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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019

 

RESENHAS

 

A dor: originalidade de uma teoria freudiana

 

 

Ronis Magdaleno Júnior

Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autora: Annie Aubert
Tradutora: Carmen Lucia M. V. de Oliveira
Editora: Escuta, São Paulo, 2017, 248 p.
Resenhado por: Ronis Magdaleno Júnior

 

 

A dor: originalidade de uma teoria freudiana explora um tema que, segundo a autora, encontra-se pouco desenvolvido na teoria psicanalítica freudiana, aparecendo, desaparecendo e voltando a aparecer durante sua construção teórica, mas sempre de modo fragmentário e pouco consistente, confundindo-se com outros conceitos psicanalíticos, como angústia, desprazer, masoquismo e, mesmo, pulsão. Fundante das primeiras teorizações de Freud, a dor, num segundo momento da construção teórica freudiana, passa por um processo de apagamento, que Annie Aubert qualifica como recalque, voltando a surgir somente a partir de 1920, com a introdução dos conceitos de pulsão de morte e masoquismo primário. Para a autora, a pesquisa freudiana da dor é movida por uma relação implícita de Freud com o seu próprio sofrimento.

Ainda que o texto se inicie apontando uma necessidade clínica, tratase de um trabalho de fundamentação teórica do campo da dor, que se apoia numa leitura minuciosa do texto freudiano, explorando também o trabalho de autores pós-freudianos, especialmente Laplanche e Pontalis. A leitura cuidadosa da obra de Freud e as articulações que Aubert se permite fazer dentro dela por vezes tornam o texto denso e de difícil compreensão, mas a autora sempre mantém muito claro seu objetivo: fazer surgir dos textos freudianos o percurso de construção teórica de um tema nem sempre claramente anunciado, a dor. A questão norteadora da tese apresentada é assim formulada: "Pode a noção de dor aceder ao status de conceito psicanalítico?" (p. 61).

A inquietação que justifica o trabalho da autora se apoia neste paradoxo: "Como dar conta de um fenômeno capaz de suscitar uma demanda de tratamento e de condenar seu sucesso" (p. 24), sendo a dor, ao mesmo tempo, estimulante indispensável à análise e fator de bloqueio do processo?

A primeira dificuldade apontada para o estudo da dor é a que esta opõe "a qualquer esforço de conceitualização" (p. 25). A fim de contorná-la, a autora mostra, num capítulo preliminar, as principais escolas filosóficas e médicas que se ocuparam do problema que a dor apresenta para se deixar compreender e apreender. Em meio a essa discussão, introduz outro eixo que guiará seu percurso: a ideia de um Freud estoico, em constante luta com sua própria dor, desde as dores psíquicas, que poderiam ser combatidas pelo uso da cocaína, até as fases finais de sua luta resignada contra o câncer, que o levou a um embate muito pessoal com a dor.

Como recurso metodológico, a autora divide a trajetória freudiana em cinco momentos: o primeiro, de emergência sintomática, vai de 1890 a 1895; o segundo, de eclipse, vai de 1900 a 1905; o terceiro, de retorno, vai de 1914 a 1919; o quarto, de conclusão, vai de 1920 a 1926; o quinto, de relação entre dor e pensamento, no ano de 1929.

O primeiro momento admite uma formulação concisa: "Atual e excessiva, a dor faz efração no interior de um aparelho psíquico do qual altera a organização" (p. 218). A dor, enquanto experiência de dor, ganha uma função estruturante do aparelho psíquico. Esse momento pode ser dividido em dois períodos. No primeiro, a dor aparece em negativo, e Freud se ocupa cientificamente da aplicação médica da cocaína, juntando seu mecanismo fisiológico e suas relações com o traumatismo, o ideal e o sentimento de culpa.

No segundo período desse primeiro momento a dor passa a ter relação com a questão do desprazer, que norteará todo o trabalho posterior de Freud. A dor apresenta-se, a partir da experiência parisiense com Charcot, não mais como modelo, mas como questão: é do aprendizado sobre o traumatismo que Freud vai elaborar um conceito psicanalítico de dor. A questão central passa a ser a transformação da energia psíquica, a dor psíquica, em energia somática. É pela autoanálise, porém, que Freud esbarra na insistência de um acontecimento traumático com propriedade funcional - "a primeira fonte de dor que não chega à consciência" (p. 99) -, diferentemente do entendimento de Charcot, que propunha uma lesão orgânica na base do fenômeno traumático histerogênico. Assim como a angústia, a dor decorreria de uma alquimia tóxica seguida de uma intoxicação sexual, o que nesse momento torna difícil a distinção teórica entre dor, desprazer e angústia. Trata-se da dor erotizada, e seu corolário de anestesia, de Emmy von N., Elisabeth von R. e Miss Lucy. A partir desse campo de observação, Freud, "explorador do espírito, vai utilizar a dor não mais como sinal de uma patologia, mas como 'bússola' para o espírito" (p. 105). A dor seria decorrente de um conflito psíquico, sexual, sendo o símbolo mnêmico de penosas emoções psíquicas: "A dor somática surge no lugar da dor moral provocada por uma representação erótica inconciliável" (p. 109).

