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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

ENTREVISTA

 

Entrevista: Dominique Scarfone

 

 

Tradução Tania Mara Zalcberg

 

 

Dominique Scarfone é analista didata e membro da Sociedade Psicanalítica e do Instituto Psicanalítico de Montreal, no Canadá. É também professor honorário e pesquisador da Universidade de Montreal e autor de inúmeros livros e artigos, entre eles Jean Laplanche (PUF, 1997), As pulsões (Unisinos, 2005) e The unpast (The Unconscious in Translation, 2015). De 31 de agosto a 3 de setembro de 2018, ele esteve no Brasil para um ciclo de palestras na Universidade de São Paulo (USP) e na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Esta entrevista, realizada no dia 3 de setembro, tornou-se um prazeroso bate-papo sobre a psicanálise, em seus idiomas e tempos.

RBP: Muito obrigado pela oportunidade de conversar com a RBP. É sua primeira vez no Brasil?

DS: É minha primeira vez no Brasil e ao sul do Equador. Estou tendo uma excelente experiência e estou muito grato por ter sido convidado.

RBP: Ótimo. Você apresentou algumas conferências em São Paulo, uma na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e outra no Instituto de Psicologia da USP. Quais foram os temas escolhidos para discutir aqui e por quê?

DS: A ideia geral, proposta por Elias Rocha Barros, era reunir pessoas que trabalham com as ideias de Laplanche e pessoas que trabalham com as ideias de Bion. Esse foi o quadro geral em que minha visita foi planejada, e me pediram que apresentasse um artigo recentemente publicado por mim, em francês, sobre fantasias inconscientes. Nesse artigo, avento que, em termos metapsicológicos, não podemos afirmar que existam fantasias inconscientes. Na realidade, não podemos saber se elas existem ou não, por uma razão epistemológica, e minha ideia a esse respeito resulta do meu trabalho em torno da teoria de Jean Laplanche.

Além de apresentar essas ideias, também fui convidado a discutir artigos de dois analistas brasileiros, Nelson Ernesto Coelho Junior e Roosevelt Cassorla. Fiquei muito satisfeito, pois, apesar das referências distintas, acho que encontramos maneiras interessantes de aproximar os pensamentos, e gosto desses convites para procurar pontes e conexões. Tenho a ideia geral de que os autores mais importantes da psicanálise, aqueles que inspiram a maioria dos analistas de diferentes escolas, tocaram em algo do inconsciente e deve haver algum modo de encontrar pontes para conectar esses pensamentos.

Se concordarmos a respeito da existência de uma ética da tradução, teremos de admitir que, sempre que lemos algum autor, fazemos uma tradução. Eu me baseio principalmente em Freud e na leitura que Laplanche fez de Freud, incluindo a compreensão de outros analistas franceses, como Michel de M'Uzan e Piera Aulagnier. Mas necessariamente faço minha própria tradução. Ao ler algo de Bion, ou de um analista bioniano, citando-o ou não, também necessariamente faço uma tradução. Ora, a teoria da tradução diz que a tradução nunca é completa, sempre há algo que se perde. Precisamos reconhecer isso. Caso contrário, pensaremos ser possível compreender integralmente um autor e dominar inteiramente um tema, sem aproveitar a chance de aprender com o que escapa. Portanto, com essa ética da tradução em mente, acredito que mais importante para nós, psicanalistas, é trocarmos e discutirmos, adotando o método de respeitar as diferenças e realmente procurar a parte que falta na tradução inicial.

RBP: Podemos inferir duas questões a partir do que você traz. Uma refere-se à estrutura metapsicológica e à impossibilidade de falar em fantasias inconscientes. Talvez você pudesse explicar um pouco mais, a partir da teoria laplanchiana, como você pensa que essa questão se desenvolve. Também gostaríamos de ouvi-lo sobre como Laplanche e seu trabalho a propósito do traduzir o ajudam diante da ética da tradução.

DS: Sim, escrevi alguns textos sobre Laplanche - mais recentemente, um artigo para o International Journal of Psychoanalysis, bem como outro, pequeno, para uma enciclopédia na França. O que apresento a respeito de Laplanche é que se poderia separar sua obra em três partes. A primeira é sobre o método de ler Freud, discutido em seu artigo "Interpretar (com) Freud". Interpretar Freud com Freud é apontar as armas de Freud para o próprio Freud e pedir-lhe que se explique, por assim dizer, ao se escutar psicanaliticamente. Essa é a base mais importante da obra de Laplanche, a que mais me ensina. Mas, ao ler Freud dessa forma, ele foi levado a dois outros aspectos, o segundo deles sendo a teoria da tradução e o terceiro a teoria da sedução. Há uma prática de tradução que toma por base a famosa carta 52, na qual Freud introduziu um novo modelo de tradução que infelizmente ele não utilizou publicamente. Mas acredito que possamos fazer muito com isso em psicanálise, usando as bordas da tradução. Ao ler Freud como leu, Laplanche pôde, por um lado, fazer uma crítica radical ao fato de Freud ter abandonado a teoria da sedução e, por outro, propor uma nova versão dessa teoria, denominada teoria generalizada da sedução ou teoria da sedução generalizada. Isso pode funcionar de dois modos, simultaneamente como um novo alicerce para a psicanálise e como algo profundamente enraizado nela, apesar de Freud, por assim dizer.

