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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

RESENHAS

 

Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual

 

 

Matheus Ferreira de Castro

Graduando em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bolsista de iniciação científica pelo Pibic-CNPq e integrante do Projeto Cavas-UFMG desde agosto de 2017

Correspondência

 

 

Organizadora: Cassandra Pereira França
Editora: Blucher, São Paulo, 2017, 248 p.
Resenhado por: Matheus Ferreira de Castro

 

 

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, "A palavra mágica"

 

Sobre a mudez da violência e a reanimação das palavras

Quantas palavras são necessárias para superar um silêncio? Em "A palavra mágica", Drummond nos apresenta a delicadeza e a insistência do processo de tecer uma trama de palavras. Afinal, como bem diz o poeta, elas são a senha da vida, a senha do mundo. Talvez, arriscar-se-ia dizer, essa procura pelo significado do mundo seja aquilo que nos torna singularmente humanos. Fato é que a palavra instaura uma nova dimensão às coisas, significando-as, dotando-as de afeto.

Ainda assim, seria possível falar em outra dimensão instaurada pela palavra: aquela mesma do silêncio. E o silêncio, por si só, comporta um sem-número de possibilidades. Numa de suas teorizações mais originais e controversas, Freud (1930/1996) define o trabalho da pulsão de morte como silencioso, ausente de representações. O entremear mudo da violência também está presente na tragédia grega de Ésquilo Prometeu acorrentado (1993). O titã punido por Zeus devido à ousadia de roubar o fogo e entregá-lo aos mortais é condenado a ser agrilhoado ao monte Cáucaso, conduzido ao castigo por Hefesto, Crato (Poder) e Bias (Violência). A violência descrita por Ésquilo é uma personagem muda. Essa mudez agressiva, exercício inerente aos imperativos, como a lei de Zeus, também tinge os silêncios de Prometeu diante de seu destino. Reside no silêncio uma potência violenta que parece escapar ao laço da palavra. O livro Ecos do silêncio, organizado por Cassandra Pereira França, docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg) e coordenadora do Projeto Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual (Cavas-UFMG), compila uma série de leituras possíveis no entorno dessa dimensão delicada, tão presente na vida daqueles que sofrem ou sofreram algum dia traumatismos sexuais.

Logo na introdução e em "Do grito de silêncio à reconstrução subjetiva", Cassandra Pereira França apresenta alguns detalhes que compõem o cenário para o drama do abuso sexual. Comumente instaurada durante a infância, período permeado por fantasias e dilemas que atravessam as relações assimétricas entre adultos e crianças, a violência sexual muitas vezes lança a vítima dentro de uma trama de segredos no seio familiar. O sintoma de Lara, seu grito mudo que "irrompe das entranhas" como que em protesto, ilustra a manutenção de um pacto que pulsa por significação. O silêncio da culpa, emaranhado por um gozo pulsional excessivo, ecoará no psiquismo da criança, do futuro adulto, e encontrará, na melhor das situações, o ouvido atento e acolhedor do analista. Seria esse o primeiro trabalho do psicanalisar: encontrar, diante da mudez paradoxalmente sonora das vítimas, caminhos a percorrer em direção às primeiras representações, pesquisas sensíveis que, como bem diz a autora, "estão situadas no campo do desamor, e o que nos cabe é apenas escutar, nos ecos do silêncio, o tom surdo desse desamor" (p. 15).

A tessitura de uma trama de palavras, no entanto, não é um processo linear. A realidade do trauma é algo que violenta e excede a capacidade simbólica. A procura que insiste, retomando Drummond, e anseia pelo encontro com a palavra é marcada pela concretude do corpo.

Adriana Franco introduz a dimensão corporal no debate sobre as consequências do traumático, lido como um evento disruptivo que não é passível de metabolização pelo psiquismo da vítima. Dos sintomas concretos dessa inscrição problemática (transtornos alimentares, tentativas de suicídio, dificuldades para inscrever psiquicamente a genitalidade), desvela-se a fundamental importância do investimento corporal para o psiquismo da criança. Essa discussão é posteriormente desenvolvida nos capítulos "Cuerpo a cuerpo con la madre: identificaciones narcisistas alienantes" e "Um excesso que não se vê: a erotização do corpo da criança pela mãe". O investimento da mãe ou cuidador nesses primeiros momentos da vida infantil é imprescindível para a formação psíquica do futuro adulto. Se mencionamos a necessidade de um aparelho simbólico refinado, estamos falando de uma relação originária bem consolidada, marcadamente corporal, investida. Um dos autores utilizados nessa discussão, Didier Anzieu, chega a teorizar a potência da pele enquanto veículo para essas trocas e marcas subjetivas.

