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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo ene./mar. 2019

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Os adolescentes brasileiros em conflito com a lei

 

Brazilian adolescents in conflict with the law

 

Los adolescentes brasileños en conflicto con la Ley

 

Les adolescents brésiliens en conflit avec la loi

 

 

Fernando da SilveiraI; Jean-Pierre PinelII

IProfessor e supervisor de psicologia clínica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo
IIProfessor de psicopatologia social clínica da Universidade de Paris 13 e presidente da Transição: Associação Europeia de Análise de Grupo e de Instituição

Correspondência

 

 


RESUMO

Ao contrário de uma imagem de integração harmoniosa, o destino dos jovens brasileiros pobres, nascidos de populações descendentes de escravos deportados da África, envolve uma violência social muitas vezes extremada. Assassinato e suicídio são a trágica sina de dezenas de milhares de adolescentes todos os anos. Este artigo tem como objetivo caracterizar essa violência social e analisar suas fontes. Observa-se uma conexão muito estreita entre estratificação e discriminação social, o que produz uma desqualificação da lei simbólica e das leis sociais. Esse entrelaçamento repete-se de maneira feroz em instituições destinadas a acolher, proteger e acompanhar os adolescentes. Elas reproduzem uma negação da lei simbólica e violam as leis sociais, agindo como grandes transgressoras das proibições fundamentais. A prevalência da lei do mais forte, reivindicada tanto por profissionais quanto por adolescentes, configura um conjunto institucional sob o primado do fálico, a partir de uma posição de rigidez e legitimação da violência, associada a uma tomada do poder por figuras e autoridades tirânicas.

Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei, instituição, lei simbólica, assassinato, racismo, violência


ABSTRACT

Contrary to a much touted image of harmonious integration, poor young Brazilians born to populations descended from slaves deported from Africa are often exposed to extreme social violence. Murder and suicide are the tragic fate of tens of thousands of adolescents every year. The purpose of this article is to characterize this social violence and analyze its sources. A close intertwining of social stratification and discrimination has been observed, overturning both symbolic Law and social laws. This intertwining is strongly reinforced in institutions supposed to embrace, protect, and guide these adolescents, such that institutions reproduce a denial of symbolic Law and violate social laws, acting in practice as powerful transgressors of fundamental prohibitions. A prevailing law of the strongest, claimed by both professionals and adolescents, delineates an institutional framework operating under the primacy of the phallic, marked by a stance of rigidity and legitimization of violence, associated with power wielded by tyrannical figures and authorities.

Keywords: adolescent in conflict with the law, institution, symbolic law, murder, racism, violence


RESUMEN

Al contrario de una imagen de integración armoniosa, el destino de los jóvenes brasileños pobres, nacidos en poblaciones de descendientes de esclavos deportados de África, sufren una violen-cia social muchas veces extrema. Asesinato y suicidio son el trágico destino de decenas de miles de adolescentes todos los años. Este artículo tiene como objetivo caracterizar esa violencia social y anali-zar sus fuentes. Se observa que ha habido un entrelazamiento muy estrecho entre estratificación y dis-criminación social lo que produce una descalificación de la Ley simbólica y de las leyes sociales. Este entrelazamiento se repite de forma feroz en instituciones destinadas a acoger, proteger y acompañar a estos adolescentes, de forma tal que producen una negación de la Ley simbólica y violan las leyes so-ciales, actuando como grandes transgresoras de las prohibiciones fundamentales. La predominancia de la ley del más fuerte, reivindicada tanto por profesionales como por adolescentes, configura un conjunto institucional bajo la primacía de lo fálico, a partir de una posición de rigidez y legitimación de la violencia, asociada a una toma del poder por figuras y autoridades tiránicas.