RBP: Por tradução, você quer dizer a tradução do inconsciente a partir do consciente?

DS: Sim. Temos esse diagrama na carta 52, em que Freud escreve a Fliess: "Agora, cheguei à conclusão de que memória não é apenas um único registro, que existe a percepção, e a percepção deixa um sinal, que é transcrito novamente ou traduzido para o inconsciente, depois ao pré-consciente, e depois aos elementos conscientes em tempos diferentes do funcionamento da psique". O mais importante é que nessas transcrições ou traduções podem ocorrer falhas, e essas falhas são o que denominamos repressão. Para mim, compreender a noção de repressão como falha de tradução soluciona muitos impasses da teoria psicanalítica. Laplanche pensa que a tradução primária da mensagem comprometida do outro, quando bem-sucedida, cria os núcleos do ego, e mesmo o que não é traduzido é instalado na psique como fonte interna das pulsões. Considero esse um modelo revolucionário, baseado em Freud, mas não desenvolvido por ele. Com esse modelo em mente, fica claro que não se podem aceitar fantasias primárias como inatas, traduzidas geneticamente, como Freud acreditava. As fantasias seriam a parte da tradução das mensagens enigmáticas que a criança consegue fazer. Assim, elas não são inconscientes do ponto de vista sistemático da palavra; na melhor das hipóteses, são construções da própria criança. O inconsciente é a parte residual, não sendo originário, assim como o pré-consciente não traduzido e a fonte da pulsão, que a rigor também não são feitos de teorias ou ideias inconscientes.

RBP: Portanto, de certa maneira, Laplanche deu consistência metapsicológica à expressão italiana "Traduttore, traditore".

DS: Exatamente. Laplanche o fez, e é nisso que me baseio. Não há fantasias inconscientes, embora haja fantasias que desconhecemos, por não estarem acessíveis de imediato para nós. Outro problema epistemológico é que temos acesso apenas às fantasias que nossos pacientes expressam para nós, e há fantasias que surgem a partir do nosso trabalho conjunto. A questão é se estavam presentes todo o tempo ou se as construímos juntos no trabalho cooperativo da sala de análise. Acredito que não poderiamos dizer com certeza que as fantasias estavam lá desde o início - e mais: baseando-me em Laplanche, diria que provavelmente não estavam. Fantasias, teorias infantis e tudo que se construa ao lado de algo estruturado e que contenha significado decorre do resultado positivo da tradução. O que não é traduzido, Laplanche denomina de espinha irradiativa, como um espinho na carne que impulsiona a mente para a tradução todo o tempo. Trata-se do impulso para dar sentido ou para agir, e isso não tem forma ou estrutura específica, diferentemente da ideia de Lacan de que o inconsciente está estruturado como linguagem. Para Laplanche, o inconsciente não é estruturado, assim como para Freud no artigo sobre o inconsciente, de 1915, em que existe a ideia de uma progressão em direção à organização, à medida que emergimos do inconsciente.

RBP: O que você acha que a teoria de Laplanche realmente mudou em Freud?

DS: Laplanche disse a seu próprio respeito que ele foi fielmente infiel a Freud. Sua crítica a Freud é principalmente em relação ao aspecto biológico, como o modo que concebe as fantasias inatas, mas reconhece que Freud jamais deixou de procurar de maneira muito consistente o objeto da psicanálise, o inconsciente e o funcionamento do psiquismo. Laplanche retrocede no tempo ao que ele chama de cataclismo do abandono da teoria da sedução, levando em conta a importância do après-coup, do a posteriori, que está muito presente nos artigos de Freud sobre neuroses de defesa e teoria da sedução. Porém retoma a ideia de que, ao abandonar a teoria da sedução, Freud teria jogado fora o bebê com a água do banho, ou seja, ao dizer que a sedução é uma teoria infantil, ele esquece que, antes de ser uma fantasia, a sedução é um fato. Não se trata necessariamente do fato patogênico, como antes pensara; contudo, como o adulto possui um inconsciente, uma pulsão sexual reprimida, isso o torna um sedutor para a criança, queira ele ou não.

Ora, o próprio Freud, embora tenha abandonado oficialmente a teoria da sedução, afirma nos Três ensaios que a mãe é uma sedutora involuntária, ainda que mantenha isso no nível de curiosidade empírica, por assim dizer. Ao cuidar do bebê, ela excita suas zonas erógenas, e assim por diante. Laplanche generaliza mais ainda ao dizer: "Sem sequer tocar o bebê, nós o expomos a muitas situações em que o sexual está envolvido, e o bebê dificilmente consegue compreender isso". A própria amamentação é uma situação sexualizada, já que a mãe penetra a boca do bebê com um mamilo ereto. Assim, obter o leite é uma coisa, porém o que dizer da ereção e do orgasmo que certas mães vivem enquanto amamentam seu bebê? Com certeza a criança registra algo; contudo, não pode decodificar nem compreender. Laplanche nos lembra que Klein fala em seio bom e seio mau e em experiência satisfatória ou persecutória apenas no plano do seio que nutre, não do sexual.

