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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

DIÁLOGO

 

O chamado do inconsciente: trans, assédio sexual: voltando à questão

 

The call of the unconscious: Trans, sexual harassment - returning to the question

 

El llamado del inconsciente: trans, acoso sexual - volviendo al tema

 

L'appel de l'inconscient: Trans, harcélement sexuel - revenant sur la question

 

 

Jacqueline RoseI; Tradução Imyra Bardelotti

IInstituto Birkbeck para as Humanidades - Birkbeck, Universidade de Londres

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de sua experiência anterior com os temas trans e assédio sexual, a autora argumenta que o diálogo com a psicanálise sobre essas questões controversas e complexas de nosso tempo é tão desafiador quanto urgente. O que acontece quando tentamos introduzir o conceito de inconsciente na realidade de nossa vida política? Ou então quando reconhecemos o lugar do inconsciente nas identidades públicas que encorajamos, habitamos e defendemos? Ambas as questões, trans e assédio, nos confrontam com a questão da justiça social. O papel da psicanálise é sempre o de alertar sobre nossos sonhos de um mundo melhor ou talvez ela esteja bem no centro de nossa luta para alcançá-los?

Palavras-chave: assédio sexual, abuso, trans, diferença sexual, histeria


ABSTRACT

Drawing on her previous engagement with the topics of trans and sexual harassment, Jacqueline Rose will argue in this lecture that the dialogue with psychoanalysis on both of these vexed, complex issues of our time, is as challenging as it continues to be urgent. What happens when we try to insert the concept of the unconscious into the reality of our political lives? Or rather, when we recognise the place of the unconscious in the public identities we foster, inhabit, and fight. Both trans and harassment confront us with the question of social justice. Is it always the role of psychoanalysis to issue a caution in relation to our dreams of a better world, or might it belong right at the heart of our struggle to attain it?

Keywords: sexual harassment, abuse, trans, sexual difference, hysteria, Booker prize for fiction


RESUMEN

A partir de su anterior experiencia con los temas trans y acoso sexual, Jacqueline Rose argumentará en esta conferencia que el diálogo con el psicoanálisis sobre ambos asuntos controvertidos y complejos de nuestro tiempo, es tan desafiador como urgente. ¿Qué sucede cuando intentamos introducir el concepto de inconsciente en la realidad de nuestra vida política? O, cuando reconocemos el lugar del inconsciente en las identidades públicas nosotros alentamos, habitamos y luchamos. Ambos temas, trans y acoso, nos enfrentan a la cuestión de la justicia social. ¿El papel del psicoanálisis es siempre alertar sobre nuestros sueños de un mundo mejor o, tal vez, esté en el centro de nuestra lucha por alcanzarlos?

Palabras clave: acoso sexual, abuso, trans, diferencia sexual, histeria, premio Booker de ficción


RÉSUMÉ

À partir de son expérience préalable avec les thèmes trans et d'harcelement sexuel, Jacquelinhe Rose argumentera, dans cette conférence, que le dialogue avec la psychanalyse, concernant ces deux questions controverses et complèxes de notre temps, c'est autant un défi d'importance qu'il est encore urgente. Ce que se passe-t-il lorsque nous essayons d'introduire le concepte de l'inconscient dans la réalité de notre vie politique? Ou encore, lorsque nous reconnaissons la place de l'inconscient dans les idéntités publiques nous encourageons, nous habitons et nous battons. Les deux questions, trans et harcelèment, nous confrontent avec la question de la justice social. Le rôle de la psychanalyse est toujours celui d'avertir à propos de nos rêves d'un monde meilleur ou, peut-être, elle se situe au bon milieu de notre lutte pour les atteindre.

Mots-clés: harcèlement sexuel, abus, trans, différence sexuelle, histerie, prix Booker de fiction


 

 

De certa forma, estas duas crises, quebras ou exacerbações no novo milênio - trans, assédio sexual - levam-nos de volta para onde tudo começou. Nós, aqui, significa qualquer pessoa que atualmente tenha embarcado na jornada da psicanálise. Pense na jovem Katharina, com quem Freud se encontra no alto das montanhas Hohe Tauern, uma das mais altas cordilheiras dos Alpes Orientais. Obviamente, por conta do vestido que ela usa, não se trata de uma empregada, apesar de ter servido o jantar a Freud na pousada onde ele está hospedado. O mais provável, supõe ele, é que seja filha da proprietária. Ainda assim, ela é a única das cinco mulheres em Estudos sobre a histeria a quem ele não se refere com um pronome de tratamento - Fraulein, Frau ou miss -, chamando-a simplesmente de Katharina (apesar de Freud mencionar duas vezes em seu relato ter se dirigido a ela como Fraulein). Aos poucos, mas com precisão, ele desvenda uma história de abuso sexual cometido pelo pai da moça - correção feita por Freud na última nota de rodapé, na qual substitui tio, a quem ele se referira anteriormente: "A menina ficou doente por conta das investidas sexuais do próprio pai" (Freud,1893-1895/1955, p. 134). (O alemão den sexuellen Versuchungen, que significa "tentações", traduzido um tanto diretamente por James Strachey como sexual attempts [investidas sexuais], sugere sedução, o que não deixa de ser abuso.) Trata-se do caso mais curto e mais simples do livro todo, talvez de toda a obra do autor. No mínimo, parece justo deduzir que, como o próprio Freud observa, ele só conseguiu escutar Katharina porque, em termos geográficos e de classe, ele estava afastado de tudo. Um analista contemporâneo sugeriu que Freud cometeu um erro fatal ao descer daquela montanha, tanto literal quanto metaforicamente, pois lá seus pensamentos, o encontro entre "médico" e "paciente", eram muito espontâneos, fluidos e transparentes.

No entanto, a maioria dos analistas tende a concordar que é somente quando Freud se retira desse momento - da violação narrada - para entrar no domínio mais complexo da fantasia inconsciente que a psicanálise, propriamente dita, tem início. Ademais, sem ter, de maneira alguma, a intenção de plagiar Jeffrey Masson, pode-se dizer que o conto da violência traumática e sua lembrança acompanham como sombra o restante da escrita de Freud e, ainda, ampliam sua abrangência. Encontram-se no cerne de sua última grande obra, Moisés e o monoteísmo (1939/1964a), enquanto trauma fundador de um povo - o seu próprio -, que reprimiu a memória da violência geradora daquilo que os constituiu como povo. Estão no cerne da segunda tópica, na qual o conceito de pulsão de morte irrompe das entranhas traumáticas da Primeira Guerra Mundial. Além disso, sugiro, não estão menos presentes no relato feito mais tarde por Freud sobre a sexualidade feminina, que assinala o desastroso caminho para a normalidade da menininha selvagem e ativa, para quem todas as opções do mundo estavam original e maravilhosamente abertas. Ela deve reprimir sua natureza a serviço da espécie, caminho descrito por Freud (1931/1961c) como dano ou catástrofe. (A palavra alemã Umsturz tem a conotação militar de um Putsch, ou golpe de Estado, de que as pulsões ativas são "vítimas", geschádigt.) Como digo para meus alunos, a psicanálise nunca afirma "Não é verdade que você foi abusada" ou "Não importa que você tenha sido ou não abusada". Em vez disso, afirma que os males da condição humana são genéricos: "Mesmo que você não tenha sido abusada, isso ainda assim importa".