Palabras clave: adolescente en conflicto con la ley, institución, ley simbólica, asesinato, racismo, violencia


RÉSUMÉ

Au contrario d'une image d'intégration harmonieuse, le destin des jeunes brésiliens pauvres, issus des populations (natives ou) descendantes des esclaves déportés d'Afrique, subissent une violence sociale trop souvent extrême. Le meurtre et le suicide constituent le destin tragique de dizaine de milliers de ces adolescents chaque année. Cet article vise à caractériser cette violence sociale et en analyser les ressorts. Il montre qu'il s'est instauré un nouage très serré entre une stratification et une discrimination sociale (s qui produisent) ce qui produit une disqualification de la Loi symbolique et des lois sociales. Ce nouage se rejoue de manière féroce dans les institutions destinées à accueillir, protéger et accompagner ces adolescents de telle sorte qu'elles reproduisent un déni de la Loi symbolique et bafouent les lois sociales en agissant des transgressions majeures des interdits fondamentaux. La prévalence de la loi du plus fort revendiquée par les professionnels comme par les adolescents, configure l'ensemble institutionnel sous le primat du phallique et partant d'une position de dureté et de légitimation de la violence, associées à une prise de pouvoir par des figures et des instances tyranniques.

Mots-clés: adolescent en conflit avec la loi, institution, loi symbolique, meurtre, racisme, violence


 

 

Este texto tem por objetivo contribuir com uma reflexão sobre as relações entre certa parcela da juventude brasileira e a sociedade contemporânea, numa perspectiva psicanalítica em extensão (Kaës, 2015), articulando os espaços psíquicos (intra, inter e transubjetivos) às singularidades do metaenquadre brasileiro. Serão tratadas especificamente as relações entre o inconsciente, os vínculos e a lei, a partir da experiência de um de nós, Fernando da Silveira, em São Paulo, com jovens em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas.

O projeto Fique Vivo1 foi desenvolvido entre os anos de 1997 e 2006. A princípio, visava subsidiar a formulação de políticas de prevenção específicas para jovens em conflito com a lei devido à alta incidência de contaminação pelo HIV nessa população. Desde o início, percebeu-se que a questão da prevenção era extremamente complexa e não podia ficar restrita à contaminação por HIV. A questão mais central a ser trabalhada era o vínculo desses jovens com a vida, tanto a própria vida quanto a vida do outro. Assim, o projeto cresceu e diversificou suas ações para além do campo da prevenção, desenvolvendo vários tipos de ação voltados para jovens privados de liberdade. A relação dos jovens com a lei sempre foi um tema central nesse trabalho e será discutida neste relato de experiência.

Entendemos que a lei é um elemento central na constituição do psiquismo de cada um e na estruturação das relações sociais. Os vínculos intersubjetivos e transubjetivos são, por sua vez, formações psíquicas individuais e coletivas, constituídas por contratos e pactos narcísicos, bem como por alianças inconscientes (Kaës, 2009), sustentados pelos sistemas normativos interiorizados, nos quais cada sujeito é, simultaneamente, convocado e parte atuante. Esse sistema de vínculos e de normas que os agenciam representa o fundamento das relações humanas.

O adolescente precisa encontrar o seu lugar no tecido social, assim como nos processos psíquicos. Entre um conjunto de determinantes, ele deve negociar com os vínculos inconscientes e as atribuições sociais que designam a ele os seus lugares e grupos de pertencimento. Se esses processos podem ser explorados numa perspectiva psicanalítica em extensão, eles precisam ser igualmente estudados levando-se em conta as especificidades do metaenquadre social e cultural. No Brasil, no entanto, os processos de socialização e integração social de alguns jovens são marcados por conflitos agudos, cujo destino é uma delinquência particularmente massificada e trágica, resultando com muita frequência na morte violenta desses jovens por homicídio.

Neste artigo, procuramos traçar um quadro sintético do contexto e do metaenquadre sociocultural associados a essa delinquência, além de explorar certos mecanismos sociais e psíquicos - inconscientes, intrapsíquicos, mas também intersubjetivos e institucionais - atrelados a essas configurações.