Por outro lado, há uma linha delicada entre cuidado e abuso que precisa ser abordada, quando o excesso de investimento pela mãe ou cuidador acaba tornando-se intrusivo. Em "Um excesso que não se vê", empreendem-se leituras kleinianas e laplanchianas sobre as operações psíquicas entre cuidador e criança, e destaca-se a importância de uma ética do cuidado, que garanta tanto um suporte quanto um espaço para o desenvolvimento saudável da criança. As autoras se valem de uma discussão do filme My little princess para ilustrar o jogo de sedução desarmônico entre adulto e criança e as consequências infelizes do pacto perverso acordado entre mãe e filha. O capítulo também traz questionamentos significativos sobre a naturalização do cuidado como traço identitário feminino conferido pela cultura.

O silêncio da procura, que cala no psiquismo da vítima e ecoa por seu corpo, deflagra algo como a morte da palavra. É importante ressaltar que a rede simbólica precisa se envolver em afeto, de modo que o sujeito se implique em determinada representação. A elaboração do trauma diz respeito a esse trabalho tão delicado e minucioso que é a reanimação da palavra. Em "Vida e morte da palavra", Flávio Carvalho Ferraz investiga com precisão as vicissitudes do símbolo, a partir do diálogo entre teóricos da psicanálise e da filosofia. O capítulo, teoricamente denso, estabelece uma discussão rica que entremeia todos os outros capítulos do livro.

Ao nos apropriarmos singularmente das palavras, nós as dotamos de afeto. Assim, é possível falar de uma afetação do símbolo, segundo McDougall, processo no qual se confere vida à palavra, que passa a funcionar como um mecanismo de para-excitação, de proteção contra a violência pulsional. As palavras vivas, que correspondem a vínculos entre representações e afetos, são passíveis de encadeamento e constituem aquilo que se entende por pensamento. É exatamente essa singularidade afetada que está em jogo quando a palavra morre. Situações de sofrimento intenso, como o traumatismo sexual, excedem a capacidade de simbolização da vítima, que passa a residir, confinada, no ciclo perverso da repetição.

No entanto, o traumático não fica restrito apenas ao ato abusivo. Para reanimar a palavra é preciso que a vítima tenha um suporte necessário e presente. A teorização de Sándor Ferenczi nos esclarece o quanto o desmentido do adulto, quando este se nega a reconhecer e, portanto, a legitimar o sofrimento da criança, é decisivo para a saúde psíquica infantil. Desse suporte depende a própria habilidade de simbolizar, de imantar a palavra com afeto e encadeá-la, o que possibilitaria a elaboração. Fragilizada, a vítima também vê sua capacidade de perlaborar comprometida, acabando por valer-se de mecanismos primitivos, como o recurso à corporeidade, na tentativa de organizar esses conteúdos dolorosos.

Ao trabalhar com o discurso e suas possibilidades, a prontidão de uma escuta analítica se torna peça-chave na revivescência da palavra. A perlaboração é precisa, como ilustra Drummond ao sugerir que a própria procura se encarna em palavra. A função do analista se une à atividade do sujeito em construção conjunta, capaz de vincular a representação ao afeto, dotando a vítima dos recursos necessários para elaborar a vivência traumática.

O movimento da procura por palavras e a atuação profissional como seu suporte funcionam tal qual uma atividade poética. Afinal, ao trabalho conjunto de analista e paciente se credita a tessitura de um jogo entre significados. A poética da análise no entorno do silêncio reside nesse trabalho de entremear versos, importar afetos para fatos acontecidos, construir uma fala para o não dito. A linguagem surge enquanto veículo de sentido, como propõe Renata Udler Cromberg ao fim deste livro, local de partilha num "entre-dois", maneiras possíveis de curar a dor e superar silêncios.

 

Referências

Ésquilo. (1993). Prometeu acorrentado (M. G. Kury, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21, pp. 38-92). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Matheus Ferreira de Castro
Rua Flor de Fogo, 65, bloco 6, ap. 703
31270-217 Belo Horizonte, MG
Tel.: 34 99907-7074
mathfcastro@gmail.com

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