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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

FEMININO, OUTRAS REFLEXÕES

 

A contribuição de um bebê para o feminino com prazer na intervenção perinatal1

 

An infant's contribution towards the joyful feminine in perinatal intervention

 

La contribución de un bebé para el femenino con placer en la intervención perinatal

 

La contribution d'un bébé au féminin et au plaisir dans l'intervention périnatal

 

 

Frances Thomson-SaloI; Tradução Tania Mara Zalcberg

IEx-presidente da Sociedade Psicanalítica Australiana. Co-chair do Comitê de Estudos sobre Diversidade Sexual e Gênero (Europa) da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Psicanalista de crianças e adultos, especializou-se nos últimos 25 anos em psicoterapia pais-bebê

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo defende dois pontos de vista principais: analisa a contribuição de um bebê para o feminino, de acordo com noções psicanalíticas ocidentais, para tentar alinhar a psicanálise com a clínica da saúde mental de bebês, ligar esses pontos de vista ao dos estudos sobre o bebê (e da neurociência), vincular a psicanálise às ciências afins e ilustrar a abordagem intersubjetiva em psicoterapia breve perinatal pais-bebê.

Palavras-chave: psicanálise, bebê, feminino, psicoterapia breve perinatal, saúde mental de bebês


ABSTRACT

The paper makes two main points, firstly, considering a baby's contribution to the feminine within psychoanalytic western notions, to try to align psychoanalysis with clinical infant mental health, to bridge these perspectives with those from infant studies (and neuroscience), linking psychoanalysis with nearby sciences and illustrating an intersubjective approach in brief perinatal infant-parent psychotherapy.

Keywords: psychoanalysis, baby, female, perinatal brief psychotherapy, baby mental health


RESUMEN

El artículo defiende dos puntos de vista principales: en primer lugar, analiza la contribución de un bebé para el femenino, de acuerdo con nociones psicoanalíticas occidentales, para intentar alinear el psicoanálisis con la clínica de salud mental de bebés, relacionar estos puntos de al de los estudios sobre el bebé (y la neurociencia), vincular el psicoanálisis a las ciencias afines e ilustrar el abordaje intersubjetivo en psicoterapia breve perinatal papás-bebé.

Palabras clave: psicoanálisis, bebé, femenino, psicoterapia breve perinatal, salud mental de los bebés


RÉSUMÉ

L'article soutient deux points de vue principaux : d'abord, il analyse la contribution d'un bébé au féminin, selon les notions psychanalytiques occidentales, pour ensuite essayer d'aligner la psychanalyse sur la clinique de santé mental de bébés, relier ces points de vue aux études concernant ces derniers (et la neuroscience), lier la psychanalyse aux sciences affins et illustrer l'approche intersubjective en psychothérapie brève périnatale parents-bébé.

Mots-clés: psychanalyse, bébé, femme, psychothérapie brève périnatale, santé mentale du bébé


 

 

 

Pretendo defender dois pontos de vista principais: analisar a contribuição de um bebê para o feminino, de acordo com noções psicanalíticas ocidentais, para tentar alinhar a psicanálise com a clínica da saúde mental de bebês, ligar esses pontos de vista com os de estudos sobre o bebê (e da neurociência), vincular a psicanálise às ciências afins e ilustrar a abordagem intersubjetiva em psicoterapia breve perinatal pais-bebê.

Avento que o conhecimento contemporâneo sobre bebês, atento às variações culturais da parentalidade e sujeito à crítica de ser muito simplista, pode afetar o feminino. Deixando de lado debates teóricos acerca de ligações entre feminilidade e maternidade, espero demonstrar com duas vinhetas sobre a aplicação breve da teoria psicanalítica e, em especial, por intervenções clínicas de curto prazo em um serviço de consulta, numa movimentada maternidade, com cerca de 8 mil nascimentos ao ano, o que é possível efetivar mediante intervenções de orientação psicanalítica no período perinatal. As vinhetas descrevem mulheres com histórico de trauma e de uso de substâncias. Minha intervenção em problemas vinculares deu-se principalmente por meio da continência, com ampla aceitação. Discutirei como o bebê contribui para o feminino, considerando que a maternidade é um processo de desenvolvimento, para rever em seguida os conceitos de Édipo precoce e de bissexualidade, pois, sem negar o papel da inveja e da agressividade, do ponto de vista da saúde mental do bebê, esses conceitos podem não mais ocupar o centro da cena tanto quanto antes.