 

Os adolescentes, a delinquência e a violência no contexto social brasileiro

O relatório Mapa da violência 2014: os jovens no Brasil (Waiselfisz, 2014) é um estudo detalhado sobre a relação entre os jovens brasileiros e a violência. Segundo esse estudo, entre os países com a maior taxa de homicídio (por 100 mil habitantes) o Brasil está na oitava posição. De acordo com dados oficiais do Ministério da Saúde, 53,72% dos 62.517 homicídios no Brasil em 2016 tiveram jovens como vítimas. Essa é a principal causa de morte entre brasileiros de 15 a 29 anos (56,5%), atingindo principalmente um perfil particular.

Dados mostram que o homicídio no Brasil é seletivo: em 2016, 76,44% dos jovens assassinados eram negros e mestiços, e 94,6% eram homens. Nesse ano, para cada jovem branco assassinado houve o assassinato de 2,7 jovens negros. A grande maioria desses jovens era pobre e vivia na periferia das grandes cidades. Entre os jovens de 21 anos, a taxa de homicídio no Brasil atinge o nível mais elevado. Essa taxa é maior do que a dos países que vivem conflitos armados. Cerca de 95% dos homicídios foram causados por armas de fogo.

Segundo Barreira (2013), os conflitos interpessoais tornaram-se cada vez mais letais devido ao aumento do número de armas de fogo adquiridas ilegalmente. O autor cita a "entrada precoce dos jovens no mundo do crime, como agressor e, principalmente, como vítima", destacando assim "a vulnerabilidade do jovem nesse âmbito de violência difusa" (p. 228).

Um violento sistema escravista manteve-se no país desde a chegada dos portugueses até 1888. Estima-se que um total de 5 milhões e 800 mil escravos negros foram deportados para o Brasil. Essa história de deportação, extermínio e escravidão pôs o nativo e o negro fora da comunidade humana. De acordo com Georges Gaillard,

quando o sujeito foi tomado precocemente por desejos mortíferos, por parte daqueles que deviam inscrevê-lo entre os vivos, ele não é mais capaz de diferenciar o morto do vivo, e sente a sua vida como vergonhosa, submissa ao "poder absoluto do outro". (2015, p. 124)

As atuais mortes violentas podem ser pensadas como efeitos destrutivos da pulsão de morte, à qual são expostas populações que historicamente não foram capazes de se ligar - e de serem ligadas - de maneira humanizada com a sociedade.

A população descendente de escravos negros representa atualmente cerca de metade da população brasileira. Costa (2015) afirma que o racismo é um dos elementos essenciais do metaenquadre que organiza os laços sociais no país. Segundo a autora, no Brasil o racismo é denegado para garantir privilégios à elite branca descendente de europeus. A negação é apoiada pela ilusão de um Brasil inclusivo, harmonioso e racialmente democrático, onde todos teriam as mesmas oportunidades.

O pacto narcísico (Kaës, 2009), uma modalidade alienante de organização dos vínculos e espaços psíquicos, impede que as posições sociais do negro possam ser concebidas a partir das especificidades da nossa história. São vínculos narcísicos, herança do colonialismo, que sustentam a imobilidade dessas posições sociais. Podemos pensar que alianças inconscientes ofensivas, do registro de alianças psicopáticas (Pinel, 2001),2 atam essa configuração de vínculos, dedicando-se o conjunto social a imobilizá-la por negação e clivagem.

Além disso, discursos de culpabilização são dirigidos a esses jovens vulneráveis: eles e todos nós somos confrontados com os efeitos mortíferos da repetição de uma história violenta, que ainda não pode ser objeto de elaboração coletiva. Numa lógica perversa, os excluídos são vistos unicamente como ameaças à ordem social, denegando-se assim a parte destrutiva da nossa herança e a estratificação da organização social que se forma a partir do desdobramento dessa violência.

A associação entre "negritude" e violência está fortemente enraizada na cultura brasileira. De acordo com Schwarcz (1993), negros são considerados suspeitos a priori não apenas pela polícia, mas também pelo restante da população. Jovens negros e pobres representam a chegada de uma nova geração que busca pertencimento legítimo dentro do conjunto social. Esses jovens questionam os contratos narcísicos e os pactos denegativos em vigor. No entanto, as alianças inconscientes psicopáticas cristalizam as posições sociais e perpetuam os privilégios adquiridos, transmitidos de uma geração para outra, segundo modalidades que abrem amplo espaço, no melhor dos casos, para as denegações, mas ainda mais para as recusas.