"A exigência ... de que haja um tipo único de vida sexual para todos", Freud escreve em O mal-estar na civilização, é "fonte de grave injustiça [Ungerechtigkeit]" (1930/1961a, p. 104). No caso das mulheres, Freud chega perto de dizer que a normalidade em si é uma ferida da qual nenhuma menina vai se recuperar completamente. A novidade de que ela é uma menina chegará não como uma revelação biológica vinda de dentro de seu próprio corpo, como os tradicionalistas insistem em dizer em oposição a Freud, mas como uma forma de perplexidade psíquica, que acontece quando o mundo exterior impõe a demanda de que ela esmague sua sexualidade para moldá-la. Trata-se de um tipo de invasão. Em seu estudo de 1930 sobre o masoquismo na vida mental da mulher, considerado pelas críticas feministas uma de suas obras mais ofensivas, Helene Deutsch faz a importante observação de que é por meio do masoquismo - fantasias de castração ou estupro pelas mãos do pai - que a mulher ingressa em seu papel sexual. (Em outro trabalho, de 1925, ela fala sobre o trauma primário do início da vida sexual da menininha.) A meu ver, Deutsch não está autorizando a misoginia, mas fazendo uma sugestão ainda mais surpreendente: que a violência contra a mulher é psiquicamente inscrita no cerne de sua jornada rumo a seu "destino". Quase um século depois, como um indício, Raphael, o paciente trans de Melanie Suchet, explicará que somente se estiver escrito menino em seu corpo ele será capaz de evitar esse universo interno ameaçador e se permitir ser penetrado sem terror. "Ser vulnerável estando na posição de uma menina", comenta Suchet, "é perigoso demais" (2011, p. 177).

Lembremo-nos também da paciente histérica a quem Freud faz uma rápida alusão em um trabalho posterior, "As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade" (1908/1959). Ela apertava o vestido contra o corpo com uma das mãos (enquanto mulher), enquanto tentava rasgá-lo com a outra (enquanto homem), o que ele interpreta como um cenário de estupro. Extirpando suas bases chauvinistas - algo que eu sempre recomendo quando possível em relação a Freud -, o conceito de castração é, certamente, mais bem interpretado como indicador da bruta realidade da diferença sexual, incisão produzida em ambos, menino e menina, para que sejam levados à força a seu lugar sexual estipulado, o que pode ser chamado de a selvageria da diferença sexual no dito mundo civilizado.

Então, a psicanálise tem início com o abuso da filha da proprietária, cometido pelo pai, uma coerção que se estende ao cerne da norma - o que está sendo pedido das mulheres quando se pede que sejam mulheres - e de lá se estende para todas as nações. Uma das convocações mais difíceis e persistentes que o trauma apresenta, enquanto amplia seu alcance, é a de que meninas têm de ser meninas. Para mim, até o momento, umas das proposições mais radicais da psicanálise é a de que nenhuma menina ou mulher jamais simplesmente é. Podemos especular que a violência sexual tem como um de seus objetivos marcar o corpo da mulher, para destruir qualquer ambiguidade que haja sobre essa questão. (O estupro corretivo de lésbicas denunciado na África do Sul pós-Apartheid seria apenas uma expressão do que está sempre em jogo em algum lugar.) Não é preciso dizer que, se a violência sexual tem como intenção lembrar a menina ou mulher do que ela é, também significa conferir aos agentes que a praticam, majoritariamente do sexo masculino, uma autoridade igualmente fraudulenta sobre a masculinidade, não menos insegura e sem convicção de si própria. Abuso, podemos dizer, é performati-vidade masculina em seu modo perverso: "Eu sou um homem" é uma forma de policiamento. "Dor", escreve a filósofa feminista Sara Ahmed, "envolve a violação ou transgressão da fronteira entre dentro e fora, e é justamente por meio dessa transgressão que eu sinto a fronteira" (2014, p. 35). Em 2016, Ahmed pediu demissão da Universidade de Goldsmith, em Londres, por não conseguir lidar adequadamente com a questão do assédio sexual. O abuso, em meu entendimento do que ela diz, estabelece sua lei fraudulenta violando a fronteira e impondo-se ao outro em um único ato.

Portanto, por trás da questão do assédio sexual está, quase oculta, a difícil questão da diferença sexual. São irmãs de sangue, pode-se dizer. E a questão da diferença sexual, que Freud reconhece como interminável em seu último trabalho, nos leva à voz das pessoas trans. "Todo mundo", escreve a autora trans Kate Bornstein, "tem de se esforçar para ser homem ou mulher", mas "as pessoas trans têm provavelmente mais consciência de fazer esse trabalho" (2016, p. 108). Apesar da recente atenção dada à experiência trans e da verdadeira mudança ocorrida em termos de consciência da população, tal ideia permanece um anátema para muitos (o que não é nenhuma surpresa para a psicanálise, a qual bem sabe que uma mudança no nível da vida consciente nunca é suficiente), ou até mesmo uma abominação, uma "impossível quebra na normalidade da vida, como um assassinato súbito e brutal", palavras utilizadas por Esi Edugyan em Washington Black (2018, p. 367) - um dos romances selecionados ao Man Booker Prize de 2018 - para descrever dois botos unidos no útero, fetos compartilhando um único corpo, milagre e monstruosidade ao mesmo tempo. De fato, para tal modo de pensar, a própria ideia de trabalho em relação não somente à identidade trans, mas também à identidade não trans - Bornstein (2016) inclui - seria tanto repugnante quanto sem sentido. "Se você quer um país com 63 gêneros, vote em [Hillary] Clinton" foi o conteúdo de um tweet postado na noite das eleições nos Estados Unidos, em 2016. "Se você quer um país onde homem é homem e mulher é mulher, vote em Trump".

A isso, podemos acrescentar: "Se você quer um assediador na Casa Branca, vote em Trump". Foi exatamente isso o que aconteceu e, no fim das contas, não apenas na Casa Branca, mas também na Suprema Corte, ambos com muita arrogância e sem qualquer desculpa. Sei que não sou a única pessoa a entender o depoimento de Brett Kavanaugh1 como uma das mais descaradas e desesperadas demonstrações de afirmação da masculinidade de que se tem registro, sem qualquer tipo de consciência, pelo menos não na época, de que exatamente essa mesma versão de masculinidade o incriminou e o torna inadequado para o cargo.2 A fala de Trump de que agora todos poderiam entender por que ele havia nomeado Kavanaugh continha uma ironia da qual ele próprio, obviamente, não tinha consciência também. Em 2016, no auge da campanha eleitoral, Rudy Giuliani concordou na CNN que os comentários feitos por Trump sobre "pegar pela xoxota" remetem a um retrato de agressão sexual que foi "realmente ofensivo no sentido humanitário mais básico" (apesar de não ter deixado de intervir a favor de Kavanaugh). Foi dito que Trump reagiu a tal "traição": "Rudy, você é um bebê! Eles tiraram sua fralda bem ali. Quando você será um homem?!" - citação do livro de Bob Woodward cujo título é Fear [Medo] (2018, p. 37).

É claro, as feministas vêm chamando a atenção para essa versão fraudulenta e perigosa de masculinidade desde sempre. Certa noite, enquanto eu escrevia este artigo no formato de palestra no outono de 2018, cheguei à minha casa e me deparei com um e-mail enviado por uma pessoa desconhecida da Pensilvânia. Ela me lembrou e me agradeceu, fazendo referência ao drama que se desenrolava, pelas seguintes palavras que eu escrevera sobre Virginia Woolf há décadas: "O que interessava a Woolf era o patriarcado não enquanto autoridade sem limites, mas enquanto forma de violência - a autoridade assustada por estar perdendo seu domínio" (Rose, 1997). Como Hannah Arendt (1969) destacou, é o poder ilegítimo e/ou em declínio que recorre à violência mais rapidamente. "O ego do paciente narcisista", escreve o analista Benjamin Margolis num artigo sobre perguntas dirigidas ao objeto [object-orientation], "é instável, em linhas gerais, incerto de suas funções e inseguro em relação ao mundo exterior" (1983, p. 35). O texto é de 1983, mas poderia muito bem estar descrevendo a masculinidade para lá de grosseira de Donald Trump. Seria possível dizer que tanto a experiência trans quanto o abuso estão ligados à injustiça da diferença sexual, contra a qual a primeira reage com um grito por liberdade, enquanto a segunda com completo horror.