Em termos do apego e dos cuidados gerais, a criança aprende rapidamente que há uma relação recíproca. Quando se trata do sexual, não. Há uma assimetria entre adulto e criança. À medida que a criança cresce, ela tenta dar sentido à porta fechada do quarto dos pais, à barriga da mãe que incha com outra criança. Os enigmas da sexualidade provocam a criança, e as teorias infantis demonstram o fato de que ela é uma investigadora nata, tradutora e teórica. Isso caminha ao lado da estrutura do ego da criança, enquanto o que ela perde, o que ela não consegue traduzir, permanece como enigma provocativo, algo que sempre a surpreende. Para Laplanche, essa é a implantação do sexual na criança, que com certeza não é um dado biológico. O corpo é excitável, porém não é a fonte das pulsões, e sim o lugar em que o sexual será implantado, de maneira que o sexual adquirido vem antes da sexualidade inata, que surge na puberdade. E, quando a puberdade ocorre, é tarde demais, o lugar já está ocupado pelo sexual adquirido, de tal modo que em seres humanos, no quadro dessa teoria, nunca chegamos a ter que lidar com sexualidade natural, estamos sempre em situação cultural e interpessoal.

RBP: Podemos ver que a teoria de Laplanche faz muito sentido para você e gostaríamos de saber a sua história na psicanálise. Em suas conferências aqui em São Paulo, vimos você falando em diferentes idiomas - inglês, português e espanhol. Como você circula entre idiomas (psicanalíticos e linguísticos) e se perde em suas próprias traduções? Qual é a sua língua real?

DS: É uma questão muito apropriada, porque nos últimos anos cheguei à conclusão de que não habitamos uma linguagem: habitamos entre linguagens. Isso tem relação com minha história pessoal. Eu diria que isso tem um antecedente no "Projeto", de Freud, pois lá ele conclui que a criação de memórias não acontece nos neurônios, mas entre os neurônios. Trata-se dos elos que hoje chamamos de sinapses e que correspondem ao que ele imaginou como barreiras de contato, favorecendo as redes que são criadas pela conexão. Eu diria que ocorre o mesmo com as linguagens: vivemos entre línguas. Isso nos traz de volta à teoria da sedução de Laplanche, dado que mesmo a nossa língua materna, a primeira que aprendemos, é uma língua estrangeira. Apesar de nossas mães, não temos uma língua natural, mas uma estrangeira introduzida pela experiência da língua materna. Sabemos que, se não falarmos com uma criança, ela não falará. O cérebro precisa ser fertilizado pela linguagem.

RBP: Pode-se dizer isso do encontro clínico também?

DS: Certamente. Vocês capturaram para onde eu estava indo. Estamos sempre entre linguagens. De forma empírica, pensando em minha história: nasci no sul da Itália; minha primeira língua foi a que minha mãe falou comigo e que oficialmente nem é italiana, é o calabrês de algumas regiões da Calábria. Eu morava em uma aldeia gêmea - havia duas aldeias ligadas entre si e não havia possiblidade de dizer onde uma terminava e a outra começava. No entanto, na nossa aldeia achávamos que os da outra tinham sotaque. Veja como é. Na escola, as aulas eram em italiano. Depois fui mudado para o Canadá.

RBP: Qual é a língua materna do seu pai?

DS: A mesma. Quando eu fui mudado para o Canadá, tive de aprender francês e depois inglês.

RBP: Você disse que foi mudado para o Canadá?

DS: Eu era criança; portanto, não participei dessa decisão.

RBP: Qual era sua idade?

DS: Eu tinha 10 anos. Aprendi francês com muita facilidade, devo dizer. Eu não falava uma palavra de francês quando mudamos e depois aprendi inglês, não tão bem quanto francês, mas eu dava um jeito e sempre me interessei por línguas. Descobri que conseguia ler português por puro acaso. Eu já tinha noção de leitura em espanhol por serem línguas latinas, certamente. Quando alguém tem uma segunda língua, é muito mais fácil compreender uma terceira, uma quarta, e assim por diante. Aprendi um pouco de alemão, mas, por falta de prática, perdi. Tenho uma cópia das Gesammelte Werke, de Freud, apenas para conferir algumas vezes, quando tenho dúvidas. Até a tradução de Laplanche eu confiro, com dicionário, para ter certeza de sabermos do que estamos falando. Portanto, tenho paixão por línguas. Penso, porém, que, para cada um de nós, a linguagem que falamos não é fixa, evolui, e temos nossa versão privada, até mesmo da nossa língua oficial, de tal forma que estamos entre línguas. Não consigo responder qual é a minha língua, talvez porque não haja uma verdadeira que seja realmente minha. Por puro acaso, eu escutava, outro dia, uma entrevista de Pontalis para a Rádio Cultural Francesa. Perguntaram-lhe como ele tinha descoberto quem ele era. E Pontalis respondeu: "Nunca descobri". Porque eu penso que mudamos o tempo todo. Portanto, espero jamais descobrir quem eu sou, e que ninguém diga: "Este é quem ele é".