Negros que acessam as universidades mais concorridas relatam a sensação de não pertencimento a esses lugares pelo constrangimento imposto por colegas e professores. Enquanto isso, currículos que destacam o pertencimento a círculos sociais de elite, como boas escolas e boas universidades, abrem as portas para os postos mais valorizados do mundo do trabalho. Em entrevistas de emprego, os gerentes de recursos humanos concentram-se em encontrar o perfil "certo" pela conformidade com a "boa" aparência. Essa normatividade é fundamental para a manutenção do pacto narcísico que sustenta vínculos intersubjetivos, separando o dentro e o fora, organizando ideais e identificações narcísicas.

A porta da frente está aberta apenas para quem é "idêntico", "como nós". Às categorias sociais inferiores corresponde a entrada de serviço, e é aí que o negro encontra o seu lugar. Enquanto alguns mecanismos de segregação e exclusão são muito sutis, como a naturalização de certos comportamentos preconceituosos, outros são mais explícitos, como a estratificação e a discriminação social, restando aos jovens negros e pobres apenas o lugar que lhes é atribuído. Há uma parcela significativa da população brasileira que não tem perspectivas verdadeiras de acesso ao mundo do trabalho valorizado, e os afrodescendentes esbarram numa dificuldade adicional, que é o racismo. Alguns resignam-se com essa situação. Outros encontram na marginalidade uma alternativa que constitui uma defesa da sobrevivência.

De acordo com o relatório Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil, "réus negros são, proporcionalmente, mais condenados que réus brancos e permanecem, em média, mais tempo presos durante o processo judicial" (Secretaria Nacional de Juventude, 2015, p. 15). Esse estudo mostra que o perfil da população brasileira encarcerada é semelhante ao das vítimas de homicídio. Segundo dados do Infopen (Departamento Penitenciário Nacional, 2014), 75% dos presos têm menos de 35 anos, e a maioria tem entre 18 e 24 anos. Barreira (2013) afirma que uma parcela muito importante da população brasileira vive numa repetição interminável de situações extremas.

 

A legislação brasileira e as alianças inconscientes

O Estatuto da Criança e do Adolescente (eca) (Lei n.° 8.069, 1990) representou um grande avanço no Brasil por ser uma lei que entende crianças e adolescentes como sujeitos de direito num momento particular do seu desenvolvimento. Com a promulgação do ECA , o Brasil foi o primeiro país do mundo a adequar a legislação voltada para a infância nos termos estabelecidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Onu em 1989. O ECA considera adolescentes pessoas entre 12 e 18 anos incompletos. Portanto, os seus atos tipificados como criminosos de acordo com o código penal são julgados como atos infracionais. Os adolescentes atores desses atos cumprem medidas socioeducativas, cujo objetivo é a reinserção social. Apesar de formalmente instituída, essa lei permanece em conflito com os vínculos inter e transubjetivos, os pactos narcísicos e a estratificação social que moldam o metaenquadre e regulam as relações interpessoais e sociais brasileiras.

Recentemente, fortes pressões sociais têm estimulado a discussão no Congresso Nacional sobre a redução da maioridade penal, hoje estabelecida em 18 anos, procedimento que seria acompanhado de maior rigor punitivo na aplicação da lei. Parece assim que, embora o Estado de Direito deva garantir os direitos fundamentais dos cidadãos e privilegiar a inscrição dos adolescentes no campo social, organizando a sociedade segundo uma lei estruturante, há um retorno constante do ódio e dos processos de exclusão sustentados por interesses conscientes ligados à configuração dos vínculos inconscientes. A resistência à mudança opera de acordo com a lógica dos pactos narcísicos, sendo estruturada pela manutenção dos privilégios herdados sob a primazia da lei do mais forte. Uma elite branca procura manipular a legislação para defender os seus próprios interesses, como foi feito pelos colonizadores. Essas manipulações ameaçam constantemente o estabelecimento do Estado de Direito.