É nesse período que aparece também, a partir da compreensão da melancolia como hemorragia, a noção de dor como decorrente de uma lacuna, um fUro no tecido das representações. O abandono, pelos neurônios, de um investimento libidinal "provoca uma dor, visto que a dissolução das associações é sempre coisa penosa" (p. 112), fazendo fracassar a organização do sistema neuronal. Além disso, essa perda provoca um contrainvestimento, um excesso que é também penoso. Desse modo, o processo torna-se duplamente penoso, pela hemorragia que acarreta e pelo excesso do contrainvestimento.

Observa-se que, nesse primeiro momento, a dor é apenas uma quantidade de energia; ela não é consciente, mas foi "necessariamente consciente como vivido corporal" (p. 218) anteriormente, e se presta, pelo recalque de suas representações, a diversas transformações na neurose e na constituição do aparelho psíquico.

Essa derivação do modelo biológico, apoiado na experiência dolorosa, acompanhará sempre o desenvolvimento do modelo psicanalítico e, segundo Laplanche, se apresentará até o final de "três maneiras no freudismo: como origem, como modelo e, enfim, esperança, como perspectiva de futuro e mais precisamente como perspectiva terapêutica" (p. 79).

O segundo momento, que vai de 1900 a 1905, é um tempo de eclipse, no qual a questão da dor desaparece da psicanálise, cedendo lugar ao desprazer enquanto conceito metapsicológico. Num modelo como o desenvolvido em A interpretação dos sonhos, que fundamenta o aparelho psíquico na evitação de qualquer aumento de tensão, a dor, enquanto experiência, seria inconciliável. "Com o estudo dos sonhos, o interesse pela dor se apaga em benefício do desprazer" (p. 123). Laplanche chega mesmo a considerar esse período como de recalcamento do lugar da dor no pensamento freudiano. A dor, como localização e quantidade, e a acumulação de energia passam a ser entendidas como angústia. O doloroso no sonho é aquilo que rompe a censura, expressando-se por angústia, que passa a ter a função que era anteriormente da dor e que provoca a defesa. O modelo do afeto não é mais a dor, mas a angústia.

Contudo, a autora entende que a questão da dor aparecerá nesse segundo momento a propósito de lembranças esquecidas, relacionadas com a perda, com a morte, e que retomam do modelo anterior o conceito de hemorragia psíquica, a dor decorrente de um buraco na rede de representações. Esse percurso teórico leva a conceber a ideia de uma lacuna primeira, que se experimenta como dor e que fundamenta o esforço teórico de Freud, o qual chega à conclusão de que as impressões dolorosas se constituem como "bússola para orientar a análise do sonho" (p. 136). Entretanto, as duas concepções fortes que se consolidam nesse período são a ausência de sofrimento das histéricas e a inexistência de um masoquismo primário, as quais só serão revistas, sobretudo essa última, após a introdução do conceito de pulsão de morte.

O terceiro momento, que vai de 1914 a 1919, é de retorno da dor como conceito norteador da construção do edifício teórico freudiano, entendida como "ocorrência que abre para o estabelecimento de limites" (p. 221). É um período de retomada das formulações teóricas do "Projeto para uma psicologia científica", dos primeiros textos psicanalíticos e dos Estudos sobre a histeria, nos quais a dor é tratada em seu aspecto orgânico, físico e moral, passando a ser o conceito-chave para a elaboração do eu como instância. A dor somática torna-se o paradigma do narcisismo, sendo convocada para compreender a gênese da vida psíquica, estando na origem da imagem do próprio corpo.

Nesse período não há prazer na dor. O prazer masoquista é consequência do aumento da excitação sexual que qualquer excitação provoca, tendo, por causa desse suplemento sexual, uma conotação agradável. A dor tem uma origem tóxica, sendo portanto classificada no campo das neuroses atuais, não pertencendo à vida psíquica, não se prestando ao estudo psicanalítico, mas ao estudo médico-psicológico. Apesar disso, segundo a autora, a dor é reintroduzida no campo psicanalítico como conceito-limite, que reatualiza o interesse pelo conceito de apoio, sendo mesmo definida como pseudopulsão, um excesso cuja finalidade não é a obtenção de prazer e que, diferentemente da fome, não pertence ao registro da autoconservação. A dor participa da sexualidade pelo movimento reflexo que induz, sem pertencer ao efetivo registro do sexual. Daí derivaria o prazer secundário que acompanha o desprazer que ela provoca. O gozo da dor decorre da excitação sexual que acompanha o masoquismo, e não dela própria.