Finalmente, abordo as possíveis implicações para a intervenção psicanalítica. Poderá parecer que eu não esteja falando do feminino, mas ficará mais claro na seção clínica.

 

O desejo feminino por um bebê

Os pontos de vista da clínica da saúde mental de bebês dão apoio às visões psicanalíticas sobre o desejo de cuidar de um bebê de maneira empática, de desejar e ser desejado de modo bidirecional, juntamente com a maior liberdade de escolha de não ser mãe. As inúmeras técnicas de reprodução assistida destacam o insistente desejo por um bebê em muitas mulheres. É possível levar esperma da Austrália à África do Sul para uma gravidez de aluguel, o bebê nascido ter como destino a Itália e ser criado por um pai solteiro de 60 anos. Um bebê ao nascer está sempre pronto a estabelecer uma relação com o feminino com prazer, o que, apesar da ambivalência e da ansiedade anteriores, pode fazer a mãe enamorar-se com uma paixão inacreditável no instante em que toma o bebê nos braços e, no espaço de um mês, observa o intenso olhar do bebê para ela.

Não obstante, Paulette (todos os nomes foram trocados), mãe solteira de 40 anos, precisou descobrir o desejo por seu bebê - vivendo em circunstâncias de privação, com longa história de uso de maconha. Ela engravidou, mas foi incapaz de abortar, ao pensar que o bebê seria a reencarnação do seu amado cachorro. A bebê, Sue, teve anoxia ao nascimento, durante 20 minutos, e após ser ressuscitada teve inúmeras dificuldades devido à sua prematuridade. Muitas vezes, Paulette parecia acabrunhada, ao mesmo tempo que cuidava dela com intensidade. No início, ela só veio com a bebê Sue, para uma sessão de meia hora, a cada duas semanas. Ela afirmava não amar Sue e me pedia constantemente para concordar que melhor seria se ela fosse adotada, recriando o sentimento de que ela própria não tinha sido investida quando bebê. Eu disse que o importante era o fato de ela transmitir que a protegeria. Sue me rejeitava nas sessões, só queria a mãe. Levou dois anos, em que precisei conter uma espécie de amortecimento, antes de Paulette poder dizer que a amava, dando apoio a Sue de um modo que jamais sentira que os pais fizeram em relação a ela própria. A identificação projetiva em que havia a demanda para concordar que a existência de um bebê poderia ser negada se transformou, e a intervenção psicanalítica permitiu a expressão do desejo por um filho. A possibilidade de reflexão de Paulette tinha entrado em colapso com o trauma de infância devido ao abuso sexual cometido por seu irmão, que os pais negaram e que perturbou sua transição para a parentalidade. Ela pôde criar uma relação íntima com sua bebê ao se atrever a confiar em mim. Paulette passou a trabalhar em terapia a retirada do uso de substâncias. Mas, apenas se aceitarmos como verdadeiro que principalmente o feminino protegerá o desenvolvimento e inverterá essa condição, teremos condição de observar o papel enorme que um bebê desempenha nessa questão.

 

O senso de self do bebê a partir do nascimento, gênero e capacidades iniciais

Um bebê pequeno desempenha um papel importante ao ajudar a transição feminina para a maternidade, ao olhar para a mãe no nascimento, antes da primeira mamada, em busca da alegria da surpresa. Um bebê já nasce se relacionando, social, com muitas emoções positivas. Na primeira hora após o nascimento, antes da amamentação, o bebê olha para o rosto da mãe à procura de um sorriso, o que propicia o começo da comunicação social entre ambos. Os recém-nascidos nascem com o sistema de neurônios-espelho ativo, procuram se envolver com os outros e imitar expressões faciais que transmitem afeto, inclusive sorrindo. Vinte minutos após o nascimento, movem as mãos para expressar suas emoções, como precursores precoces de relação. Acham emocionante e reconfortante serem olhados por alguém que se encanta com eles. Imitam a mãe tentando desde muito cedo evocar sorrisos e satisfação. Uma hora após o nascimento, projetam a língua para evocar riso.