Por muitos anos, a Febem, instituição responsável pelos jovens em conflito com a lei no Estado de São Paulo, foi também responsável por crianças e adolescentes em situação de abandono. Num estudo realizado na década de 1980, Guirado encontrou nos textos oficiais da Febem o duplo caráter da sua missão: "o atendimento e a conservação de crianças e jovens em situação de abandono e infração" (2008, p. 255). No lapso de um documento público, conseguimos identificar a expressão de um paradoxo estabelecido entre o direito e as políticas públicas que visam a proteção das populações vulneráveis e as alianças inconscientes que atribuem a essas populações o lugar dos excluídos. As instituições especializadas protegem, assim, os ganhos narcísicos e econômicos da elite branca. Podemos nos questionar se isso foi realmente um deslize ou uma forma de ação escriturai, ligada a uma intenção de autocontrole da cristalização antes mencionada.

Pellegrino (1987) articula o espaço intrapsíquico e o espaço social, entendendo que o pacto edípico não se sustenta no espaço comum a menos que os jovens encontrem o seu lugar na sociedade pelo acesso, especialmente, ao mundo do trabalho. Esse processo pode ser lembrado em linhas gerais. Com a dissolução do complexo de Édipo, a lei é internalizada. Ela é constituída essencialmente pela interdição do assassinato, do incesto e do canibalismo, e garante que a criança tenha um lugar na família sem o risco de ser destruída pela própria destrutividade e pela de todos com quem convive. O parricídio e o matricídio, assim como o fratricidio e o incesto, condenados ao recalque, constituem formações inconscientes que capturam e vetorizam o fantasmático do sujeito. Durante a adolescência, o contrato edípico assume uma valência social: abre-se a toda a sociedade, devendo garantir ao jovem um lugar no campo social quando ele segue as regras.

No entanto, a perversão da sociedade brasileira reside na exigência de que o jovem reprima ou recalque os seus impulsos violentos e agressivos sem que lhe sejam oferecidos nem lugar nem pertença. Desse modo, a fragilidade do contrato social põe em questão a organização edípica, uma vez que o jovem é confrontado com exigências de renúncia ao impulso enquanto não tem acesso às satisfações resultantes desse contrato. O que é configurado para esses jovens pobres e considerados essencialmente como não brancos é um pacto, e não um contrato que garanta equilíbrio entre doar e dever. A noção de pacto esconde aqui não apenas uma dimensão narcisista, mas também conotações incestuosas e mafiosas (Pinel, 2014) que não podemos deixar silenciadas.

 

Sobre o mundo do crime e a lei

O mundo do crime será uma alternativa de sobrevivência não só do ponto de vista da economia financeira, mas também do ponto de vista da economia psíquica. Não havendo possibilidade de acesso a um pertencimento social referido a uma lei estruturante, prevalecerão as "leis" locais baseadas na coerção e no direito do mais forte. Carreteiro (2003) mostra que a resposta à humilhação social vivida por esses jovens é a violência. A autora descreve uma lógica que ela interpreta como lógica da virilidade: "O exercício da virilidade se rebela contra qualquer tipo de humilhação, desonra ou não reconhecimento. Os indivíduos movidos por essa lógica buscam construir atos considerados heroicos. Eles se mostram destemidos, corajosos e almejam ser reconhecidos como tais" (p. 61). Esses atos heroicos, pautados na violência, visam restaurar um deficit narcísico, ou seja, restaurar uma autoimagem destruída pela falta de investimento narcísico por parte da sociedade, assim como pela humilhação decorrente da exclusão social à qual esses jovens foram submetidos.

Sob a lei arbitrária do direito do mais forte, os fracos não têm voz. O importante entre os pares é ser reconhecido como o "grande bandido", o que proporciona um sinal de respeitabilidade, virilidade e poder. Ser um bandido confere status. O ladrão, pelo poder da ereção fálica, sustenta os ideais narcísicos das comunidades pobres. Concede acesso ao que tem valor, ao que até então estava vedado: dinheiro, carros, motos, roupas bonitas e a sedução de algumas mulheres inacessíveis.