Do abuso ao mito da masculinidade e da feminilidade em um estado puro e inalterado - a psicanálise, sugiro, foi a primeira a fazer a conexão, a qual percorre a obra de Freud do começo ao fim. A psicanálise é, portanto, para onde temos de ir se queremos entender a tensa e potencialmente geradora via de mão dupla entre o assédio sexual e a experiência trans. Minha premissa é de que eles são dois lados da mesma moeda, ou até, no domínio do inconsciente, uma mesma e única coisa, psicanaliticamente falando. Ou ainda, em outras palavras, para uma cultura não muito simpática à psicanálise - e alguns diriam que está piorando, em um mundo cada vez mais mercantilizado -, o abuso e a experiência trans, visto que chamam mais nossa atenção juntos, constituem a volta dos reprimidos psicanaliticamente. A partir das vozes e das histórias com as quais mais aprendi, meu objetivo é abrir o diálogo e fazer esses temas conversar entre si.

Após essa introdução, voltemos a Katharina, cujo nome verdadeiro era Aurelia Ohm-Kronich. Na verdade, esse caso não é nada simples, e sua complexidade ainda repercute nos dias de hoje. Katharina sofria de ataques de asfixia, de tontura, além de ter a sensação de um peso esmagando seu peito. "Sempre penso que vou morrer." Ela tem alucinações de um rosto que, mais tarde se saberá, é o rosto do pai abusador - um rosto cujas aterrorizantes contorções não se devem apenas à luxúria, mas também à fúria:

Ele sempre me ameaçava dizendo que faria algo comigo; e, se ele me visse de longe, ficava me encarando com a mão erguida e o rosto retorcido de fúria. O rosto que sempre vejo agora é o dele quando estava enfurecido. (Freud,1893-1895/1955, p. 132)

Esse rosto condensa poder sexual e vingança. A asfixia vivenciada por Katharina é produto de ambos. Na verdade, a revelação do abuso surge tarde - ou um tanto tardiamente, pois toda a história aparece, de certa forma inacreditável, durante uma breve caminhada à tarde. E, quando surge, causa "perplexidade" em Freud. O que ele começa a buscar, e é a primeira coisa que obtém de Katharina - apesar de ele também admitir que se trata de pura suposição -, é uma lembrança mais recente, de quando ela flagrou o pai com sua prima, Franziska, e contou para a mãe, o que desencadeou o rompimento da família e a ira do pai. Freud acredita que tal lembrança posterior seja a fonte de todos os problemas de Katharina, pois é confrontada com toda a verdade do que ela própria vivenciara nas mãos do pai, mas que ela pouco entendera, naqueles muitos anos anteriores. "Eu havia constatado com bastante frequência", ele afirma, "que em meninas a angúsia [histérica] era consequência do horror de que as mentes virginais são tomadas ao se deparar pela primeira vez com o mundo da sexualidade" (1893-1895/1955, p. 127). Em 30 de maio de 1893, o ano de Estudos, Freud escreveu a Fliess: "Eu vejo uma possibilidade considerável de preencher outra lacuna na etiologia sexual das neuroses. Acho que entendo as neuroses de angústia de jovens que têm de ser consideradas virgens, sem nenhum histórico de abuso sexual" (1954, p. 73). A história de Katharina serve parcialmente, mas apenas parcialmente, de suporte. Ela está de fato aterrorizada, mal consegue respirar, mas não fica claro se isso é resultado do precoce abuso sofrido, do entendimento e percepção, mais completo, que teve mais tarde da sexualidade, ou da fúria brutal do pai - muito provavelmente dos três.

Para mim, esse caso contém todas as características do drama que vai surgir na forma de abuso nos dias de hoje, indicando que, de certo modo, pouca coisa mudou. Um pai abusa da própria filha, fazendo-a sentir que sua vida corre risco, tanto no ato em si - pense em Christine Blasey Ford - quanto nas repercussões quando ela ousa falar. "Vamos deixar isso guardado" é a resposta da mãe de Katharina às revelações de abuso feitas pela filha. "Se ele causar problemas no tribunal, usaremos isso também" (Freud,1893-1895/1955, p. 132). (Só nos resta esperar que elas tivessem direito a uma audiência melhor do que hoje.) Ao mesmo tempo, em suas tentativas um tanto desajeitadas de teorizar esse momento, Freud introduz conceitos - ação retardada ou a posteriori e cena primária - que aos poucos ocuparão o centro do palco da narrativa sobre a sexualidade, que ainda estava por vir: sexualidade enquanto algo ligado ao tempo do inconsciente, sexualidade enquanto algo registrado pela psique primeiro como drama encenado, antes de qualquer coisa. (Talvez possamos, então, ver o conceito de cena primária e a performatividade de Judith Butler, de alguma forma, também ligados.) A questão passa a ser: o que a descoberta da sexualidade humana, enquanto prazer e/ou perigo, faz com a mente do ser humano? Progressivamente, Freud vai minimizar o fato e a extensão do abuso, assim como abrir mão da ideia de inocência sexual das jovens meninas. Nesse caso mais antigo, porém, tenho a impressão de que outro insight está lutando para nascer: sexualidade é angústia. A princípio, irrompe em outro lugar - ein andere Schauplatz (termo usado por Freud para o inconsciente). Há algo na sexualidade que foge a nosso alcance mental. Reconhecer isso pode, no entanto, ser o primeiro passo para evitar suas piores consequências - uma identidade sexual que não suporta nenhum argumento e sujeita o outro a um poder implacável, seja na forma de pais que abusam das filhas, seja na forma de qualquer um que afirma, apesar de todos os indícios, que não há problema, que no tocante à sexualidade humana o mundo é justamente como deve ser (e sempre será), e acima de tudo que, no campo das questões sexuais, nós sabemos exatamente quem pensamos ser. É claro que a experiência trans conta outra história, e é por isso que não vejo como coincidência o fato de as duas realidades terem irrompido na consciência da população mais ou menos ao mesmo tempo.

É importante lembrar a perturbação que essas primeiras ideias provocaram. Freud jogou um balde de água fria em uma versão de sexualidade vista como algo dado e imposto por Deus e seus servos e que persiste, até hoje, com toda a sua coerção entorpecente. Ele acrescentou uma dimensão inominável. Indo mais adiante, descobrimos que a questão do assédio nos leva outra vez aos primeiros momentos da psicanálise. O Dr. T. D. Savill foi um médico e patologista que trabalhou em Londres bem no começo do século XX, quando as ideias de Freud começaram a circular. Também traduziu as Conferências das terças-feiras, de Charcot. Ele era um dos três membros do Comitê Médico criado em 1908 no Hospital West End para Doenças do Sistema Nervoso, Paralisia e Epilepsia, em Londres, a fim de julgar as acusações feitas contra Ernest Jones, em resposta a alegações de comportamento sexualmente inapropriado em relação a uma das jovens pacientes sob os cuidados do hospital. A garota apresentou uma queixa de que Jones levantou assuntos sexuais durante as conversas entre eles. Jones respondeu que havia sido encorajado a fazê-lo, mais ou menos para testar as hipóteses de Freud, por um dos médicos que trabalhava no caso. No ano seguinte, ele pediu demissão do hospital e deixou o Reino Unido rumo ao Canadá, ainda sob suspeita (Kuhn, 2015).

O interessante é que, naquele ponto de sua carreira, Jones era conhecido nos círculos psicanalíticos por sua mínima compreensão das ideias de Freud sobre o lugar da sexualidade na etiologia das neuroses (no melhor dos casos, parece que ele aludiu a tais ideias para se livrar das acusações). Savill, por outro lado, estava bem informado e as rejeitava inteiramente. Para ele, segundo o que publicou na revista científica The Lancet em 1909, a perturbação histérica era causada por alterações fisiológicas no cérebro, por mudança vasomotora ou vascular. Ele argumentou que a psicanálise, recusando-se a reconhecer tal realidade, era desnecessária e que destrutivamente chama "à atividade ... as memórias mortas de um passado sexual", revivendo "choques" emocionais relacionados "direta ou indiretamente a assuntos sexuais", assim colocando o paciente e o médico em risco: "há muito perigo", ele escreve, "tanto para o paciente quanto para o médico na realização de tais investigações e em tal linha de tratamento" (citado por Kuhn, 2015, p. 32).