Todos os sentidos do self entram em atividade desde o nascimento (Stern, 1985/1995) - até mesmo o self emergente, nuclear, intersubjetivo e o senso de identidade. O recém-nascido se encaixa nas memórias históricas, expectativas culturais, ordem fraterna e características de temperamento da mãe. As meninas recém-nascidas são mais fofas do que os meninos, ainda que geralmente mais independentes. Os bebês leem expressões faciais com mais rapidez, alguns segundos antes do que os adultos conseguem processar. Desde o nascimento, procuram relacionar-se com humor. Quando estão alegres, sentem-se compreendidos e queridos. Buscam o prazer da interação - inclusive de brincadeiras - e, ao conseguir, sentem-se seguros, felizes e esperançosos. Trazem o desejo da diversão e, à medida que aumenta seu senso de self, sua ansiedade diminui. As pesquisas sugerem que o bebê organiza muito cedo a linguagem feminina, não o oposto, e com 1 mês já pode sentir-se triste ou traído, de maneira bastante discernível.

Observam-se diferenças significativas de gênero nas funções sociais e emocionais femininas e masculinas nos estágios iniciais do desenvolvimento, que resultam de diferenças não só em hormônios sexuais e experiências sociais, mas também em níveis de maturação cerebral feminina e masculina. Os bebês já mostram diferenças constitucionais próprias de gênero: bebês do sexo masculino tendem a chorar mais desde o nascimento, aproximam-se e são mais dependentes das mães na administração dos seus sentimentos de alegria e de raiva. Mães de primeira viagem sorriem e conversam mais com as filhas, e alimentam mais os meninos do que as meninas. As mães conversam com as filhas como se fossem iguais a si, com um vocabulário emocional rico sobre estados emocionais muito diversos. Aos 2 meses e meio, as meninas demonstram mais alegria quando a mãe aparece; os meninos respondem mais às mães desde o nascimento, e as mães podem considerá-los diferentes, afastá-los e conversar com eles de forma afetiva mais restrita.

A cuidadora do sexo feminino reflete acerca das intensas excitações, ansiedades, raivas e desespero do bebê, e o ajuda a não ficar sobrecarregado por sentimentos desorganizadores e a tornar-se cada vez mais capaz de autossuficiência emocional. As regulações mútuas pais-bebê, ao usar por exemplo voz mais calma para diminuir o sofrimento raivoso do bebê, são fundamentais na comunicação desde o nascimento. Na medida em que o bebê responde à continência materna, ele se sente reconhecido. Mães e bebês estão em constante envolvimento consciente e inconsciente com o outro.

 

Excitação sexual e complexo de Édipo

Há evidências de que os bebês são capazes de vincular-se desde o nascimento e de que têm sua própria dotação constitucional para responder, já começando a vida com dotação neuronal para interações com múltiplas pessoas. Isso sugere que eles trazem essa dotação para a interação, e não que ela seja apenas evocada pelas respostas sexuais dos pais. Essas percepções acerca da excitação corporal dos bebês os posicionam como agentes de sua própria vida.

Um bebê de 2 semanas pode ser extremamente aconchegante e se contorcer com prazer sexual ao olhar de sua mãe. Os bebês fofinhos podem ter muitos contatos físicos diretos, toques carinhosos, e por meio de suas ações buscam ativamente estimulação erótica e resposta. Um bebê de 2 semanas pode "conversar" com o outro, adulto ou bebê, e se envolver ativamente com ele.

Bebês são considerados apaixonados, comprometidos em comunicação triádica e em relações desde o nascimento, como demonstraram Fivaz--Depeursinge, Lavanchy-Scaiola e Favez (2010), criando um espaço para o pai, uma função paterna; alcançando o terceiro com gestos inclusivos e, a seguir, de modo excitado ambos os pais - dos 2 meses em diante, quando pais e bebês se entreolham, os opioides se ativam, tornando o olhar uma experiência muito potente. Os bebês desde os 3 meses, se não for desde o nascimento, agem de modo a compartilhar a atenção e os afetos com os pais. As pesquisas e a experiência clínica sugerem que isso é algo que ameniza os sentimentos de querer excluir o outro de uma relação especial e diminui a importância das visões de hostilidade e de ciúme edipiano do bebê.