RBP: Isso leva às questões do tempo e da temporalidade, mas antes gostaríamos de saber como você soube que queria se tornar psicanalista e qual a sua história com Laplanche.

DS: É uma história de amor. Eu tinha uma namorada que estava lendo A interpretação dos sonhos. Então, me interessei e fiquei totalmente animado com isso. Eu tinha certeza de que faria medicina, antes mesmo de conhecer Freud. Mas, quando li A interpretação dos sonhos, pensei: "É isso que quero fazer". Naquela época, achava que para ser psicanalista era preciso ser psiquiatra.

RBP: Você pensou que era preciso ou era assim mesmo?

DS: Era, mas não em Montreal. Quando decidi fazer uma especialização, fui para a psiquiatria. O primeiro internato foi em um hospital psiquiátrico muito antiquado, em que nós, psiquiatras, recebíamos os pacientes por cinco minutos, fazíamos prescrições e os mandávamos embora. Daí pensei: "Não, com certeza não é isso que quero fazer". Felizmente, um segundo internato no ano seguinte me levou a um hospital com orientação mais psicanalítica, e então me tranquilizei. Inicialmente, minha intenção era me tornar psicanalista. Por outro lado, em termos de ideologia política, eu queria fazer psiquiatria comunitária e correlacionar o social, o psiquiátrico, e assim por diante. Quando comecei minha análise, por razões pessoais, aconteceu de ser com um analista didata, o que não era exigência em nosso instituto. Fiz 10 anos de psiquiatria comunitária e pensei que o que considerava mais agradável era encontrar os pacientes um a um. Daí fui fazer a formação. Houve idas e vindas: comecei querendo ser psicanalista, depois decidi não ser, e então minhas experiências pessoais de análise trouxeram-me de volta.

Agora, Laplanche. Eu conhecia o Vocabulário,1 como todos, e não sabia mais nada sobre ele. Eu achava que era o único livro que ele tinha escrito na vida, e isso já era muito. Mas certo dia, numa livraria, descobri o primeiro volume das Problemáticas, A angústia, e fiquei totalmente impressionado. Ele era claro, rigoroso, criticava Freud quando era necessário criticar. Pensei: "Esse é o meu cara". Assim, entrei em um pequeno grupo de estudos que estava lendo Laplanche, página por página, minuciosamente, e em 1987, após diversos anos desse seminário, houve uma reunião da IPA em Montreal. O líder do grupo de estudos teve a feliz ideia de escrever a Laplanche e perguntar se por acaso ele estaria vindo para essa reunião. Ele contou que tinha sido convidado para fazer uma apresentação e que não tinha pensado em ir. Aí ele disse: "Mas, agora que sei que vocês existem, eu vou". Passamos três dias inteiros formulando todas as centenas de perguntas que tínhamos para ele. Isso foi determinante em minha vida.

No entanto, não gosto de pensar em mim como laplanchiano. Não acho que analistas devam portar uma etiqueta. Deveríamos ser livres-pensadores, mas certamente consideramos um jeito de pensar mais útil do que outro. Se me perguntassem do que eu gosto em Laplanche, voltando às três partes da obra dele que mencionei antes, o leitor de Freud, o tradutor de Freud e o autor da teoria da sedução, eu escolheria a primeira. O que considerei mais proveitoso foi a maneira como Laplanche abriu meus olhos ao ler Freud. Ele me levou a ler Freud com tal liberdade que tenho a confiança de que, se seguirmos Laplanche no modo como ele lê Freud, encontraremos tradução e sedução. Mas não considero que a teoria da sedução, da forma que Laplanche a formula, seja a última palavra a respeito, e me atrevo a introduzir algumas coisas aqui e ali que a ampliam. Certa vez, tentei escrever um artigo ligando Laplanche a Winnicott, mostrei a Laplanche e ele disse: "Não estou interessado. Eu não gosto". Portanto, tenho discordâncias de Laplanche. Outro exemplo: apesar das diferenças, eu vejo grande relação entre as teorias de Aulagnier e Laplanche sobre a questão da violência, do ambiente das traduções infantis entre adultos e crianças etc., mas ele não concordaria.

RBP: Seu modo de explicar Laplanche me faz lembrar Ferenczi.

DS: Há uma linha conectando Ferenczi e Laplanche, especialmente no artigo "Confusão de línguas".

RBP: Entre línguas, sim?

DS: Entre línguas.

RBP: Percebemos que você navega com muita liberdade entre autores e teorias, mantendo-se fiel a uma metapsicologia que não precisa ser biológica e bastante próximo a pensar os processos psíquicos inconscientes. Você acredita que isso venha do fato de estar no Canadá? E quais os autores que mais te influenciaram, tanto do ponto de vista vertical como do horizontal (em sua geração)?

