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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.1 São Paulo ene./mar. 2019

 

RESENHAS

 

As escritas do ódio: psicanálise e política

 

 

Andréa Maris Campos GuerraI; Fídias Gomes SiqueiraII; Omar David MorenoII

IPsicanalista. Doutora em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
IIPsicólogo. Doutorando em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Correspondência

 

 

Organizadores: Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente
Editora: Escuta, Fapesp, São Paulo, 2018, 384 p.
Resenhado por: Andréa Maris Campos Guerra, Fídias Gomes Siqueira e Omar David Moreno

 

 

O livro As escritas do ódio: psicanálise e política, fruto do 5.° Coloquio Internacional Escrita e Psicanálise e 3.° Coloquio Psicanálise e Sociedade, reúne pesquisadores de diferentes programas de pós-graduação, de várias áreas, de três estados brasileiros e três países distintos, na composição de um mosaico de reflexões em torno do binômio psicanálise e política. O resultado são 23 densos artigos sobre diferentes modos de escrita do ódio, temática convergente e articuladora do encontro e dos textos.

A obra parte de uma seção de fundamentos teóricos, na qual se delineiam as premissas de base conceitual sobre as quais qualquer análise desse afeto primordial poderá ser empreendida, para se deter em dois grandes campos: o da segregação e o da política. Na segunda seção, aplica as noções psicanalíticas à compreensão de fenômenos contemporâneos e estruturais de segregação, numa abordagem interseccionada que inclui gênero, sexualidade, raça e classe numa franca denúncia da naturalização, personificação e encarnação do mal em figuras estereotipadas e selecionadas para serem alvo do ódio, justificando a violência e o desejo de eliminação que recai sobre elas. Na terceira seção, fenômenos e manifestações políticos brasileiros são tomados em análise sob a perspectiva psicanalítica, inovando-se na interpretação de sua incidência e de suas consequências. O livro se constitui, assim, numa chave de leitura indispensável, que abre portas à analítica do ódio como afeto primordial e constitutivo do sujeito, o que, tal qual o fio de Ariadne, evidencia sua função política de obscurecimento e seu manejo a serviço do status quo.

O artigo "Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a política", de Rosa, Alencar e Martins, abre a primeira seção, intitulada "Ódio e escrita da experiência", partindo de fenômenos de ódio explícitos em diferentes contextos a fim de explicar a autorização para odiar em duas notas: o ódio como uma das paixões do ser que se encontra na certeza da ignorância e na redução do lugar do outro; e a descrença e a desilusão presentes no berço das paixões, em oposição à resistência à instrumentalização social do gozo. A dialetização pelo enigma ou pelo desejo de saber abre caminhos para pensar seu enfrentamento.

Em "O discurso do ódio, uma paixão contemporânea", Rinaldi considera os fundamentos freudianos e lacanianos do ódio, centrada na hipótese de que se trata de uma paixão contemporânea. Retoma a aliança do capital com a ciência, a virtualidade e a palavra como insulto e injúria na atualidade. Sua hipótese é que, ao tentar forcluir o vazio originário do simbólico a partir de um discurso único, o ódio retornaria em manifestações contemporâneas sob o manto do crime, da barbárie e do genocídio.

Em "Odiai-vos uns aos outros", Cesarotto retoma as balizas freudianas sobre cujas bases se desenham as definições que subjazem ao ódio, apontando a utopia no horizonte da realização do desejo. Em "O retorno das vociferações", como colocação em exercício, nos corpos, de uma captura dos sujeitos por um discurso que exclui e elimina sua voz, Dias traz uma reflexão sobre as relações absolutizadas que culminam no extermínio e destruição de grupos específicos, algo a que o ódio conduz, na recusa do reconhecimento.

Em "Considerações sobre transmissão e posição clínica no discurso", Costa se vale de uma articulação que compõe, de um lado, uma abordagem do discurso e, de outro, as formações de linguagem a fim de elucidar os modos de transmissão intergeracionais e suas modalidades de retorno como memória. Num diálogo com Arendt, Benjamin e Agamben, destaca o originário como mítico e condição da linguagem, e a verdade como disjunta no saber, evidenciando a dimensão do tempo lógico em sua assunção através da análise de um filme.

Em "O que é o ódio? De onde ele vem?", Broide parte de cenas de violência sofridas por operadores das políticas públicas em seu cotidiano de trabalho para elevar a discussão clínica a uma perspectiva política, a fim de responder às questões do título. Toma como sorrateira a imiscuição dos efeitos do ódio nos vínculos transferenciais, em cujas figuras a violência estrutural e os danos colaterais se escrevem. Sua proposta é de o psicanalista tomar o ódio como vazio, em torno do qual pode deslocar a certeza do sujeito.