Os bebês percebem a diferença de gênero muito cedo: aos 6 meses, um bebê consegue distinguir o sexo feminino ou masculino de outros bebês; meninas de 8 meses vistas amamentando a boneca durante a observação psicanalítica semanal de bebês parecem fazê-lo em identificação prazerosa com a mãe.

No campo da saúde mental de bebês há mais conscientização das características de personalidade - não tenho conhecimento de pesquisas sobre bis-sexualidade precoce e de como se integram na clínica, a não ser que atualmente o gênero é considerado mais fluido e emergente do que antes se pensava, de maneira que as distinções culturais anteriores entre feminino e masculino são consideradas menos rígidas -, com a quadruplicação do número de crianças de 3 anos de idade em diante que pedem transição de gênero, o que aponta para maior fluidez do que antes.

No período perinatal, o superego feminino pode aumentar a gravidade da culpa acerca de todos os aspectos do desenvolvimento de um bebê. Todas as mães, em alguns momentos, podem odiar seus bebês, mas em geral não desejam passar à ação e, por isso, sonham que colocam o bebê no peitoril da janela. Quando as coisas caminham bem para a mãe, especialmente se o bebê for animado, algo que a tranquiliza, a severidade do superego se ajusta. Tanto o bebê quanto a mãe, ao sobreviverem aos desejos raivosos do bebê, constroem sua tranquilidade. O estabelecimento da constelação da maternidade de Stern (1985/1995), em que a mulher se sente modificada para sempre, indica que a severidade do superego está sendo ajustada. Os bebês sabem, já no primeiro ano, como fazer escolhas entre o certo e o errado, entre o mocinho e o bandido, e pesquisas sugerem que, a partir dos 3 meses, os bebês criam narrativas centradas em valores morais e éticos - no cerne do superego? Kobie, de 6 meses, tampou os ouvidos quando a mãe deu apoio a seu parceiro violento, mas não fez isso comigo, como se já tivesse consciência de que o que eu dizia era verdade, ou seja, que o pai deveria protegê-lo.

Uma menina responde de modo habitual aos sintomas depressivos da mãe tentando tirá-la desse estado, identificando-se talvez com a função nutridora do superego amoroso da mãe que cuida da avó deprimida?

Uma menina autossuficiente, ao se afastar da mãe, um afastamento especialmente prematuro do seio aos 8 meses, como esforço para se separar, pode ser uma fonte precoce de culpa, se a mãe não tiver consciência da profundidade da paixão da filha por ela, como seu primeiro objeto de amor. Uma analisanda descreveu a expressão de traição no rosto da filha de 2 anos, ao observá-la amamentando o irmãozinho.

 

Integrando a saúde mental clínica dos bebês com intervenções psicanalíticas

Apesar de a relevância mais plena da intervenção intersubjetiva com bebês ainda permanecer em vias de elaboração para diversas tradições psicanalíticas, relatarei as primeiras quatro sessões de uma intervenção terapêutica de um ano de duração com uma jovem gestante de 16 anos. Lee esteve no sistema de proteção à infância desde os 4 anos de idade, com extensa história de figuras paternas violentas, vivendo em um refúgio desde os 14 anos de idade, com um parceiro mais velho e coercitivo. Recebeu o diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, com uso de maconha, cocaína etc., que aumentou no início da gestação. O encaminhamento ocorreu devido à sua dificuldade de sentir-se ligada ao feto.

A intervenção ao redor ou logo após o nascimento ameniza o objeto interno punitivo para a mãe e o bebê; a continência a muito curto prazo dos sentimentos dolorosos e a identificação com o superego menos persecutório do terapeuta podem acarretar mudanças profundas. Essas intervenções geralmente se dão com a transferência da parentalidade para o bebê, não para o terapeuta.

Primeira sessão

Lee chegou duas horas atrasada com uma amiga. Ambas falavam rápido em seus celulares. Rosto inexpressivo, monossilábica, com humor desalentado e negativo a respeito da filha, Kay, de 1 mês, disse que não estava apaixonada por ela - seria normal? Depois, quando conversei rapidamente com Kay, antes de virar seu rosto em direção a Lee, ela, que estava algo amortecida em relação à mãe, abriu os olhos, interagiu e sorriu um pouco para mim. Tive a impressão de que Lee se interessou, ficando um pouco admirada por eu conversar com Kay. Afirmei que Kay chorava forte por querer ficar perto de Lee. Lee estava zangada, estava de um jeito entorpecido e desligado. Não senti ter conseguido contato com ela e pensei em encaminhá-la para um trabalho de controle de raiva.

