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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

RESENHAS

 

Carta ao pai, de Franz Kafka: analisada por Paulo Marchon

 

 

Sônia Eva Tucherman

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)

Correspondência

 

 

Autor: Paulo Marchon
Editora: Bookmakers, São Paulo, 2013, 204 p.1
Resenhado por: Sônia Eva Tucherman

 

 

Um colega psiquiatra me disse uma vez que gostaria muito de ter a chance de tratar o tão divulgado transtorno obsessivo-compulsivo do cantor Roberto Carlos, não por este ser uma celebridade, mas pelo desafio de um quadro rico de sintomas persistentes, resistentes a diversos tratamentos. Roberto Carlos só se apresenta usando azul e branco, não trabalha ou dá entrevistas para pessoas com roupa marrom ou preta, não diz certas palavras, chegando ao ponto de substituir a palavra mal, numa antiga canção sua, por bem, alterando totalmente o sentido da composição. Há, de fato, personagens que atiçam nosso impulso terapêutico, e o próprio Freud se lançou nessa aventura com Schreber e Leonardo da Vinci.

Para nosso gáudio, Paulo Marchon ousa pôr ninguém menos do que Franz Kafka no divã. Como psicanalista de larga experiência, sensível e respeitoso para com os sofrimentos humanos, entabula uma conversa com seu paciente em que utiliza linguagem coloquial, em estilo epistolar. Sem perder de vista conceitos psicanalíticos complexos, expõe seus pontos de vista com clareza. Sem julgamentos nem críticas, sem contundência nem complacência, assinala contradições, preconceitos, falhas, projeções, negações, sempre com a sinceridade que se exige de um psicanalista fiel à verdade na qual acredita. O autor nos avisa:

Devemos chamar a atenção para o fato de que estamos apenas apontando fantasias de Kafka, a maior parte delas, a nosso ver, inconscientes. Frisamos que não correspondem a atos, ou possíveis e prováveis ações. Quando aqui nos referimos a atos, eles foram contados pelo próprio Kafka ou extraídos de biografias altamente credenciadas. Seguimos sua Carta ao pai como se fosse uma associação livre de ideias. (p. 10)

Basicamente, o que Marchon faz é propor a Kafka uma nova visão de sua relação com o pai, maneiras diferentes de ver, acentuando que seus comentários são somente hipóteses, principalmente porque lhe falta o instrumento basal da clínica, a transferência.

Nas livrarias, o volume Carta ao pai, de Franz Kafka: analisada por Paulo Marchon poderia ser colocado na estante de biografias, na de psicanálise ou na de autoajuda, o que atesta o valor desta obra rica e de leitura indispensável para quem deseja saber mais sobre o mundo kafkiano, sobre psicanálise e, principalmente, sobre si mesmo.

Os Franz Kafkas, com pais à la Hermann Kafka, continuam por aí povoando o mundo. É possível que você, nosso Franz Kafka ou nosso Hermann Kafka do século XXI, lendo essa Carta ao pai e esses comentários, se exponha a ver outra possibilidade de vida. (p. 22)

Fica claro o objetivo de Marchon de proporcionar ao leitor a chance de compartilhar o divã com Franz Kafka, ao mesmo tempo que permite aos Hermanns ver de fora sua relação com o filho, como uma espécie de voyeur da análise do filho, recebendo por tabela interpretações para si.

Eis, portanto, a elogiável qualidade de autoajuda do livro. E considero, de fato, elogiável.

Há uma generalizada aversão a qualquer realização que, preconceituosamente, possa ser rotulada de autoajuda - gênero cujo sucesso atesta a ânsia do público de buscar auxílio na psicologia e na psicanálise - e, no entanto, deveria ser alvissareira a notícia de que as pessoas podem ajudar a si mesmas em suas dores e questões. Evidentemente, um sem-número de práticas - publicações, palestras, projetos etc. -, movidas principalmente pela cupidez, disputa um sôfrego mercado sem o mínimo de responsabilidade e ética. Evidentemente também, entre a ávida clientela há inúmeros sofrimentos e aflições que necessitam muito mais do que ponderação. Porém, ajudar alguém a ajudar a si próprio é, sem dúvida alguma, um princípio da psicanálise. (Tucherman, 2006, p. 281)

Em sua empreitada, Marchon continua a trilha da difusão da psicanálise, objetivo que vem perseguindo com sucesso há anos, seja através da fundação de instituições formadoras de profissionais, como a Escola de Psicoterapia e a Sociedade Psicanalítica de Fortaleza, seja através da distribuição ampla e generosa de seus conhecimentos para que o público leigo possa utilizá-los em seu cotidiano.

Com esta publicação, Marchon faz circular seu saber a fim de alcançar um objetivo transformador e, para isso, traduz o "psicanalês" para uma língua fácil de ser compreendida por qualquer leitor de língua portuguesa ou inglesa, já que nos brinda também com uma versão em inglês, sob o título The psychoanalysis of Franz Kafkas Letter to my father, analysed by Paulo Marchon. Dessa forma, ampliou-se o número de privilegiados que poderá ter acesso à obra.