O que está sendo dito não é exatamente que uma terapia que evoca traumas passados não é melhor, em alguns casos é pior, do que o trauma original ("perigosa", "prejudicial", "inteiramente injustificável")? "Choque" é eloquente. Trata-se de um conceito que foi primeiro emprestado por Freud de Charcot, que o utilizava para descrever os choques do sistema nervoso que ele entendia serem a causa da histeria. Walter Benjamin (1976) acrescenta ao conceito uma dimensão política ao tomá-lo de Freud para descrever a mente assombrada pela esmagadora modernidade das ruas da cidade: ambos, sexualidade e capitalismo desenfreado, deixam a mente sem defesas. O vocabulário de Savill revela: é o próprio establishment médico que se torna a "mente virginal" tomada de "horror" diante da sexualidade, como se a psicanálise fosse uma forma de violência, fazendo o que quer com a mente e o corpo que ela deve curar.

Como sabemos agora, o caso de Jones não é anormal nem exceção (sua própria história em relação a essas questões é mais complexa e perturbadora do que a apresentada aqui). O abuso vai acompanhar a profissão de uma maneira certamente não prevista por Freud. No entanto, para alguns, ele foi longe demais ao analisar a própria filha, Anna, o que deixou um legado de entendimentos equivocados pelo caminho. Em seu poderoso e mais recente livro Mortal gifts: death and fallibility in the psychoanalytic encounter [Presentes mortais: morte e falibilidade no encontro psicanalítico] (2017), a analista Ellen Pinsky afirma que o assédio sexual é mais ou menos endêmico à psicanálise. Em última instância, é algo presente de forma latente no "delírio olimpiano" [Olympian delusion] de domínio que a cena psicanalítica comporta. A tarefa do analista, ela sugere, é permitir que falibilidade e morte, incluindo sua própria mortalidade, adentrem o consultório enquanto único caminho de real apropriação dos próprios poderes. Nem recorrer ao altruísmo nem colocar os interesses do/a paciente em primeiro lugar podem evitar danos:

Quanto mais o/a terapeuta acredita em uma capacidade heroica de oferecer um serviço altruísta ao/à paciente, quanto mais concebe a si mesmo como estando acima de ser um indivíduo, maior o risco de apagamento da linha que mantém o paciente seguro. (Pinsky, 2017, p. 63)

Anular-se é, então, a outra face da tirania. Chega a ser até "uma visita como touro ou cisne ou águia" (p. 63). O uso de touro, cisne e águia me chamou a atenção, esses terríveis visitantes da terra, da água e do céu, cada um deles extraído das devastações de Zeus, também uma perfeita evocação do abuso. Talvez aqueles primeiros médicos tivessem certa razão. Convocar o choque da sexualidade humana nos põe a todos em perigo mortal. Além de todas as outras coisas que é capaz de fazer, a sexualidade ameaça. Contudo, é imperativo acrescentar que a maior ameaça de todas vem da crença de que a sexualidade lhe pertence, de que ostentar a sexualidade - "pegar pela xoxota", como alguns dizem - isenta o ser humano da possibilidade do próprio fracasso, em vez de exemplificá-la em sua pior face. Um abusador na Casa Branca é tão previsível quanto assustador, porque dá vida à fantasia da sexualidade enquanto poder sem limites. Fantasia é a chave.

Para Juliet Mitchell (2000), tais homens seriam postos na categoria homem histérico, outra figura dos primeiros anos da psicanálise que, ela argumenta de modo convincente, se perdeu, apesar de seu reconhecimento nunca ter sido tão necessário como nos dias de hoje. ("Talvez eu tenha me deixado levar demais pela emoção", disse Kavanaugh depois sobre o próprio depoimento, como se ele mesmo estivesse tentando impedir a difamação.) Tudo o que é criativo na psicanálise se opõe a tal fantasia de poder sem limites. Precisamos, portanto, manter em mente dois pensamentos, mesmo que diante das atuais denúncias de assédio eles pareçam, em certos momentos, opostos um ao outro. O primeiro, evidentemente, é que o abuso sexual é real, seja ele praticado por pais, terapeutas, acadêmicos, presidentes ou ministros da Suprema Corte. A pessoa que denuncia deve ser ouvida - o sinal de alerta do #MeToo. O fato de Trump ter publicamente ridicularizado o depoimento de Ford, a aprovação zombeteira de sua audiência no Mississippi - eles aparentemente entoavam "Prendam-na!" - e a posterior extinção da ação penal com base na afirmação de que se tratava de uma farsa nos dizem o quanto ainda temos de progredir no tocante a essa premissa básica. O segundo pensamento é que a sexualidade é aberrante; ela não é serva de nenhum homem.

De certa forma, o tweet postado na noite das eleições estava certo - a diferença sexual em sua versão autorizada e a experiência trans pertencem a mundos diferentes (um enrijecimento das artérias versus uma abertura dos poros). No entanto, é claro, não é verdade que a sexualidade está fora da alçada da lei para uma pessoa transexual. De fato, enquanto escrevo, essa questão se tornou central nos debates, muitas vezes virulentos, a respeito de questões transgênero no Reino Unido. Em janeiro de 2016, o relatório Transgender equality [Igualdade transgênero] da Câmara dos Comuns mostrou que o atestado médico exigido para o registro legal de um novo gênero patologizava a transexualidade e era "contrário à dignidade e à autonomia pessoal de transexuais" (Women and Equalities Committee, 2016, p. 3). Em resposta, uma consulta sobre reconhecimento de gênero no Reino Unido foi encomendada e publicada em julho de 2018. A nova lei proposta tornaria legal o reconhecimento de uma pessoa transgênero não atrelado à aprovação médica, mas a uma autodeclaração da pessoa interessada.

Essa ideia de autodeclaração parece-me evocar, ainda que não intencionalmente, a famosa fórmula de Jacques Lacan para a formação psicanalítica - "L'analyste ne s'autorise que de lui-même" -, que é quase intraduzível, mas que significa, grosso modo, "A autoridade do/a analista lhe é dada somente por ele/a próprio/a", ou "Apenas o/a analista autoriza a si mesmo/a como analista". Acerca da natureza desse experimento, que um dia foi progressista, mas que por fim fracassou, escrevi em outro lugar que foi feito em resposta a um treinamento psicanalítico engessado, que, pelo menos para a Associação Psicanalítica Internacional, permaneceu praticamente inalterado desde que as regras de Berlim foram estabelecidas por Max Eitingon em 1923.3 Em relação à questão transgénero, o que impressiona sobre a manobra legal proposta é que, assim como o experimento de Lacan, a lei está mais ou menos propondo se abster. Eu entendo que, a respeito dessa questão, o Reino Unido está a anos-luz dos EUA, onde a última proposta do governo Trump é tornar sujeitos transgénero inexistentes legalmente.

A mudança proposta na lei do Reino Unido não foi de maneira alguma recebida pela comunidade trans como um inequívoco sopro de liberdade. O atestado médico pode ser uma afronta à dignidade e à autonomia das pessoas trans, mas também pode ser a única forma de assegurar, nos EUA, por exemplo, cobertura do plano de saúde para o processo de transição. As divisões, porém, são muito mais profundas. Entre as muitas objeções à proposta legal do Reino Unido, uma específica, apresentada de dentro da comunidade trans, chamou minha atenção. Em uma carta ao jornal britânico The Guardian, em maio de 2018, um grupo de signatários trans afirmou que uma linha pode e deve ser estabelecida entre a pessoa trans que passou por cirurgia e a que não. Segundo o grupo, a proposta "torna confusa a distinção entre nós e pessoas transgénero que permanecem fisicamente intactas" (Harrison et al., 2018). Para as assinantes da carta, o risco é de que "pessoas de corpo masculino", inclusive com fetiches sexuais, usem a lei para pedir acesso a espaços reservados às mulheres. Elas claramente não consideram tais mulheres como mulheres "de verdade" - o que é revelado no uso da expressão "corpo masculino". No entanto, elas não reproduzem a pior versão desse argumento: a de que, ao invadir espaços femininos, transexuais femininos são a pior personificação do poder fálico. (O próprio grupo signatário não estaria imune a tal acusação.)