Concebi que meu papel seria principalmente compreender e continuar. Era difícil tolerar minha contratransferência - algo evocava em mim uma resposta de distanciamento, um sentimento de impotência e de frustração, de estar odiando a sessão (o atraso dela provocava minha rejeição), não obstante marquei o próximo encontro para pouco antes do nascimento. Tentei intervir para conseguir compreender minha contratransferência. Lee deve ter percebido, de modo inconsciente e intersubjetivo, que eu me sentia rebaixada, mas ainda assim continuava tentando. Minha intervenção tinha o intuito de fazê-la entender Kay, protegê-la emocionalmente, algo que ainda não tinha acontecido. Teria sido fácil não perceber a ansiedade de Lee. Contudo, eu duvidava que pudesse conseguir oferecer qualquer coisa por meio das minhas intervenções habituais. Será que ela me provocava inconscientemente a rejeitá-la para poder se sentir no comando? Era difícil não sucumbir ao desespero, deixar de pensar ou recorrer a bodes expiatórios. Eu queria permissão para encaminhá-la, mas disse a mim mesma que não podia desistir, apesar de sentir que tinha pouco contato com ela. Esse meu processo interno permitiu que ela sentisse que poderia voltar e se relacionar comigo.

O fato de eu continuar a atendê-las deu a Lee algo que antes ela não tivera, talvez a possibilidade de se aproximar de lembranças benignas anteriores. Eu lhe disse inconscientemente, apesar do olhar de evitação de Kay: "Sua bebê gosta muito de você". Com isso, buscava não sobrecarregá-la rápido demais com algo que não seria capaz de enfrentar. Acho que Lee queria encontrar o rosto dela no meu, mas trauma e dissociação tinham fechado essa possibilidade. Nesse meio-tempo, posso ter começado a animar Kay, agindo como uma ponte que ela pudesse usar. Até esse momento, Kay não tinha conseguido animar a mãe, por se encontrar diante do amortecimento protetor de Lee. Com Kay, eu expressava emoções que devem ter significado um novo espaço para Lee.

Segunda sessão

Lee estava apenas 15 minutos atrasada e um pouco mais próxima. Comentei que Kay parecia diferente. Lee ficou curiosa e perguntou como. Ela observou que Kay tinha sorrido pela primeira vez para ela, mas que interagiu pouco com ela, dizendo: "Preciso fazer o trabalho doméstico" Kay mamava bem. Então, tentei explorar o prazer de Lee em amamentar ao seio para que a relação delas ficasse mais plena, aberta à sua sensualidade, em lugar de ser apenas funcional. Lee disse que durante a amamentação olhava para longe, pois seu pescoço doía. A mãe de Lee não a amamentara quando bebê, tendo antes derramado água fervente em seus seios. Lee estava se irritando com o parceiro; nas noites em que ele as visitava, Kay ficava inquieta. Sugeri que Kay poderia estar percebendo seus sentimentos, mas não tive certeza se Lee "me escutou". Rapidamente, Lee se enfureceu no mundo externo. Pensava que as pessoas tinham relatado que ela aumentara o abuso de drogas (conjeturei se ela gostaria de desistir de Kay e se estaria me contando isso). Cancelou a sessão seguinte pouco antes das minhas férias e, então, achei que ela não voltaria. Para minha surpresa, ouvi da profissional que dava apoio a Lee que, após essa sessão, ela passara a olhar mais para Kay. Lee talvez tenha sentido que a incluí no espaço transicional intersubjetivo lúdico de Winnicott. Ela deve ter percebido que eu prestava reconhecimento a Kay, mas pode ter sentido medo de que eu a rejeitasse, assim como ela deve ser se sentido rejeitada por sua mãe e, no sistema de cuidados com crianças, deve ter se sentido desamparada e inútil, e talvez tenha me considerado como mãe adotiva. Ela me testava com algumas informações a respeito de sua dificuldade de lidar com a realidade, portanto assumindo um risco. Confiei no poder do vínculo e não a denunciei. Lee me modificava. O fato de eu ter ficado admirada pode ter dado apoio ao seu direito de se encantar com a filha, de desfrutar seu corpo, e deve ter estimulado algo.