O perigo que esses adolescentes representam para a sociedade não é comparável ao perigo a que eles próprios estão expostos pelas suas condições de vulnerabilidade e exclusão social. São os jovens que exterminam outros jovens através do uso da violência, numa guerra que ocorre fora do Estado de Direito. Pela recusa de percebê-los como seres humanos, sujeitos de direito, os seus direitos fundamentais não são os mesmos dos "cidadãos de bem". Assim, são excluídos da comunidade, confinados a pertencer a uma entidade subumana, ao que Blanchot propôs pensar, no contexto da homossexualidade, a partir da noção de comunidade inconfessável: "A comunidade não é o lugar da soberania. Ela é o que expõe expondo-se. Ela inclui a externalidade do ser que ela exclui" (1984, p. 21). A comunidade inconfessável refere-se à criação de um imaginário - o de uma comunidade unificada, que comporta fundamentalmente uma parte de negatividade, a qual atribui aos sujeitos categorias estritas e indefinidamente congeladas, numa estratificação que os afeta tanto no registro da hierarquização quanto no da exclusão. A noção de comunidade se apresenta, desse modo, como uma ilusão: alguns têm mais direitos do que outros ao pertencimento comum.

 

Sobre o trabalho em instituições especializadas

A Associação Fique Vivo apoiou diversos projetos com jovens privados de liberdade, internados na Febem. O papel social, manifesto e oficial das instituições socioeducativas é retecer a trama simbólica (Henri, 2004), e assim reinscrever esses jovens num espaço social compartilhado. A observação central que atravessou essa longa experiência clínica foi que o que prevalece nessas instituições não é a lei instituída, promulgada por convenções nacionais e internacionais, mas a reprodução da lógica da lei do mais forte, apoiada pelos jovens, mas também pelos funcionários das instituições. Por exemplo, durante um trabalho com jovens privados de liberdade, um deles nos disse que queria ficar com a página de uma revista em que havia a foto de uma mulher seminua. Diante da recusa, ele insistiu, observando que ninguém ia descobrir. Devido à nossa própria insistência em apoiar uma lei estruturan-te que ia contra o pacto proposto pelo jovem, ele argumentou: "Que é isso, senhor! Ninguém vai descobrir. Aqui só tem ladrão. Pode confiar que é tudo gente boa, de respeito"

Aquele que é visto pela sociedade como um dejeto - e se organiza de acordo com uma lógica fálica (Gaillard & Pinel, 2012) - ou seja, o bandido, o ladrão, torna-se uma figura de confiança, credibilidade e respeito no mundo do crime. A partir de um narcisismo fragilizado, esses jovens buscam e recuperam um lugar de pertencimento e reconhecimento. A legitimidade desse lugar é confirmada pelos pares por meio do exercício da virilidade. Eles entendem que a força é necessária para fazer frente à situação de exclusão social a que foram submetidos. O caminho da legalidade é evocado de maneira irônica. Segundo Longhi, "para o bandido, o trabalhador é o otário 'que trabalha cada vez mais para ganhar sempre menos'" (2008, p. 20).

Os funcionários da Febem reproduziam, eles mesmos, uma lógica fálica, impondo-se pela força, pela coerção e às vezes pela tortura. Vários deles, inclusive os funcionários negros, compartilhavam pactos de exclusão em torno de uma suposta ordem social. Atuavam de maneira truculenta, humilhando os jovens e, muitas vezes, cometendo atos de tortura durante o trabalho. Um funcionário que revelasse fragilidade mostraria falta de confiança, e portanto era necessário recorrer a atos de humilhação em relação aos jovens. O resultado dessa atmosfera institucional foi que a Febem recebeu uma série de denúncias de tortura, algumas delas de organizações internacionais.