DS: Veja, a parte de estar no Canadá é muito importante. Novamente, é a questão de estar entre, porque não estou apenas no Canadá, estou no Canadá francês. Portanto, somos uma Sociedade que está em Montreal, América do Norte, mas fundada por pessoas que vieram tanto da Inglaterra quanto principalmente de Paris, e alguns poucos dos Estados Unidos. Assim, tivemos muitas influências, mas hoje predomina a versão francesa não lacaniana da psicanálise. As principais influências na Sociedade Canadense em Montreal são a APF [Associação Psicanalítica da França], a SPP [Sociedade Psicanalítica de Paris],.. Green foi bastante influente, e o chamado Quarto Grupo,2 Piera Aulagnier, Nathalie Zaltzman... Há também um grupo de membros da Sociedade inglesa na Sociedade Canadense em Montreal que é influenciado por Bion e pela psicanálise relacional. Eles estão muito interessados no que fazemos.

RBP: Então, em Montreal, vocês têm duas Sociedades diferentes?

DS: Temos duas Sociedades diferentes, sim.

RBP: Uma de língua francesa e outra de língua inglesa.

DS: E há grupos em outras cidades também. A influência é novamente uma mescla, mas com certeza a principal é da França. Estar no Canadá, porém, ajuda bastante, porque sei por experiência e pelo que amigos de Paris me contam que, por exemplo, alguém que frequentou o seminário de Laplanche não deveria ir ao seminário de Green, e vice-versa, porque seria traição. Não sei se ainda é assim em Paris (espero que não seja). Talvez o seja menos agora, mas existe essa espécie de lealdade ao grande mestre, e isso nunca funcionou comigo, apesar de ser possível dizer que Laplanche foi um mestre para mim, embora não um mestre no sentido de alguém a quem se deve seguir cegamente. Ele me ensinou a ler Freud, a pensar psicanálise, e devo isso a ele, mais do que a qualquer outra pessoa. Tive também interações muito profundas com Michel de M'Uzan - felizmente, ele concorda muito com Laplanche e, portanto, é fácil - e com Nathalie Zaltzman - ela era do Quarto Grupo e não necessariamente concordava nem com Laplanche nem com Green; era uma autora única, e eu gostava muito da sua obra. Zaltzman estava alinhada a Piera Aulagnier. Para mim, Aulagnier é a única autora obrigatória de ler quando se trabalha com psicóticos. Sua metapsicologia é inspirada por sua experiência profunda com esse tipo de paciente. Li Piera Aulagnier tão minuciosamente quanto li Laplanche, mas acho que Laplanche tem uma base mais geral e complementar a Aulagnier; portanto, para mim não há contradição.

RBP: Você também menciona algo que considero importante: a organização de Sociedade parece ser mais livre, no sentido de que você não precisa ter um analista didata...

DS: Sim, isso foi inspirado pelo Quarto Grupo e pela APF, em que não é obrigatório se analisar com um analista didata. A especialidade deles é fazer a seleção dos candidatos e a supervisão. Com certeza, eles também fazem análise, mas não é obrigatório analisar-se com eles. É possível se analisar com quem você quiser. Acho isso importante.

RBP: Mesmo de fora da Sociedade?

DS: Não, infelizmente isso não é possível, porque a Sociedade Canadense exige que seja membro da IPA.

RBP: E quanto a ser analista didata?

DS: No grupo francês, não é necessário ser analista didata; nos grupos ingleses, sim. Essa é uma diferença importante. Nós achamos que análise é algo pessoal, e a instituição não deve interferir de modo algum. Por isso, damos liberdade de escolha aos candidatos.

RBP: E quanto à frequência?

DS: A frequência é no mínimo três vezes por semana. Pode ser cinco, quatro, mas deixamos essa resolução para o analista e o analisando. Assim, essa é outra liberdade que obtivemos em um momento especial, quando a IPA tratava com os franceses, que têm um modelo de três sessões semanais. Meus predecessores (eu não estava lá na ocasião) conseguiram obter o mesmo direito, pois estavam na tradição francesa. Portanto, não éramos exceção até recentemente. Penso que o William Alanson White em Nova Iorque também segue essa linha.

RBP: O que você acha desta época pós-escolas que vivemos? Você concorda com essa ideia? Sente isso?

DS: Concordo com isso como projeto, como esperança, como desejo.

RBP: Nesse sentido, acho muito interessante você retornar tantas vezes a alguns conceitos, em termos de proximidade da metapsicologia - a revisão que você propõe de conceitos como fantasia, repetição e recordar. Por que você considera isso tão importante?