Terceira sessão

Lee teve uma queimadura no seio ao virar uma panqueca, o que considerei como repetição da sua história, apesar de amenizada. Lee alimentou Kay, mas a bebê ficou muito angustiada e fixou o olhar em um interruptor de luz branco. Lee repetiu insistentemente que ela não podia ficar olhando uma parede branca. Quase sem querer, eu disse que Kay poderia estar discriminando tons de branco, como os esquimós. Um pouco envergonhada diante do olhar de incompreensão de Lee, nada mais pude fazer a não ser explicar que no romance de Peter Hoeg Senhorita Smilla e o sentido da neve (2008) há referência a 17 cores de neve, querendo dizer com isso que Kay não estava desviando o olhar de Lee.

Depois, pude reconstituir que Lee se sentia nulificada por Kay não olhar para ela e considerava assustador pensar a respeito da mente de Kay. Talvez por eu ter sido capaz de conter e de procurar significado, Lee virou-a de maneira que eu pudesse conversar com ela (e dar mais significado?). Na medida em que fui fazendo isso, Kay começou a sorrir e a interagir, vocalizando para mim, tanto iniciando quanto em resposta. Quando disse espontaneamente "Você é esperta" ela sorriu e vocalizou mais ainda. Comentei com Lee que Kay se desenvolvia bem graças a ela. Enquanto eu conversava com Kay, Lee nos contemplou interessada, mas disse-me então que não tinha a menor ideia do que acontecia na mente de Kay. A seguir, talvez com ciúme do meu envolvimento, colocou-a no carpete, do outro lado do carrinho, circundando os dedos dela com força ao redor de um chocalho duro. Achei bem difícil deixá-la ali, como se estivesse em um lugar muito distante, mas senti que seria necessário. Para minha surpresa, Kay fixou o olhar em minha direção. Eu sabia que não devia lhe oferecer demais. Perguntei a Lee sobre a vida, e ela respondeu com uma torrente a respeito de como estava "danadamente2 furiosa" com os "malditos trabalhadores" "terrivelmente" idiotas. Ela não conseguia fazer nada nem ir a lugar algum. Ouvi a transferência que nos influenciava a ambas, mas decidi não interpretar de acordo com ela. Quando investiguei com Lee acerca da sua vida, acho que ela sentiu que eu compartilhava seu desespero de ter perdido a paixão por desenho gráfico, que era a carreira pretendida por ela; ela também sentiu que sua violência não era tão má. Ela tivera 13 funcionários, dos quais demitira 11 pessoalmente.

Esta foi uma sessão decisiva. Ela assumiu um risco: voltei depois das minhas férias, e ela me mostrou um self danificado. A queimadura poderia simbolizar a combustão da intimidade oral, mas não cheguei até aí. Mesmo ao demonstrar choque e tristeza, eu procurava dar sentido, não privilegiar Kay em detrimento de Lee, e sobrevivi à agressão. O material sobre os esquimós foi um enactment mutativo criado em conjunto - ela imediatamente virara Kay e a seguir me pôs totalmente em teste na sessão. Mesmo quando foi muito difícil vivenciar sua dor, acho que ela percebeu minha tentativa de estar junto a ela.

Quarta sessão

Lee chegou pontualmente para a sessão. Kay, de 3 meses, esforçou-se para se conectar comigo, iluminando-se com um sorriso em seu carrinho. Para minha surpresa, Lee começou a falar manhês sem perceber - portanto, tínhamos chegado às boas lembranças. Quando conversamos sobre a capacidade de resposta de Kay em relação a Lee, esta disse "ok" inúmeras vezes, como se estivesse interessada nas ideias e aceitasse o aspecto positivo. Mencionou que recebera a primeira risada de Kay e, ao se reconectar com a mãe pela primeira vez, lhe telefonara para contar. Repetiu uma frase que eu usara de modo inconsciente: "Ela vai fazer de novo". Também, para minha surpresa, e pela primeira vez, Lee recostou-se, deixou Kay no carrinho e conversou comigo de um jeito solto. Tivera uma semana horrível, brigara com uma "estranha" que dissera que ficar grávida na adolescência era nojento, o que a anulara, e fora acusada de possuir uma faca. Mas contou-me acerca de uma criança empática que já andava, e imaginei que ela descrevia o início de um estado mental empático.