José Bleger observou que os hospitais tendem a reproduzir o mal que pretendem cuidar. Jean-Pierre Pinel (1996) propôs generalizar esse fenômeno para todas as instituições especializadas, apresentando o conceito de homologia funcional. Os jovens que foram submetidos a uma série de atos de violência e humilhação por parte da sociedade e da polícia encontrarão os mesmos mecanismos nas instituições que vão recebê-los. Trata-se de uma modalidade negativa de homologia funcional, uma homologia patológica, na qual nenhuma lacuna, nenhum trabalho de renúncia e nenhum processo de desenvolvimento engajarão a equipe. Tais instituições apenas confirmam e reforçam a patologia e o sofrimento psicossocial que a sociedade e os órgãos governamentais deveriam tratar. Esta é uma expressão notável da eficácia das alianças psicopáticas: as tutelas que deveriam apoiar as funções socializadoras e subjetivadoras dessas instituições são abandonadas ao seu funcionamento patológico. Em vez de implementar treinamentos e supervisões necessários para realizar as tarefas difíceis e complexas que lhes cabem, tais instituições, ao menos pela omissão, pelo silêncio, pela passividade, contribuem para a repetição de cenas de violência e, às vezes, de extermínio desses jovens. Pode-se questionar se essa passividade não se relaciona novamente com a implementação de uma aliança psicopática, participando da cristalização de posições sociais numa transversalidade negativa.

Do ponto de vista sociocultural ou mesmo político, é possível pensar que as transgressões desses jovens talvez sejam potencialmente subversivas. Elas poderiam ser consideradas uma alavanca necessária para apoiar uma revolta contra o sistema opressor. Muitos jovens justificam as suas ações dessa maneira. O exercício da virilidade não é percebido pelos jovens como parte do próprio sistema de valores da sociedade, que produz exclusão, desigualdade e injustiça social. Ao contrário do que lhes parece, a lógica da virilidade é a reprodução sem elaboração da violência, em que prevalecem valores associados à submissão do mais fraco ao mais forte. Seria então preciso desconstruir um discurso ideológico organizado em torno do mundo do crime, encontrando um pensamento "revolucionário" construído contra as injustiças sociais.

No entanto, o mundo do crime reproduz no seu interior formas brutais de opressão e exclusão da nossa sociedade, ao mesmo tempo atribuindo aos jovens a marginalidade e, para muitos, o extermínio. É isso o que Pellegrino (1987) chama de lei do cão, ou seja, a lei perversa imposta pelo terror, diferente da lei estruturante que organiza a passagem para a cultura, assegurada pelo respeito ao outro e pelo amor, através do entrelaçamento suficientemente consistente entre a parte convocada a renunciar ao narcisismo e a que confere a alteridade. Ao contrário da lei do cão, a nossa postura clínica tem sido sempre a de trabalhar a partir dos conflitos vivenciados, apoiando as posições referidas sob o primado de uma lei estruturante.

Em instituições de privação total de liberdade, encontramos a figura dos seguros, jovens que não podem viver em grupos porque estão ameaçados de morte por outros jovens. Eles se acham nessa situação por terem rompido com as regras do mundo do crime. Se a transgressão de regras sociais os submete à privação de liberdade, ao romper com as regras do crime, esses jovens são confrontados com a exclusão pela ameaça de extermínio. Apesar da intensidade dos protestos e das ameaças contra os seguros, sempre apoiamos o direito deles de presença nas atividades conjuntas. Os seguros são analisadores institucionais e sociais do pacto narcísico organizado em torno do poder do mais forte. Sob a lei do cão, o ódio e o extermínio prevalecem em relação àquele que é diferente e que ameaça o narcisismo demasiadamente frágil do grupo de adolescentes. Parece, assim, que são efetivamente as alianças ofensivas psicopáticas que se reproduzem nos níveis social e institucional do mundo do crime e das relações entre os próprios jovens.