O medo delas não é sem fundamento. Em setembro de 2018, a presidiária trans Karen White, uma pedófila com histórico de lesão corporal grave e diversos estupros, violou outras detentas após ser transferida a New Hall, um presídio feminino em Wakefield, West Yorkshire, Reino Unido. (Ela foi condenada à prisão perpétua em outubro.) O Ministério da Justiça determinou que, de agora em diante, antes de qualquer transferéncia, o histórico seja levado em consideração (Grierson & Elgot, 2018; Topping, 2018). Contudo, temos de tomar cuidado com a atenção que casos desse tipo recebem. Exemplos como o de White, afirma Jenny-Anne Bishop, do grupo de direitos transgénero Transforum, são "incrivelmente raros" (Parveen, 2018). O mais comum é a violéncia ocorrer no sentido oposto. Sujeitos trans são regularmente objetos de violéncia sexual, fato pouco ou nunca mencionado por aqueles que se opõem ao Gender Recognition Act [Lei de Reconhecimento de Género]. Mulheres trans são rotineiramente visadas em presídios masculinos, pois são forçadas a usar banheiros masculinos. No entanto, o argumento de que mulheres trans em instalações femininas representam um perigo a outras mulheres está em vantagem e tem sido registrado com renovada maldade em leis por todos os EUA sob o governo de Trump, que desprezando - na verdade flertando com - esse tipo de perigo insiste que pessoas trans devem utilizar instalações correspondentes ao gênero com o qual nasceram.

O que atraiu minha atenção na expressão contida na carta enviada ao Guardian - de que a proposta "torna confusa a distinção entre nós e pessoas transgênero que permanecem fisicamente intactas" - foi o uso das palavras "fisicamente intactas", pois sugere que a transição genuína depende de estar sob a insígnia da mutilação ou dano corporal. Apenas um corpo que tem nele inscrita a marca da diferença sexual é verdadeiro. A identidade trans tem de existir a partir de uma ferida. A lei busca se abster do âmbito da vida sexual. A resposta a isso é instituir uma versão de diferença sexual fundada na dor. Tal lógica também aparece do outro lado, não menos eloquente, desse debate. Kate Bornstein (2012) é uma das ativistas trans com quem mais aprendi a respeito da ideia de uma vida trans, não enquanto uma passagem para o outro lado [crossover], mas como uma aparentemente infinita pletora de comportamentos e formas sexuais. Em vez de dar uma conclusão à sua jornada, realizar a cirurgia de mudança do sexo masculino para o feminino abre o caminho para uma infinidade sexual. Suas memórias começam com ela cortando um coração no peito, logo acima de onde está seu coração de fato. Ela mesma faz a ligação com a mesa de operação de sua cirurgia de mudança de sexo. Para Bornstein, a ferida não define nada em termos de diferença sexual. Ao contrário, - às vezes dolorosamente - aumenta as possibilidades sexuais em oferta. (Ela aconselha o leitor a pular, caso queira, as páginas de seu livro que contêm sadomasoquismo.) Bornstein também disse publicamente - o que enraiveceu outros membros da comunidade trans - que as pessoas devem ser livres para convidar quem elas bem entenderem para seus espaços privados, e que mulheres trans que se opõem devem "parar de se comportar como homens afirmando a masculinidade" (p. 203).

Eu sei que a ideia de uma ferida autoinfligida ou deliberadamente escolhida é uma das principais causas de repulsa em relação a pessoas trans no dito mundo hétero ou cis. ("Como é que eles podem?" é o bordão. "Como é que não podemos?" é a resposta.) Trata-se também de um desafio para a psicanálise. Para Melanie Suchet (2011) e Sandra Silverman (2015), no complexo, aberto e profundo trabalho de interpretação que realizam com pacientes trans, com o qual aprendi muito, a perspectiva de seus pacientes sobre a realização da transição cirúrgica completa representa um ponto de travessia, que as duas, enquanto analistas, sentem-se, pelo menos em um primeiro momento, incapazes de endossar totalmente. Mas, por mais preocupante que essa perspectiva pareça para muitos, é possível que esses atos apenas manifestem na consciência, ou encenem vividamente, uma violência latente em todos nós, conforme descrito por Helene Deutsch em relação à maneira como a sexualidade se organiza inconscientemente? "Considera-se que a palavra sexo", escreve André Green em seu ensaio sobre o gênero neutro, "vem de secare: cortar, separar". Uma vez unidos, os dois sexos tinham que ser divididos. "Onde há diferença", Green continua, "há um corte, uma cesura" (1973/2018, p. 254).

Lembre-se de que, há menos de um século, a ideia de que todos abrigávamos em nosso inconsciente os resíduos de uma bissexualidade perversa polimorfa era inassimilável para a maioria das pessoas (outro motivo pelo qual dificilmente o fato de Freud ter passado de abuso para fantasia inconsciente pode ser interpretado como se ele não quisesse se arriscar ou como se tentasse restabelecer sua credibilidade diante do establishment). É algo certamente fundamental para a psicanálise que seria melhor para nós se reconhecêssemos os componentes mais perturbadores da vida sexual como escondidos dentro de nós mesmos. Pondo a questão de maneira mais simples, acredito que a psicanálise apresenta a nós - e ao mundo - duas proposições incontestáveis: as coisas são mais difíceis do que queremos e somos muito mais esquisitos do que gostamos de pensar que somos. É claro que ambas abrem caminho entre as pretensões e perversidades de nosso atual mundo neoliberal, que finge que, se tentarmos e comprarmos bastante, a perfeição estará disponível a todos. Nas palavras do psicanalista francês Moustapha Safouan, em seu livro sobre a civilização pós-edipiana, "não há nada tão distante da sexualidade quanto o capital" (2018, p. 128).

Concedido, o corte não é um desejo compartilhado por muitos, a não ser talvez em alguns de nossos sonhos. Um dos muitos estudantes que Vanessa Gregoriadis entrevistou para seu livro sobre assédio sexual no campus explicou que ele veio a entender que as chamadas fantasias de estupro femininas não são reais porque "homens não querem que seu pênis seja cortado, mas sonham com isso mesmo assim" (2017, p. 56). (Um tanto inacreditável: entre os estudantes do sexo masculino que ela conheceu durante a pesquisa, ele era um dos que tinha mais empatia.) Lacan certa vez observou que, no caso das histéricas, a membrana entre ego e inconsciente é extremamente fina, permitindo-nos portanto vislumbrar o que normalmente permanece invisível. Então talvez, ao fazer saltar à vista o agon da diferença sexual, o mundo trans esteja dizendo uma verdade em benefício de todos. No mínimo, o discurso trans traz à consciência o dano e a injustiça existentes no cerne da norma, algo que a comunidade trans talvez vivencie mais intensamente do que a maioria. Nas palavras da brilhante escritora trans Susan Stryker:

Uma violência ligada ao gênero é a condição fundadora da subjetividade humana. Ter um sexo é a tatuagem tribal que torna cognoscível a personalidade de um indivíduo. Estive, por algum tempo, entre as duas violações, a marca do sexo e a não possibilidade de viver sua ausência. Eu poderia dizer qual foi pior? Ou poderia dizer apenas em qual delas senti que poderia melhor sobreviver? (1994, p. 250)

Sabemos que a existência trans é uma questão de vida ou morte: a taxa de assassinatos de pessoas transexuais é significativamente maior do que a da população não trans e está aumentando, assim como as taxas de suicídio e tentativas de suicídio. "No dia 6 de novembro, todo mundo tem que votar porque vidas dependem disso", afirmou o ativista lgbt Diego Sanchez da organização pflag National pouco antes das eleições de meio de mandato de 2018, em resposta à proposta de Trump de abolir a existência legal de pessoas transgênero - "porque dependem de fato" (Gambino & Durkin, 2018). Em seu ensaio publicado no primeiro volume de The transgender studies reader [O livro dos estudos transgênero], Dean Spade menciona a transexualidade masculino para feminino ao tratar da profissão terapêutica em uma época em que exames clínicos eram obrigatórios: "Que direito vocês têm de determinar se eu vivo ou morro?" (2006, p. 320). (O ensaio de Spade é intitulado "Mutilating gender" [Mutilando o sexo].) "Fomos criados", Audre Lorde escreve em seu artigo de 1981 "The uses of anger" [Os usos da raiva], "para enxergar qualquer diferença, além do sexo, como motivo de destruição" (p. 8). Parece que nós, no pior sentido, caminhamos muito desde então.