Às vezes, trabalhar com ela era difícil e deprimente devido ao seu negativismo - certa ocasião xingara de cadela a recepcionista que ameaçara Kay e ela. Em determinados momentos, eu falava como se fosse Kay, refraseando o que Lee dissera, às vezes em relação a Kay, outras ressaltando Lee, destacando as coisas boas que Lee dera a Kay. Quando o pai de Kay a sequestrou, apesar de não ter telefone, Lee conseguiu uma ordem de interdição. Lee, que parecia não ter um bom objeto materno internalizado, aparentemente obteve algo da intervenção terapêutica. Será que o fato de eu ter deixado Kay no carpete, sem críticas, a ajudara a se tornar mãe da sua bebê?

Três meses depois, Lee não usava mais drogas e tinha uma aparência atraente. Contou que estava "seletiva": escolhera ser atendida por mim, e não por outros terapeutas, apesar de usar quatro tipos de transporte público, o que levava duas horas. Disse que poderia se reconectar quando tivesse crédito em seu telefone. Ao final, ela observou: "É bom conversar com você"

 

Algumas questões essenciais da psicoterapia pais-bebê para a psicanálise que precisam de mais elaboração

• Regulação recíproca: Lee me fazia mudar por meio dos processos do sistema de neurônios-espelho, na medida em que eu também a fazia mudar continuamente. A consciência da regulação recíproca entre pais--bebês desde o nascimento, que afeta o desenvolvimento da mente, tem enormes implicações para os conceitos e a clínica psicanalítica. Quando uma paciente adulta me diz que falo rápido demais, preciso levar em consideração se estou me baseando nisso e subscrever; estarei tentando inconscientemente fazer reviver a mãe morta nela?

• Continência na contratransferência: Lee privou-se de se relacionar com Kay. Também protegia Kay da sua raiva. Desafiou-me colocando Kay no carpete - ao reconhecer Kay como sujeito, Lee se torna mãe dela, e ambas podem se desenvolver mais plenamente.

• Cocriação como parte da abordagem intersubjetiva em intervenção psicanalítica, incluindo enactments mutativos: o material sobre os esquimós pode ser considerado desse modo. É muito mais assustador, como disse Winnicott, brincar com um bebê do que conversar com os pais; com um bebê, não se pode saber o que vai acontecer em seguida, o que torna tudo mais autêntico. Com Lee, penso que houve um movimento para a identificação introjetiva e um novo começo, com poder de determinar o desenvolvimento mãe-bebê em nova trajetória.

 

Conclusão

Nas primeiras quatro sessões, não toquei em muitas coisas - na depressão sob o transtorno de personalidade. Apesar de eu saber que poderão achar questionável essa maneira de intervir, penso que ela dá a muitas mães e bebês uma esperança que não teriam.

O terapeuta analítico pode proporcionar um novo modo de se relacionar juntamente com a verbalização em psicoterapia pais-bebê (de acordo com dados da neurociência), assim como ocorreu com Lee. É algo que tem implicações importantes para a vertente intersubjetiva da intervenção psicanalítica.

 

Referências

Fivaz-Depeursinge, E., Lavanchy-Scaiola, C. & Favez, N. (2010). The young infant's triangular communication in the family: access to threesome intersubjectivity? Conceptual considerations and case illustrations. Psychoanalytic Dialogues, 20(2),125-140.         [ Links ]

Hoeg, P. (2008). Miss Smillas feelings for snow. London: Vintage.         [ Links ]

Stern, D. (1995). The interpersonal world of the infant. New York: Basic Books. (Trabalho original publicado em 1985)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1958). Hate in the countertransference. In D. W. Winnicott, Collected papers: through paediatrics to psychoanalysis (pp. 194-203). New York: Basic Books. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Frances Thomson-Salo
TA, GA
Melbourne Vic 3004
Tel.: 03 9041-0945
fvtsalo@unimelb.edu.au

Recebido em 25/2/2019
Aceito em 11/3/2019

 

 

1 A autora detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do ipa London Congress, sob o título "The feminine", de 24 a 27 de julho de 2019, com registro disponível no site da IPA www.ipa.world/london.
2 NT: no original, a autora usa effing, eufemismo de um palavrão.

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