Dois artigos encerram a seção. Em "Um breve ensaio acerca das fraternidades do corpo", Prudente põe em questão o que Lacan pretende com a expressão fraternidade do corpo, elucidando e definindo com precisão termos caros à política para a psicanálise. Destaca a homogeneização do gozo e a universalização do sujeito, que apagam a singularidade e fortalecem as identidades, com segregações severas. Em "Escuta psicanalítica e alteridade: imigração e intersecções de gênero, raça e sexualidade", Mountian analisa o trabalho com imigrantes no Brasil, denunciando seus elementos intrínsecos, como a reprodução do racismo, as relações desiguais de poder e a interseccionalidade presente no problema. Discutindo o lugar do Outro, descortina a importância de o psicanalista pensar sua ação clínica a partir de seu lugar de poder e per-tencimento político.

A segunda parte do livro, "Ódio e segregação", apresenta ao leitor condições estruturantes da subjetividade pautando-se na teoria psicanalítica e dialogando com outras teorias também implicadas nos estudos sobre o ódio e a segregação. A discussão realizada pelos autores evidencia, no contexto atual, o acirramento das manifestações de ódio e dos mecanismos de exclusão social, racial, étnica, de gênero, econômica e política. Os trabalhos remetem o leitor aos impasses decorrentes da relação com o próximo, apontando como o campo das relações privadas se tornou gerenciável pela política no espaço público.

Em "Ódio e identidade: impasses no reconhecimento", Cunha propõe pensar o ódio como recurso para explicar a violência, a destrutividade manifesta e as tentativas de eliminação do outro com a transposição dos afetos privados para o espaço público. Em "Lugar de fala e apropriação cultural nas novas mídias: verdade, fragmentação e intolerância na política", Fantini chama a atenção para os riscos de tornar a vivência pessoal como substrato de verdade, demarcando a presença de "particularismos", que diferenciam os grupos, e salientando o perigo de reprodução da segregação nos novos espaços disponibilizados pelas redes sociais.

Em "De promessa de 'emancipação' à disseminação do ódio: redes sociais digitais e política", Ferreira retoma a proposição da ideia de conexão entre os indivíduos como consequência de uma distribuição mais democrática dos poderes para evidenciar que a possibilidade emancipatória propiciada pelas redes sociais deve considerar que estão em jogo o poder e o saber. Com a interferência do discurso capitalista nesse terreno, devemos indagar se estaríamos caminhando para a era da subjetividade digitalizada.

O corpo como lugar de violação e intrusão é recuperado como condição histórica caracterizada pelas consequências dos processos de escravização em nosso país. Nesse sentido, em "Racismo e sexismo: desafios da constituição psíquica de mulheres negras e homens negros", Musatti Braga e Souza apresentam diferentes incursões no corpo da mulher negra e do homem negro, tendo como premissa a herança de nossas relações de escravização. Por outro lado, a análise realizada por Gueller em "Respostas coletivas às intrusões no erotismo: as 11 garotas de Bertioga e a vacina do HPV" mostra o que acontece quando o poder público intervém no corpo e produz a emergência do sexual e do gozo. A intervenção estatal e a insuficiência de um saber sobre o corpo erógeno levam a uma nomeação catastrófica.

O recurso literário e a música tornam-se condição para a inscrição e o tratamento do ódio. O trabalho de Andrade, "Gestos de ódio à pele escrita: o berro do chão, a cicatriz aberta", faz uma incursão pela literatura, a partir da relação entre pele e superfície, para falar do ódio. Atingido em sua profundidade, o corpo expressa também na pele a superfície da dor e a acuidade do ódio. Herdeira de nossas memórias mais remotas, encontra-se na escrita um destino para a dor e o ódio.

A dor inscrita na pele dos jovens negros das periferias leva a inventar soluções. Em "Rap: o 'efeito colateral' da segregação", Cerruti trata da invenção do rap, o qual recompõe o jovem na trama discursiva. Em "Culpa, crime e castigo nos destinos da lei de acordo com Ricardo III, de William Shakespeare", a análise teórico-literária de Radiszcz aponta o lugar de exceção a que o ódio e a segregação podem nos conduzir. Enfatiza a predominante violência do supereu, seu insensato mandato, reclamando a lei e a destruição, e sua articulação ao regime disciplinar, campo fértil para a disseminação do ódio e a reprodução da segregação.

A centralidade dessa seção na aplicação dos princípios teóricos isolados na primeira confere uma cadência ascendente que desenha no livro as expressões do horror e do ódio, da injúria e da calúnia, expressões que atualizam a teoria psicanalítica no tratamento de um afeto tão vivenciado no cotidiano atualmente. A terceira parte do livro não nos deixa mais sossegados. Intitulada "Ódio e política", nela encontramos uma série de artigos que exploram especificamente a relação de fenômenos de ódio no cenário político brasileiro contemporâneo, desde as manifestações de 2013 até a violência de Estado sofrida pelos egressos do sistema penitenciário. Há uma intersecção da teoria psicanalítica com a filosofia política, a pedagogia, as diversas ciências sociais e a psicologia social, numa estrutura dialógica cuja interface entre as diferentes disciplinas visa não a construção de hegemonias ou oposições, mas a configuração de um novo objeto, extraído do encontro entre seus limites.

Em "O ódio na política, políticas de ódio", Koltai se pergunta por que tanto ódio no Brasil contemporâneo, indagando se o ressentimento em nossos dias não teria a ver com a queda da esperança no progresso. Retoma o ódio social, radicado na suposição sobre o gozo do outro, e o multiculturalismo, que se radicalizou no medo ao desconhecido, produzindo um imaginário despolitizado.