Localizados em polos opostos do espectro político, abuso e transgênero nos confrontam com as dimensões mais perturbadoras da sexualidade humana (alguns diriam que eles estão um tanto empatados), desde que reconheçamos, como Freud começou a fazer nos Alpes, que esses aspectos da sexualidade não são complementos da sexualidade humana, mas residem em sua essência. De maneiras totalmente diferentes, abuso e transgênero nos alertam de que nossos arranjos sexuais não são inocentes. Não acreditar nisso é, de fato, voltar à era pré-Freud. A sexualidade é marcada pela violência, o membro fantasma da normalidade da qual devemos tão alegre e ilusoriamente compartilhar.

Ao longo de sua vida, confrontado com as trevas que se abatiam sobre a Europa, Freud se tornou cada vez mais preocupado com essa questão, lutando com todos os seus esforços para elucidá-la. Na segunda tópica, ele tentará dividir a vida psíquica entre Eros e Tânatos, como se fossem opostos ou polos separados um do outro. Eros e Tânatos seguem de perto os binários da primeira tópica - realidade versus princípio do prazer, pulsões do ego versus pulsões objetais -, no entanto, como todos os grandes modelos binários, esse também vai falhar. "A satisfação [dos] impulsos destrutivos", Freud reconhece em sua famosa correspondência com Einstein sobre guerra, "é obviamente facilitada por suas ligações com outros de um modo erótico e idealista" (1933[1932]/1964b, p. 210). Longe de conter o que há de pior no coração humano, Eros pode alimentar sua crueldade. Freud percorreu um longo caminho desde seu ensaio de 1915 sobre guerra, no qual havia proposto mais confiantemente que os impulsos eróticos eram os mais adequados para manter distante a destrutividade do ego. Mas agora é 1932, e ele está tendo dificuldades para sustentar Eros enquanto força inequívoca para o bem em um mundo crescentemente perigoso. Hitler será eleito chanceler no ano seguinte.

Não quero traçar a linha de Trump a Hitler, como fez Michael Moore em Fahrenheit 11/9 (2018) - em dado momento do filme, a voz de Trump é sobreposta a uma filmagem de Hitler discursando em um comício nazista. Não creio que estejamos atualmente lidando com fascismo (ainda), apesar de o Brasil, a Hungria e a Turquia estarem se aproximando. Mas os dois líderes certamente têm em comum a capacidade de mobilizar e autorizar como prazer absoluto a bem guardada obscenidade do inconsciente. Pense no crescimento da base eleitoral republicana logo após o caso Kavanaugh. Somente sexo bruto conseguiu provocar agitação suficiente, enquanto redução de impostos e economia "próspera" até aquele momento só tinham visto indiferença. Simplificando, eu sugeriria que, se não reconhecermos Eros como o propulsor do perigo atual, seremos mais incapazes ainda de detê-lo. É claro, podemos ser impotentes de qualquer maneira.

Então, onde está a esperança? Em certos momentos, será certamente encontrada no consultório, onde as defesas mais rígidas, as paredes que obstruem uma vida vivida plena e dolorosamente, podem às vezes ser derrubadas, tanto no paciente quanto no analista. Mesmo no consultório, porém, os poderes da resistência ao mundo interno não conhecem limites (outra lamentável descoberta da obra de Freud). Ainda assim, durante muitos anos, como uma espécie de estratagema, eu pedi aos estudantes, às vezes avessos à psicanálise, que identificassem os lugares na cultura em geral em que uma mulher pudesse afirmar livremente que ela não é uma mulher, ou um homem que ele não é um homem, sem correr o risco de ser ridicularizada/o ou excluída/o. Um de meus momentos preferidos em toda a obra de Freud é uma nota de rodapé de 1915 no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: "Assim, do ponto de vista da psicanálise, o desejo sexual dos homens exclusivo por mulheres é também um problema que precisa de elucidação [ein der Aufklarung bedürftiges Problem] e não é evidente que seja um fato de natureza química" (1953, p. 146). "Um problema que precisa de elucidação" - imagine por um segundo ir ao médico e dizer que você tem um problema, que você só sente atração por pessoas do sexo oposto (pense um pouco, talvez não seja algo ruim).

A resposta à minha pergunta, sugeri, encontra-se primeiramente na psicanálise, e depois, mas não menos importante, na escrita literária, em que uma autora mulher é autorizada a entrar sem inibição alguma no corpo e na mente de seus personagens masculinos, e vice-versa. Assim como a fala do paciente em análise, a literatura é também mais bem interpretada com a atenção flutuante, o que Freud uma vez descreveu como o terceiro ouvido. Por isso, a parte final deste ensaio se debruçará sobre a ficção literária. Com minha convicção renovada após ler as 171 candidaturas ao Man Booker Prize de 2018, para mim a literatura permanece sendo o espaço em que, como parte da necessidade cada vez mais urgente de mudar o mundo, o impensável ainda poder ser escrito e ouvido - "coisas indizíveis não ditas", nas famosas palavras de Toni Morrison (1988). Lembre-se de que, logo no início, em A interpretação dos sonhos (1900/1953a), Freud insistiu que poetas e escritores, a quem ele frequentemente recorria, chegaram lá antes dele, que eram os únicos que de fato sabiam do que ele falava. De maneira similar, Lacan certa vez afirmou que apenas estudantes e entusiastas da literatura poderiam compreender o conceito de inconsciente, pois, diferentemente dos positivistas científicos e históricos, eles não ficavam aturdidos com a ideia de que uma palavra, um signo, um fragmento de sonho - em uma gama potencialmente infinita de significados - poderia, ao mesmo tempo, significar mais de uma coisa (como identidade sexual, pode-se dizer).

Dois livros dos que foram selecionados ao prêmio esfregam a questão trans e o abuso na cara do leitor, como verdades incontestáveis de nosso mundo. Cada um deles o faz de uma maneira que responde e, ao mesmo tempo, vai além do que tento explorar neste ensaio. Então, primeiramente, e se Édipo fosse trans? E se Tirésias adentrasse o corpo de Édipo, usurpasse sua pele? Essa é a aposta de Daisy Johnson em Everything under [Tudo o que está abaixo] (2018), romance que ela tentou escrever por três vezes, destruindo-o até chegar à versão final da história. Everything under se desenrola principalmente nas hidrovias da Inglaterra, em canais e barcas, uma vida que mergulha abaixo das superfícies sólidas do mundo. O romance descreve a angustiada busca de uma jovem, Gretel, pela mãe que, após viverem juntas nos rios durante seus 13 primeiros anos anos de vida, desapareceu. Isso se revela um padrão: a mãe já havia abandonado a primeira filha, também chamada Gretel. O narrador nos leva até a família adotiva da menina, que lhe deu o novo nome de Margot. A mãe da garota não é vista por eles desde que partiu, repentinamente e sem explicação, quando era adolescente. Aos poucos, descobrimos que a vizinha da família, uma mulher trans profeta, a única pessoa em quem Margot confiou como amiga, disse-lhe que partisse, depois de avisá-la sobre uma ameaçadora sina edipiana. Tentando esquivar-se de seu destino, Margot inicia um processo de transição e se torna Marcus, livrando-se da insígnia da identidade sexual que ela foi levada a temer (um ponto de virada adicional, mas igualmente fracassado, na tentativa de Édipo de escapar a seu destino).