DS: Porque, mais uma vez, penso que, entre os conceitos que Freud nos legou, há alguns realmente essenciais. Portanto, ler Freud minuciosamente é muito rico. Se tivermos um conjunto limitado de conceitos, como os mencionados por você, podemos ir bem longe. Tenho paixão pelo princípio conceitual da parcimônia. As entidades não devem multiplicar-se inutilmente, apenas o necessário. Meu lema é ir o mais longe possível usando somente Freud; quando Freud não puder ajudar, procuro o que outros têm a dizer. Muitas vezes, descobre-se que várias coisas que os sucessores disseram na verdade são uma versão de Freud, possível de encontrar quando se volta a ele. Não quero dizer com isso que Freud disse tudo - se esse fosse o caso, eu não seguiria Laplanche -, mas que ainda não encerramos o retorno a Freud.

RBP: Acho que é um bom momento para passarmos para suas ideias sobre o unpast, o não passado. Conte-nos um pouco sua noção de passado, como essas ideias apareceram pela primeira vez em sua mente e como isso se tornou foco do Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa de 2014.

DS: Gostaria de poder me lembrar como foi. [Risos.] O que posso dizer é que uma das primeiras vezes que escrevi a respeito foi no Encontro de Laplanche, na Itália, em Sorrento, um lindo lugar. Havia essa questão que eu tinha, que perguntei a Laplanche. Escrevi um pequeno artigo que foi publicado apenas em italiano. Bem, há a sedução generalizada, a situação antropológica fundamental. Portanto, há o inconsciente adulto, a sexualidade reprimida que produz a implantação do sexual na criança, mas isso não criaria uma regressão ao infinito? Como aconteceu o primeiro inconsciente? Se olhamos desse modo, há um problema, porque seria: "O que vem antes, o ovo ou a galinha?". Laplanche disse: "Não é preciso abordar esse problema, porque empiricamente sabemos que o adulto tem inconsciente e a criança não". Esse é um modo de responder, mas penso que seria mais elegante se não fôssemos suspeitos de postular um inconsciente, que então é transmitido, sem nos perguntarmos como foi transmitido. Mas, se começarmos dizendo como isso foi transmitido ao outro, estaremos retrocedendo até Adão e Eva, até Deus, e isso não é suficientemente científico.

Há outra abordagem, que não é preciso examinar no sentido cronológico - não seria preciso. Laplanche diz algo nessa direção, mas ele não fala de tempo. Ele diz: "Não necessito do inconsciente reprimido no adulto; preciso apenas de uma inconsciência geral, trivial". A mãe não percebe que está excitando seu bebê, por exemplo, e penso que talvez pudéssemos ir um pouco adiante. Então, retrocedo a Freud, ao artigo sobre o inconsciente, em que Freud diz que o inconsciente é atemporal. Também não fico à vontade com isso. Nada humano pode ser atemporal, penso. Na realidade, os físicos não concordam se o tempo existe ou não, se é apenas resultado de cálculos ou algo que existe em si. Não tenho competência nessa área. No entanto, não consigo imaginar algo humano que não tenha a ver com tempo. Mas o que aconteceria se, em vez de dizermos que é atemporal, olhássemos para uma forma específica de tempo? Nesse caso, filósofos como Lyotard me ajudam muito. Também Walter Benjamin, ao falar do momento atual, e penso: "É disso que se trata". Temos um tempo, mas não é cronológico. Há a noção de Kairós versus Chronos, em grego, mas de modo mais assertivo podemos falar de um tempo atual. Em francês funciona melhor, porque em francês a palavra actuel significa "o que é agora".

RBP: Eu estava pensando no gerúndio em português.

DS: Lindo, gerúndio. Em italiano temos o gerundio; em francês, o gérondif, que não é mais usado, mas é algo captado indiretamente também pelo fraseado. Por exemplo, Winnicott: na verdade, ele não diz play, mas playing, que é o gerúndio. Não é o participio, é o gerúndio. Essas são coisas que continuam acontecendo, mas com a especificação de que estão acontecendo todo o tempo e não passam; quando olhamos para elas, é sempre agora. Certa vez, Pontalis escreveu um livro chamado Um tempo que não passa, em que usou a palavra atual - na verdade, trouxe a palavra atual, porque ela está em Freud, quando ele diz que em toda psiconeurose há um núcleo de neurose atual. É possível encontrar o mesmo padrão em todo lugar, na teoria do sonho, na teoria da repressão, na teoria da transferência... O que está em jogo novamente é a teoria da tradução: o atual é o que não pode ser traduzido, não pertence ao tempo cronológico, não evolui, enquanto a parte traduzida necessariamente evolui a cada nova tradução. Desse modo, há o psíquico traduzido e o atual não traduzido. Então, tudo se encaixa.

RBP: Como foi ter esse artigo exposto no Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, que é um modelo interessante de congresso?

DS: Acho que essa é uma das melhores coisas que o modo francês de trabalhar produziu. Nesses congressos, abordam-se apenas dois ou três artigos, que são discutidos da uma hora de quinta-feira até o meio-dia de domingo. Muitos grupos de todo o mundo se reúnem em torno desses dois artigos por um ano inteiro, vão ao congresso e escrevem comentários ou artigos inspirados por eles. Penso que essa foi a melhor coisa que poderia acontecer comigo em termos de ousar expor meu pensamento e receber críticas de várias pessoas. Foi muito gratificante, e é algo que aconselho as pessoas a fazerem, em vez desses congressos em que todos falam por meia hora e você prossegue, faz outra coisa para realmente se concentrar em algo. Creio que é mais produtivo.

