar à psicanálise, temos a busca de Freud por um termo que descrevesse o caráter irredutível que ele próprio observara no psiquismo. Id é uma versão latina para o es, no original alemão. É um pronome impessoal, indefinido, que além do mais, na língua alemã, se refere a tudo o que escapa ao controle do sujeito, mas o afeta. Está ligado ao estranho, ao mítico e às forças da natureza: "O pronome es designa, com frequência, algo que se manifesta à revelia do indivíduo, tendo a função de personalizar o que é indeterminado, impessoal e indefinível, mas que pode ser apontado e circunscrito por um pronome" (Hanns, 2004, p. 22). A gramática alemã Duden-Grammatik diz: "Enquanto alguns pesquisadores não reconhecem ao es um valor como conteúdo e o consideram uma palavra de uso puramente formal ou um sujeito fictício, outros veem no es a expressão verbal da ação de forças impessoais, irracionais ou míticas" (citada por Hanns, 2004, p. 22).

No segundo exemplo, não tão familiar, temos um curioso elemento da língua japonesa, tão lábil quanto o sentimento de si para o psiquismo. Trata-se de uma partícula cuja única função é o estabelecimento do status de sujeito na frase. Habitualmente, ela acompanha os pronomes, mas pode também se deslocar deles para qualquer outro elemento linguístico, que passa então, ele próprio, à condição de sujeito:

Podemos encontrar na língua japonesa uma situação similar a essa distensão reflexiva. A palavra que corresponde ao sujeito da frase (eu [watashi wa], tu [anata wa] etc.) só cumpre essa função porque sempre está acompanhada de uma partícula chamada posposição subjetiva [wa] (que não tem correspondente nas línguas ocidentais), que é responsável pela ocupação do lugar de sujeito. De fato, o sujeito pode ser um substantivo, um pronome, um verbo, um adjetivo substantivado etc., que em si não carregam a função subjetiva, caso não venham acompanhados da posposição [wa]. (De Martini, 2013, p. 162, nota 61)

A irredutibilidade e a impessoalidade do id (presentes no corpo e na linguagem) exigem do psiquismo a capacidade de se pôr em distintas perspectivas, de buscar objetos e de se enunciar de diferentes maneiras. Disso resulta que o sentimento de si sempre encontrará trilhos que o aproximem e distanciem da familiaridade do eu.

 

Referências

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Correspondência:
André De Martini
Avenida Ataulfo de Paiva, 1079, conj. 1001
22440-035 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 98649-4298 | 11 98253-8144
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Nelson Ernesto Coelho Junior
Alameda Lorena, 1359/52
01424-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3288-8202
ncoelho@usp.br

Recebido em 18/3/2019
Aceito em 16/4/2019

 

 

1 Agradecemos a leitura e as sugestões de Patricia Getlinger e Luís Claudio Figueiredo à primeira versão deste texto.
2 O percurso que realizamos previamente apoiou-se no principal romance de Yukio Mishima, a tetralogia Mar da fertilidade, na produção cinematográfica Ghost in the shell, e também na retomada dos temas do fetiche e da relíquia.
3 O tradutor Paulo César de Souza optou por inquietante (Unheimliche) como alternativa a estranho, da Edição standard brasileira. Aponta a insuficiência incontornável de qualquer dos termos que adotasse, mas não explica sua escolha em relação à tradução anterior. Utilizaremos o termo já estabelecido, que também nos parece mais próximo do uso cotidiano que se faz da palavra em português.
4 É possível que o problema deixado em aberto no texto sobre o estranho (1919) tenha justamente forçado o caminho nessa direção, junto com as questões do narcisismo (1914) e da melancolia (1917), desenvolvidas alguns anos antes.
5 Com uma preocupação similar, Freud já se detivera na distinção entre recalque e compulsão à repetição para o estranho. No retorno do recalcado, além do conteúdo estranhamente familiar, o próprio retorno é estranho enquanto compulsão à repetição.
6 No artigo anterior, exploramos essa questão em detalhe, com a ajuda da temática do fetiche.
7 Rank destaca a interessante consideração de Wundt, para quem a origem da ideia de alma está no sonhar, e não na observação das sombras.

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