Para reviver um processo de socialização e, possivelmente, de subjetivação, é necessário restaurar a capacidade dos jovens de pensar, por meio de dispositivos de grupo que lhes permitam reconhecer-se na figura do seguro, a qual eles rejeitam, mas que lhes foi atribuída pela sociedade. O trabalho de pensar os ajuda a perceber que reproduzem entre si a mesma lógica que é a base do seu extermínio. O enquadre dos dispositivos de grupo deve ser apoiado numa lei estruturante que, nessa situação, possibilite ao conflito aparecer e ser elaborado sem que seja excessivamente ameaçador. A partir disso, pode-se afirmar que a verdadeira transgressão é precisamente a que demonstra que esses jovens têm o direito de ocupar um lugar reconhecido e valorizado na sociedade, um lugar baseado numa lei estruturante, que garanta a todos a oportunidade de conviver com as diferenças numa sociedade diversificada como a brasileira.

 

Perspectivas ainda mais obscurecidas pelo atual contexto político

A implementação e coordenação de um estúdio de rádio conduzida por um de nós, Fernando da Silveira, ofereceu uma possibilidade de mediação para sustentar esses processos, combinando socialização e subjetivação. Nessa rádio, os jovens desenvolveram programas e discutiram temas escolhidos por eles com funcionários das mais variadas esferas hierárquicas. Apoiados pela equipe da Associação Fique Vivo, jovens e funcionários tiveram a oportunidade de dialogar sobre conflitos cotidianos.

Após dois anos de funcionamento, esse projeto foi fechado em 2006 por falta de recursos, decorrente de razões políticas, num momento de restrição à entrada de trabalhos de fora da instituição. Infelizmente, esse ato político vem confirmar que o entrelaçamento dos mecanismos socioculturais, dos espaços psíquicos e das alianças inconscientes confina o racismo, a exclusão e o extermínio de alguns jovens às representações em que as vítimas serão as únicas responsáveis pela sua condição.

Essas questões, porém, dizem respeito a todos os cidadãos, porque atestam a patologia dos laços sociais e das relações de poder que existem entre todos os brasileiros. Elas devem ser elaboradas individualmente, grupalmente e socialmente, porque se referem a uma ameaça ao Estado de Direito e, por conseguinte, a uma sociedade em que os vínculos se organizam a partir de uma lei estruturante. Os laços tirânicos internalizados infelizmente tendem a se perpetuar nos níveis pessoal, grupal, institucional, social e político, abrindo caminho para as suas piores derivações autoritárias, como podemos observar no atual contexto político brasileiro.

 

Referências

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Correspondência:
Fernando da Silveira
Rua Comendador Paulo Brancato, 141
04005-005 São Paulo, SP
fesilveira1@uol.com.br

Jean-Pierre Pinel
94 Avenue de la République
75011 Paris, France
jeanpierre.pinel75@gmail.com

Recebido em 8/3/2019
Aceito em 8/4/2019

 

 

1 Em 1997, foi firmada uma parceria entre a Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem) - atual Fundação Casa -, o Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids da Universidade de São Paulo (Nepaids/USP) e o Programa Estadual de DST/Aids com o objetivo de formular políticas de prevenção ao HIV voltadas para jovens privados de liberdade na Febem. Em 1998, o projeto passou a se chamar Fique Vivo. Em 1999, recebeu o Prêmio Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getulio Vargas e, em 2001, recebeu menção honrosa no Prêmio Socioeducando, iniciativa do Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas (Unicef) e do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud). Em 2000, transformou-se numa organização não governamental, a Associação Fique Vivo, que até 2006 desenvolveu várias ações voltadas para jovens em conflito com a lei.
2 Pinel define a aliança psicopática como uma aliança inconsciente formada a partir de uma configuração que enoda três protagonistas: um sujeito violento atuante, uma vítima e uma testemunha passiva, esta abstendo-se de exercer a função de um terceiro separador que lhe é institucionalmente atribuída. A violência é apreendida e mantida pela passividade da testemunha. Essa passividade pode ser o resultado de vários movimentos psíquicos inconscientes, às vezes intrincados, como espanto, terror, gozo e banalização. Em alguns cenários, o silêncio manifesto da testemunha pode mascarar uma dimensão mais ativa. Ações colusivas e registros perversos são então subterrâneos, dificilmente reparáveis, e contribuem para aumentar a confusão entre espaços psíquicos, entre interior e exterior, entre um e outro, até mesmo entre eu e outro.

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