Evidentemente, o que segue é previsível. No rio, ela (agora ele) é levada por um senhor, que ela desconhece, mas que é seu pai, o qual ainda vive o luto do desaparecimento de seu bebê e da mãe anos atrás, e a quem Marcus mata acidentalmente. Horrorizado com o que fez, ele desce o rio, onde encontra a segunda Gretel e a mãe, sem fazer ideia do parentesco entre eles. Ele e a mãe se tornam amantes. No fundo, a mãe sabe, uma vez que estava predestinada a descobrir, que ele é uma mulher, e também - talvez - que se trata de sua primeira filha, perdida há muito tempo. Como Marcus tem sido até aqui retratado como um adolescente, o romance levanta, no mínimo, a possibilidade de que a mãe, consciente ou inconscientemente, abusou sexualmente da própria filha (ideia que não ocorreu a nenhum de nós do júri do prêmio até o presidente apresentá-la, surpreendentemente, em nossa última reunião).

Acredite ou não, Everything under é uma leitura fácil, muitas vezes agradável, na qual cada passo desse enredo torturante, e tortuosamente complicado como as águas do cenário descrito, flui lindamente e sem esforço. Trata-se do Édipo recontado para nossos tempos. Ele traz a figura de Tirésias - homem-mulher, cego por contar a verdade sobre o prazer sexual das mulheres -, tirada das margens do conto clássico para o centro da história, em que as posições sexuais de homens e mulheres estão misturadas de maneira irreconhecível e irreparável. Ao fazer isso, segundo a leitura psicanalítica, o romance destrói de uma vez por todas qualquer normatividade a que esse conto mítico pretendesse, de alguma forma, apesar da catástrofe que ele infalivelmente confirma, como uma lição para todos nós. É uma espécie de estratagema imaginativo: e se Édipo fosse trans? O que isso faz com a história na qual nós, enquanto indivíduos ocidentais, temos sido convocados a nos reconhecer? "Todas as coisas com que lidamos na análise, seja na terapêutica, seja na chamada didática", escreve Safouan, "são dramas edipianos que fracassaram (2018, p. 40) ("des Œdipes échoués" [os Édipos fracassados] - o francês des Œdipes, que apresenta Édipo como substantivo plural, é impossível de traduzir em inglês). Independentemente de nossas afinidades e identidades sexuais, o romance sugere, não há lugar confortável para estar sexualmente no mundo moderno. Ele aposta na desolada, mas também mágica, sociedade de desajustados, seres periféricos cujas existências marginais são intensificadas, mas de modo algum reduzidas, no tema da experiência trans, continuamente presente em todo o livro (o romance apresenta uma história que adverte ser tanto social quanto sexual).

Everything under é angustiante. No final, Marcus se afoga e a mãe se enforca. Daisy Johnson, então, afasta a acusação comumente feita de que pessoas trans vivem uma vida de acomodada ilusão, que opõe a ideia de livre escolha no domínio da identidade sexual à história psíquica e à dor inconsciente. A experiência trans é outra maneira de ser, mas - como a maioria das narrativas trans que li - afirma em alto e bom som - como o Édipo - que não há jamais uma solução feliz para tudo. Sugerir tal coisa poderia alinhar os indivíduos trans ao falso perfeccionismo de uma cultura do consumo que nega a si própria, depositando neles um peso de felicidade igualmente injusto,4 como se alguém, trans ou não trans, resolvesse totalmente sua vida sexual inconsciente - uma perspectiva tentadora à qual nem o próprio Freud foi imune. Em um texto de 1924, "A dissolução do complexo de Édipo", ele sugere que a masculinidade surge quando o desejo edipiano na criança do sexo masculino é arruinado e todos os vestígios obliterados. Conforme destacado por mais de um comentarista, ele não está apenas oferecendo uma falsa imagem de masculinidade livre de conflitos (que os céus nos ajudem), mas também, como nada nunca perece no inconsciente, indo contra todas as ideias fundamentais da própria psicanálise. Penso que o romance de Johnson nos apresenta duas tarefas: permitir a fluidez do mundo, a liberdade trans, como podemos dizer, e reconhecer que não somos senhores/as de nosso destino. Não podemos perder de vista a dificuldade da psique.

Para concluir, falemos do romance vencedor do prêmio, Milkman [Leiteiro] (2018), de Anna Burns, cuja aclamação e notoriedade parecem infinitas (publicado pela Faber no Reino Unido e pela Graywolf Press nos EUA). No Reino Unido, os leitores ficaram surpresos com o fato de o livro ter previsto tanto o #MeToo quanto a questão da fronteira irlandesa, que no momento em que escrevo está em processo de suspender as negociações do Brexit. Na verdade, Burns finalizou seu romance em 2014, antes de esses dois assuntos chegarem aos jornais, e levou quatro anos para encontrar uma editora. Milkman já está sendo anunciado como o romance da geração #MeToo. É uma história de usurpação [encroachment], um termo que eu gostaria de ver no léxico comum da língua inglesa. Usurpação são as "visitas" de um paramilitar na casa dos 40 à narradora de 18 anos, cuja voz ininterrupta conta a história. Ele é sinistro, invasivo, ameaçador e, mesmo sem contato físico, enfraquece a mente e o corpo da jovem. O romance, portanto, dá a resposta definitiva àqueles que tentam derrubar o movimento #MeToo argumentando que qualquer coisa que não seja uma agressão sexual violenta, por conta da qual a autora da denúncia tem de vasculhar o mundo todo e também seu próprio corpo em busca de provas forenses, não pode ser considerada. (O evangelista Franklin Graham e vários republicanos alegaram que, devido ao fato de Kavanaugh não ter chegado a estuprar Ford - ele apenas a atacou e parou -, seu caráter "honrável" permaneceu intacto [Weinberger, 2018].) Aliás, a violência contra a mulher também está presente desde a primeira página desse romance, que se inicia da seguinte maneira: "O dia em que um Somebody McSomebody5 colocou uma arma contra meu peito..." (Burns, 2018, p. 1). Em Milkman, não há nomes próprios. A voz que conta a história é a irmã do meio, e o usurpador [encroacher] é simplesmente Milkman [Leiteiro], o que ele na verdade não é. Dessa forma, o romance se torna genérico para qualquer mundo sectário, mesmo que o local e a época em que ele se passa sejam, sem dúvida, a Belfast dos anos 1970, em meio aos conflitos que vieram a ser conhecidos como the troubles. Para os que pensavam que os troubles terminaram com o Acordo da Sexta-Feira Santa de 1998, a questão levantada pelo romance - a questão que o Brexit levanta com sua ameaça de uma nova fronteira rígida entre o norte e o sul - é se eles de fato desapareceram. (Um dos piores potenciais desastres do Brexit é o que ele pode reacender na Irlanda.)

Milkman faz uso do ambiente de violência da cidade para insistir no que ele quer. Ele segue a moça, a persegue, aparece do nada em lugares que ele nem deveria saber que ela poderia estar, ameaça mandar matar seu provável namorado. Primeiro, ele encosta uma van em uma calçada enquanto ela está caminhando e lendo, uma atividade muito prezada por ela enquanto forma de liberdade em meio a um mundo marcado pela violência. Como Christopher Bollas (1989) afirma em seu estudo sobre o incesto, mais do que qualquer outra coisa, o que o abuso destrói é a capacidade de reverie da vítima. Até Milkman entrar em cena, essa jovem menina desenvolvia, em sua mente, a capacidade de viajar no tempo (ela lê, sobretudo, livros do século XIX, pois, por motivos óbvios, ela não gosta do século XX). Milkman liquida tudo isso. "Meu mundo interior", ela diz no meio da história, "desapareceu". Ele causa nela torporcidade [numbance], outra palavra que precisa ser colocada no léxico geral. "Ele se infiltrou em minha psique. Isso é uma injustiça" (Burns, 2018, p. 166 e 178).