RBP: Separei algo para você - acho que você reconhecerá. Retirado da literatura, de Jorge Luis Borges. Vou ler um trecho: "Ele me disse: ... 'Eu sozinho tenho mais memórias do que provavelmente toda a humanidade desde que o mundo é mundo'. E também: 'Meus sonhos são como as horas de vigília de vocês'. ... Sem qualquer esforço, ele aprendeu inglês, francês, português e latim. Suspeito, entretanto, que ele não foi muito capaz de pensar. Pensar é esquecer, diferenciar, generalizar, fazer abstrações".

DS: "Funes, o memorioso". [Dá uma gargalhada.]

RBP: Sigo: "No mundo abarrotado de Funes, não havia nada além de detalhes, quase imediatos". Então, esse é Funes, o memorioso, e aqui a questão é se esse é um bom exemplo que você possa usar para nos explicar o actuel.

DS: Sim, um excelente exemplo.

RBP: A questão com Funes é que, depois de um acidente, ele ficou paralisado e adquiriu esse potencial. Portanto, o que é o tempo atual em termos do traumático e do simbólico?

DS: Sim, deixe-me citar de memória, de "Funes, o memorioso": o cachorro visto às onze horas não é o mesmo visto às onze e quinze, e cada tempo, cada nova percepção nunca está ligada a qualquer outra coisa, é sempre agora; ele não constrói uma história inteira porque não consegue esquecer e generalizar. É outra abordagem, com certeza. Já li quase tudo de Borges. Essa é outra coisa acerca de línguas. Descobri, para meu grande prazer e surpresa, que o espanhol de Borges era bastante claro. Enquanto o Quixote para mim é muito mais difícil de ler em espanhol, de Borges eu li quase tudo em espanhol, e me lembro especialmente que "Funes, o memorioso" foi muito excitante para mim, porque havia essa ideia que é um paradoxo. Funes se lembra tanto que é inútil. Cada memória é inscrita, mas não pode ser conectada a outra, porque não há apagamento que permita forjar uma estrutura coerente, porque ele está sempre exposto a novas percepções e se lembra delas todo o tempo. Vejam, por 15 ou 16 anos, tratei um paciente esquizofrênico. Ele limpava o chão em instituições e costumava me contar a tortura que isso era para ele, porque, quando chegava em casa à noite, ele conseguia lembrar a localização de cada mancha escura de onde havia chiclete no chão. Ele tinha de pensar nelas e se lembrava de cada local exato, e isso era uma tortura para ele. Assim, pensei em Funes, o memorioso.

RBP: Você pensa nisso como o traumático?

DS: Sim, o trauma que inscreve algo que não pode ser processado, que não deteriora a memória, não evolui, se repete, agora, agora, agora. É o motivo da capa do meu livro: há a representação de um relógio cujos ponteiros apontam para "agora, agora, agora". O que é verdade. Se você me perguntar que horas são, é "agora". Quando dizemos "É uma hora", bem, estamos apenas nos referindo à passagem do tempo, mas no momento presente é agora, e esse aspecto do tempo não é útil conscientemente, porque não é uma perspectiva, não evolui.

RBP: O que você pensa a respeito do que temos de digerir das questões traumáticas dos nossos pais? Quero dizer, há uma tradução possível?

DS: A transmissão? Você quer dizer a transmissão do trauma?

RBP: A transmissão transgeracional.

DS: Penso que é uma questão, ao mesmo tempo, extremamente interessante e muito intrigante. Creio que isso existe, não no sentido de transmissão, de um pacote total, bem embrulhado - "Tome isso meu filho", e você leva isso com você -, mas no de configuração de trocas, especialmente do lado da tradução. Acredito, como Laplanche, em implantação do sexual, mas há outra versão do sexual, em que essa implantação é violenta. Nesse caso, mais ferencziano, é impossível fazer a própria tradução, e você precisa tomar a coisa como ela é, de forma absoluta.

Meu paciente esquizofrênico tinha exatamente esse problema. O pai dele provavelmente era paranoico, tinha ideias, e disse aos filhos: "Vocês não precisam ir para a universidade. Posso ensinar tudo a vocês. Por exemplo, eu sei qual é o elemento final da matéria: é o ultimato". Apenas inventar a palavra era suficiente para ele acreditar. Quando os filhos quiseram ir para a escola e aprender algo mais, ele ficou louco, violento, pois se sentiu traído por eles. Esse é o aspecto que Ferenczi explicou. O que é o trauma? Não é só o abuso sexual; é a negação. Nada aconteceu aqui. Se você pensa que aconteceu algo, você é louco, eu o matarei ou qualquer outra coisa. Portanto, creio que a transmissão tenha algo a ver com esse tipo de mecanismo. Acredito que haja algo desse tipo, mas provavelmente de modo muito mais complexo, às vezes apresentado como o filho que tem os sonhos do pai - sou muito cético a esse respeito.