Fiel ao seu estilo livre, bem-humorado e às vezes irreverente, presente também em seus textos acadêmicos, que nem por isso perdem em profundidade e consistência teórica, Paulo Marchon torna a leitura deste livro fácil e agradável do princípio ao fim. Vejamos um exemplo.

O tema é a impossibilidade, citada na Carta, de dar uma "simples guinada no volante", a qual, segundo Kafka, é a expectativa de seu pai. Marchon comenta:

Na realidade, na vida é assim: tudo se resume em dar ou não uma guinada no volante. O pobre coitado do ser humano, e aí estamos todos nós, Hermanns, Franzs, Paulos, todos degredados filhos de Eva, não tem outra alternativa a não ser dar ou não uma guinada no volante para ver se consegue se sair melhor do que antes neste vale de lágrimas. (p. 24)

Traz como exemplo os fumantes inveterados, que não deram a guinada no volante e persistem "apressados na fabricação do câncer e do próprio caixão". Aborda então a pulsão de morte, as forças mortíferas que precisam se atenuar para que se dê a tal guinada. "O melhor negócio é fazer das tripas coração e tocar para a frente, fazer o que deve ser feito, dar uma guinada no volante, senão estamos lascados" (p. 25).

Para os leitores que buscam saber mais sobre psicanálise, o livro de Marchon é um presente bem-vindo. Durante a leitura, é possível observar e aprender com o psicanalista, entender diversos conceitos teóricos - mesmo que o autor opte por não nomeá-los -, acompanhar a compreensão de diferentes mecanismos utilizados amiúde por pacientes em análise.

Por que tanto medo? Você mesmo vai dizer nessa carta que nunca houve agressão física, mas sim ameaças. Compreendo que as palavras doíam fundo. Não obstante, pergunto: por que tanto medo? Vamos tecer uma hipótese: não seria por causa da sua hostilidade ao pai? Essa hostilidade poderia levar você a ter medo do que poderia fazer com ele, ... medo de que ele passasse das ameaças às agressões físicas de fato? ... Outra hipótese seria a de que você, tendo muita hostilidade contra seu pai, ficasse com medo de que ele pudesse ter sentimentos com essa mesma potencialidade agressiva contra você. (pp. 23-24)

Assim, Marchon identifica e apresenta para seu paciente, Kafka, o mecanismo de identificação projetiva, caro a analistas como Melanie Klein e Bion. Ao longo do livro, vamos percebendo culpa persecutoria, negação, intelectualização, inveja, gratidão etc., sempre no mesmo tom de conversa afiada, em linguagem despretensiosa.

É evidente que não devemos tomar todos os comentários feitos pelo autor como sugestões de postura na clínica. Que fique claro que Marchon não se propõe a ensinar técnica psicanalítica. No entanto, quem se dedicar a ler o texto com esmero poderá apreender muito dos recursos utilizados em sessões de análise. Por exemplo, há uma observação perspicaz de que a palavra culpa é a única que Kafka sublinha em toda a Carta, sendo provavelmente a mais usada nela. É essa mesma atenção às minúcias, à repetição de palavras, ao tom de voz, essa mesma escuta cuidadosa, que se espera do analista em sua prática clínica.

Aqueles que encontrarem esta obra na estante de biografias ficarão exultantes com as informações garimpadas por Marchon numa impressionante quantidade de fontes pesquisadas. Há detalhes da vida cotidiana de Kafka, dados familiares importantes e descrições do cenário social e político da época; informes sobre salários, preços de aluguéis, honorários médicos e valores de diárias hospitalares; outra carta ao pai (anterior à famosa), o último bilhete aos pais, cartas de editores para o escritor, e tantas outras preciosidades que alçam este livro à categoria de ótima biografia de Franz Kafka.

Não posso deixar de mencionar a sólida formação intelectual de Paulo Marchon, um estudioso não somente de psicanálise, mas também de filosofia, e que além disso passeia com desenvoltura pela literatura, pela religião, pelas artes em geral e pela política. Sua intimidade com tantas áreas é visível na descontração e na informalidade com que faz citações, seja de obras clássicas, seja de obras contemporâneas.

Se nada do que escrevi antes foi suficiente para atiçar a curiosidade do leitor, lanço mão do título de alguns capítulos, o que por si só bastaria como amostra do que nos espera na leitura: "Rilke salvou a vida dando uma guinada no volante da Ferrari dele"; "Vem a primeira porta trancada. Vem mais outra. Mais outra. Enfim, centenas."; "Gago para o pai, declamador para o mundo e os palavrões de lamber os dedos. dos pés"; "O culpado não é o mordomo". São 20 capítulos, todos anunciados com bom humor e originalidade.

Recomendo este livro com todo o entusiasmo. Além dos aspectos que escolhi destacar, lembro que o próprio autor, humildemente, considerou ser talvez seu único mérito o fato de acreditar no que está escrevendo. Temos, portanto, uma obra baseada na sinceridade, o que a torna um valoroso representante da melhor psicanálise.

 

Referências

Tucherman, S. E. (2006). Psicanálise e ação social: programa radiofônico Escutar e Pensar. Trieb, 5(2),277-286.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sônia Eva Tucherman
Rua Xavier da Silveira, 118/1001
22061-010 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 2548-3977 | 21 98529-3999
soniaeva@globo.com

 

 

1 Também disponível em versão digital.

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