Estevão inicia sua reflexão em "O mal-estar na democracia" questionando se caberia ao psicanalista, no momento contemporâneo de efervescência política, uma militância. Utiliza um paralelo sobre a estruturação psíquica e seus modos de operar na sustentação ou recusa de uma modalidade de governo. Sua tese é que, enquanto a ditadura tenta conferir consistência ao Grande Outro, a democracia, como seu contrário, implica uma constante retirada de sua consistência.

Em "Violência, democracia e linguagem", Endo propõe que a oposição entre violência e linguagem poderia ser meramente descritiva, pois a violência não abre mão da fala, como pressupunha Freud. Convida a superar o impasse linguagem e violência pela oposição entre política e violência, assinalando a inversão que a violência legítima constitui ao defender quem a manipula, e não quem dela carece.

Coelho intitula "Cultura da paz" sua reflexão sobre os protestos no Brasil entre 2013 e 2015, nos quais coexistiram manifestações violentas e enfrentamentos com a polícia e manifestações pacíficas pelo retorno da ditadura militar, perguntando-se qual entre ambas as vertentes seria preferível. A administração do medo permitiu construir e localizar inimigos, produzindo ódio e uma radicalização das identidades.

Em "O 'poder exacerbado' no Brasil e algumas de suas ressonâncias para a infância e juventude", Castanho faz uma aproximação entre a teoria de Paulo Freire, as ideias de Jessé Souza e a psicanálise de grupo para entender as consequências subjetivas do "poder exacerbado", conceito usado por Freire para ler as relações de poder e desigualdade no Brasil. Lara Jr., Teschainner e Dunker analisam o fenômeno do panelaço surgido nas manifestações contra a presidenta Dilma Rousseff em "Panelaço: uma análise psicanalítica de discurso sobre o Estado de exceção brasileira dos anos 2015-2016". Na lógica do condomínio, o panelaço seria um novo tipo de manifestação política, que chega ao público sob o abrigo do privado e favorece um Estado de exceção, no interior do qual ninguém se responsabiliza.

Finalmente, em "O trabalho clínico junto às populações afetadas pela violência de Estado", J. Broide denuncia a obrigação, na lei penal brasileira, de cobrar ao condenado tanto multas financeiras quanto penas como prisão por crimes contra o patrimônio. Desse modo, mostra que os egressos do sistema prisional, com os quais trabalha numa intervenção com pessoas de rua, sofreriam, com essa disposição penal de pagar no final da condenação uma multa de milhares de reais, de uma violência de Estado, além de uma carência de políticas públicas e ações específicas que permitam sua inserção na sociedade. O autor defende a escuta clínica para operar na cidade como um desafio da psicanálise no mundo contemporâneo.

Como num mosaico de peças incialmente dispostas sem forma, o livro desenha ao final a maneira como o ódio, enquanto uma das paixões do ser, ganha seu colorido na política. A ilusão que recobre o ser, em detrimento do sujeito dividido e do desejo, forja a ilusão do Um, sobre o qual recai o gozo da aniquilação, fortalecido na dimensão imaginária. O refrão lacaniano, animado em cada seção pela pena de um/a autor/a, reencontra seu justo termo: "O ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário. ... O ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento, seja a sua desorientação, o seu desvio, o seu delírio, a sua negação detalhada" (Lacan, 1986, p. 316).

No horizonte de nossa época, diferentes tentativas de elucidação das dimensões da política se alinham, no contexto nacional e internacional, com vistas à constituição de referências conceituais e operatórias para o trabalho político. A interface com interlocutores da filosofia evidencia a face política da psicanálise, inarredável desde sua fundação com Freud. As diferentes perspectivas do ódio na política e na clínica ganham relevo e centralidade nessa obra, abrindo-se a inovadoras soluções, tendo a psicanálise como chave de leitura a descortinar, na política, refrações e luminosidades em que a sombra do desencanto e da desilusão fazem da impotência um elemento desencadeador e instalador do ódio.

O livro traz reflexões densas e perspectivas novas sobre a política contemporânea à luz da psicanálise. E resta a aposta no desejo, no sujeito dividido, cujo horizonte é a castração e a responsabilidade - ainda que os tempos sejam de sombras e escuridão, de retrocessos e acirramento. Tomar o ódio como furo real em torno do qual o psicanalista se situa, como lembra uma das autoras, recoloca a sua própria responsabilidade na centralidade da sua ação, sempre clínico-política, de fazer o discurso circular em busca de novos estilos de significantes mestres. Eis o convite deste livro ao psicanalista que possa fazer a diferença.

 

Referências

Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954) (B. Milan, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Andréa Maris Campos Guerra
Avenida Antônio Carlos, 6627, sala F4030
30210-070 Belo Horizonte, MG
Tel.: 31 98489-4548
andreamcguerra@gmail.com

Fídias Gomes Siqueira
Tel.: 31 99915-3204
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Omar David Moreno
Tel.: 31 99198-4497
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