RBP: Tanto ainda a trabalhar. No próximo congresso da IPA, você será um dos oradores principais. O tema do congresso é O feminino. Podemos ter uma espécie de prévia?

DS: Não acho que posso lhes dar spoilers, mas sem surpresa voltarei a examinar Freud, criticá-lo com muita veemência, principalmente em seu artigo sobre a feminilidade. Uma coisa que digo em meu artigo para o congresso, que tive de enviar com muita antecedência, um ano atrás, é que quando eu li "A feminilidade" (há muito tempo), li Freud escrevendo sobre o momento em que a menina descobre que é castrada. Eu traduzo descobre com "quando a menina tem a impressão de que é castrada." Assim, corrigi em minha mente e dei o crédito a Freud de que ele realmente não acreditava que ela é castrada. Mas, quando reli, sinto muito, li diferente - vi que Freud realmente considerava que a mulher é castrada. Então pensei: "Uau! Como esse homem, que introduziu tantas ideias revolucionárias sobre bissexualidade, sexualidade infantil, contra a opinião vigente da sua época, quando se trata da mulher, estava tão perfeitamente alinhado com todo o preconceito a respeito das mulheres, sobre inferioridade?!". No mesmo artigo, ele diz que, quando a mulher vai para a análise, provavelmente é para conseguir o falo. Ele descreve isso todo o tempo. Assim, eu me pergunto: haverá um modo de retraçar os motivos intrateóricos de por que Freud foi tão contraditório consigo próprio? Por que ele caiu nesse tipo de pensamento? Vocês não ficarão surpresos: isso me trouxe de volta à teoria das fantasias.

RBP: Da metapsicologia? Ele tentou se afastar disso.

DS: Exatamente. Mostrei como a crença dele nas fantasias inatas se ajusta muito bem a essa ideia. Freud acreditava que temos fantasias inatas, não transmissíveis, sobre a castração. Assim, cheguei também, por motivos epistemológicos, à ideia de que não é função do psicanalista dizer o que a mulher deveria ser, nem o que o homem deveria ser. Nossa tarefa é ajudar o paciente a descobrir e a formular seu próprio desejo e configuração. Afinal, é uma questão ética. Quando tentamos ser científicos em termos de feminilidade, masculinidade ou seja lá o que for, não estamos sendo verdadeiramente consistentes com o princípio psicanalítico de liberar o paciente de preconcepções e, nesse caso, estamos em nossas preconcepções.

RBP: É por isso que é tão importante ser livre como analista, não? Há algo de que não falamos que você gostaria de mencionar?

DS: Haveria tanta coisa. Não sei. Gostaria de reagir ao que você acabou de dizer. Por que qualquer analista não seria livre? O que é ser livre? Eu sei, existem as instituições e as escolas de pensamento, que nos trazem de volta a era das escolas. Espero que não seja isso. Não creio que estejamos lá.

RBP: É um gerúndio.

DS: Sim.

RBP: É uma boa questão. Podemos colocar a culpa nas instituições, mas também podemos ver que temos muita fé na análise, o que nem sempre funciona, embora seja algo que idealizamos.

DS: Sim. Certa vez, na Nouvelle Revue de Psychanalyse, Pontalis escreveu sobre crença. Ali, ele disse: "Psicanalistas não acreditam em psicanálise; eles confiam". O que ele quis dizer: "Confiem no método, mas não acreditem em qualquer formulação que tenda a estar congelada na versão final de qualquer coisa". Acho que vocês têm razão. Talvez tenhamos excessiva fé. Tendemos a transformar conhecimentos, conceitos e princípios em crença bem organizada, enquanto nossa tarefa como analistas sempre é rasgar as crenças, analisar e permitir novas formulações, e saber que é um gerúndio. Temos de pensar em termos de processo, não em algo que terminará sendo a palavra final a respeito de qualquer coisa.

RBP: Você falou antes de heurística. Acho que essa é a verdadeira questão.

DS: O universo é movimento, é processo. Isso não deveria servir como uma espécie de pretexto para recusar qualquer formulação de teoria, mas precisamos saber, como em ciência, que toda teoria é sempre provisória. O resultado mais importante de uma análise é ajudar o paciente a pensar por si. Isso se aplica a analistas também. Se não pudermos pensar por nós mesmos, estaremos traindo nosso próprio propósito.

RBP: Bem, esse um ótimo jeito de encerrar. Muito obrigado.

DS: Obrigado a vocês.

 

 

1 Refere-se ao livro Vocabulário da psicanálise, escrito por Laplanche e Pontalis, um volume de referência para todos os interessados em psicanálise.
2 Refere-se ao Quatrième Groupe, terceira dissidência com Lacan e que formou uma nova Sociedade em Paris, em 1967. Os fundadores foram Piera Aulagnier, François Perrier e Jean-Paul Valabrega.

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