Na verdade, seu amor por ler e caminhar ao mesmo tempo sempre foi tido como sinal de uma arriscada independência de espírito. Ela é vista como doida ou alguém que passa dos limites pela comunidade, que agora começa, por conta de cenas estranhas, mas sem qualquer prova, a espalhar boatos de que ela é amante de Milkman. O respeito que ela tinha começa a desaparecer, enquanto ela é progressivamente acuada para dentro de um mundo psíquico e social sufocante. "Passei a entender", ela diz, "o quanto fui forçada a me fechar, o quanto fui impedida, para adentrar um vazio cuidadosamente construído por aquele homem" (p. 303). Qualquer prazer sexual que ela teve em sua juventude é destruído. As atenções físicas de seu provável namorado, pelas quais ela ansiara (não há nada de provável nisso), ela passa a sentir como repulsivas. Toda tentativa que ela faz de contar para qualquer outra pessoa, inclusive para a mãe, o que está acontecendo dá de cara com a descrença e com o aumento dos insultos sexuais contra ela. Só o que a salva é a própria voz contando sua história, sua extrema resiliência e seu humor diante das adversidades. Trata-se de um monólogo interior na forma de cura pela fala. É também uma homenagem ao poder da escrita de promover resistência e criar um mundo mais justo.

Retomando o início deste ensaio, trata-se de uma jovem cuja idade é mais ou menos a mesma de Katharina quando ela conheceu Freud nos Alpes, na virada do outro século. Podemos, então, ficar tentados a lamentar quão pouco mudou de lá para cá no que diz respeito ao abuso de jovens mulheres. Milkman nos permite ainda ficar maravilhados com os recursos que essas mulheres, em sua luta para serem ouvidas, estão reivindicando para si próprias nos dias de hoje. Em uma cena-chave, a jovem se depara com uma tropa de fãs de paramilitares que odeia a "bolha protegida, segura, das 8h às 17h", na qual mulheres são destinadas a querer existir, e que se regojiza dos dramas potencialmente fatais da vida que escolheram livremente (Eros e Tânatos, pode-se dizer). Ao mesmo tempo, ao se ver encurralada, ela começa a notar que está sendo induzida a uma forma assustadora de conhecimento sexual, que veio cedo demais (lembre-se de Freud sobre Katharina). "Essa mulheres estavam ameaçando me apresentar o sexo como algo desestruturado, algo incontrolável." Ela lamenta: "Mas não poderia eu ter mais do que 18 anos antes de poder perceber a confusão contida nas numerosas entrelinhas e nos opostos do sexo que cairiam sobre mim e que me incertezariam?" (p. 127). Junto com usurpação e torporcidade, o livro certamente leva o prêmio pelo uso de incerto como verbo: "que cairiam sobre mim e que me incertezariam'.

Como no caso de Katharina, estamos diante da questão sobre o que o choque da sexualidade faz com a mente despreparada. Também estamos diante da possibilidade - que, sugeri, torna-se não menos central à psicanálise - de que a sexualidade seja a única coisa para a qual a mente nunca estará totalmente pronta. Em Milkman, a realidade violenta do abuso e a dos "incontroláveis" "opostos" do sexo subsistem lado a lado na página: "meus irreconciliáveis", "aquelas irracionalidades incontroláveis", "as ambivalências da vida" ou "aquele algo estranho da psique" (p. 76, 128 e 264), para destacar algumas de minhas muitas expressões preferidas do livro. Invocar a primeira sem sentir que se deve silenciar ou sacrificar a complexa e incerta verdade da segunda é com certeza um dos maiores desafios de nosso tempo. Como lutar pelos direitos das mulheres, dos destituídos e impotentes, ou de qualquer um que sofra discriminação, e ao mesmo tempo exigir um mundo mais sintonizado psicanaliticamente?

Milkman não é sobre a experiência trans, mas é, com toda certeza, sobre fronteiras. Todos no romance estão vivendo na fronteira, uma fronteira policiada por bombas, explosões, matanças e atrocidades que parecem ser tão indiscriminadas quanto precisas contra seu alvo. Ninguém escapa. Enquanto eu acompanhava essa fronteira colher seus efeitos mortais ao longo do romance, foi impossível - ao menos para mim - não pensar na outra fronteira, a de gênero, que hoje é governada com igual ferocidade e que produz efeitos não menos letais. Então, repetindo a questão feita antes, onde está a esperança? Como pensar de maneira diferente? Ou, nas palavras de nossa narradora, "como viver de outra forma"? Em seu mundo castrador, apenas o fato de ter esse pensamento é suficiente para enlouquecer qualquer um. Mas isso "não era esquizofrenia", ela insiste, "era outra forma de viver. Isso era, sob o trauma e a escuridão, uma normalidade esperando a hora de acontecer" (p. 112). (Normalidade é uma das palavras de que menos gosto, mas nesse caso acho bem-vinda.)

O que me traz, finalmente, às wee sisters [irmãzinhas]. Desafio qualquer leitor desse romance a não se apaixonar por elas, cuja personificação e espírito extremamente engraçado nos permitem voltar à ideia da questão trans. Filósofas, lexicógrafas, classicistas, multilinguistas, pensadoras políticas e satiristas muito à frente de seu tempo, não há limites para sua precoce e extravagante sede de conhecimento e aventura intelectual (elas têm 7, 8 e 9 anos). Não é exagero dizer que são gênios. Para mim, elas são as heroínas de Milkman. Perto do final do romance, elas anunciam à irmã do meio que qualquer machucado ou contusão que ela venha a ver no corpo delas resulta de se vestirem com as roupas de um casal adulto - conhecido por ter abandonado os quatro filhos adolescentes em Belfast para seguir uma carreira internacional na dança - e andarem fanfarronamente pelas ruas.

[E] não apenas em nossa rua, mas em todas as ruas da região - mesmo do outro lado da rodovia de ligação, nas áreas de defesa, porque eu dei uma olhada e as percebi um dia, enquanto eu lia e caminhava rumo à cidade. (p. 314)

As wee sisters tinham simplesmente ignorado as fronteiras, desfilando na cara das mais severas defesas do mundo. Como indivíduos transgênero, elas transformaram a fronteira em algo entre uma piada e uma questão gritante sobre si próprias. "Elas tinham chegado àquele status extraordinário de atravessar a divisão sectária", a irmã do meio diz cheia de admiração, "um feito provavelmente sem significado fora das regiões sectárias em questão, mas que, dentro, assemelhava-se ao acontecimento mais cheio de esperança do mundo" (p. 314). Isso é com certeza o brincar que Winnicott notoriamente atribuiu aos espaços transicionais da mente humana como a fonte de toda criatividade (de transicional para trans seria todo um novo assunto). Quando encontramos tais espaços - na sessão, na página, nas ruas -, eles certamente merecem figurar entre os acontecimentos mais cheios de esperança do mundo, mesmo se nunca tiverem sido tão difíceis de atingir e tão urgentemente necessários como nos tempos abusivos em que vivemos.

 

Referências

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Correspondência:
Jacqueline Rose
43 Gordon Square
London WC1H 0PD
j.rose@bbk.ac.uk

Recebido em 14/1/2019
Aceito em 24/1/2019

 

 

1 NT: Brett Kavanaugh, juiz indicado por Donald Trump para a Suprema Corte, foi acusado por Christine Blasey Ford de ter tentado abusar sexualmente dela.
2 Cf. Weinberger (2018), em especial, as 31 instâncias de perjúrio no testemunho de Kavanaugh compiladas pelo grupo ativista Demand Justice.
3 Para uma discussão abrangente desse assunto, ver Jacques Lacan and the question of psychoanalytic training (Safouan, 2000).
4 Para uma investigação crítica do conceito de felicidade em nosso tempo, ver Ahmed (2010).
5 NT: algo equivalente em português a Fulano da Silva.

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