Nesse momento da construção do pensamento freudiano, apresenta-se a questão econômica de saber qual seria a atividade psíquica que permitiria a descarga desse excesso. É nessa esteira que a dor participará, como paradigma do narcisismo, da elaboração do conceito de eu como instância, mas será necessário aguardar 1920 para que esse problema econômico seja resolvido, pois, por detrás do problema econômico da dor orgânica, está encoberto um questionamento sobre a maneira de compreender um tempo destruidor. Assim, nesse terceiro momento, a dor, como pseudopulsão, encontra seu lugar tópico, que a distingue do desprazer, e sua dimensão dinâmica, pela qual a intervenção de uma clivagem, a divisão do aparelho psíquico, precede a possibilidade de um conflito, como demonstrado no estudo da melancolia. Contudo, permanece aberto o problema econômico da dor, sendo possível sua resolução somente por meio de um efeito tóxico ou de um desvio do psíquico.

A autora observa ainda que é nesse terceiro momento que aumentam, na obra de Freud, as manifestações associadas ao vivido doloroso, que deixa de ser apenas causa de inibição intelectual e confusão, e passa a ser estímulo para o pensar, para a construção da fantasia, para a criação poética e para o saber sobre si mesmo.

O quarto momento, que compreende os anos de 1920 a 1926, é considerado como de conclusão da teoria freudiana da dor, e coincide com a virada de 1920, caracterizada pela última teoria pulsional, pela elaboração da segunda tópica e pela reformulação da teoria da angústia. "Traumática, excessiva e atual, como tal permanece a dor na década de 1920" (p. 224). Por meio da concepção de traumatismo, a questão da dor é retomada, na sua versão passiva, da efração, e ativa, como reação defensiva. O traumatismo e a dor são dois fenômenos distintos. Aparece o adendo C de Inibição, sintoma e angústia, que é o único texto freudiano que trata especificamente do problema da dor. A reação dolorosa, como processo de ligação, é um ato preparatório que assegura a dominação do princípio de prazer, e essa preparação decorre da angústia, que possibilita o domínio retroativo da excitação, evitando o efeito traumático. É nesse sentido que a reação dolorosa é concebida como modo de defesa narcísica.

Nesse momento aparece mais claramente a discussão sobre a possibilidade de a dor ser inconsciente e participar do processo de estruturação do aparelho psíquico, especificamente do eu. A princípio, é a dor, enquanto percepção externa e enquanto afeto, associando-se a representações, que constrói a ideia do próprio corpo e de seus órgãos, sendo uma forma apurada de um sentimento de ser, essencial na emergência da consciência de um eu corporal. É através da dor que "o eu se pensa" (p. 177).

Entretanto, é a elucidação do problema econômico da dor, que havia ficado obscuro até agora, que desembocará na concepção da pulsão de morte e na reformulação da teoria da angústia. A distinção entre dor e angústia é feita claramente: a dor pode se confundir com a angústia, mas ela não é angústia. "A angústia poderia ser pensada como a dor do eu, mas o desprazer da dor não é a angústia" (p. 186). A dor seria, nesse contexto, uma qualidade ligada a um sobreinvestimento ou ao contrainvestimento, uma imobilização energética, temporal, sem fim. Diferentemente da dor psíquica, que envolve um investimento de objeto, a dor corporal é um investimento narcísico.

Esse primeiro aspecto, a dor psíquica, é explorado no adendo C, no qual Freud aproxima e distingue "três tipos de reação afetiva em face da perda do objeto: angústia, dor e luto" (p. 186). Nesse contexto, conclui que a dor é a reação própria a perda do objeto, a angústia é a reação ao perigo que comporta essa perda e a reação deslocada ao perigo da própria perda do objeto" (p. 187). No luto, a dor se deve a energia imobilizada pela necessidade de sobreinvestimento, ao esforço de desligamento e a percepção da ausência do outro. A dor se define agora pelo caráter contínuo do sobreinvestimento do representante psíquico no lugar do corpo dolorido ou do representante do objeto perdido. Esse sobreinvestimento é a característica comum a dor psíquica e a dor somática.

Um quinto momento, que pode ser localizado em 1929, é o desenvolvimento de uma linha teórica que sustenta que a mobilização das energias imobilizadas pela dor deve ser procurada nos caminhos do pensamento. O texto de 1920 traz alguns elementos para propor um trabalho da dor, sendo um dos modos de resolução da dor o mecanismo da distração, pelo qual a dor se dissiparia mesmo sem ter acesso à consciência, percurso que não foi desenvolvido posteriormente por Freud. Outro mecanismo de resolução da dor, associado ao esforço de pensar, é o desvio, que aparece inicialmente em "Luto e melancolia", de 1915, e que intervém entre a ligação dolorosa e o trabalho de luto, sendo um esforço de consolidação narcísica do eu antes de ser efetuada a separação do objeto. Esse desvio administra o desprazer da dor.

A ideia de pensamento em sofrimento se impõe, mas sobressai nos textos finais de Freud, já vitimado pelas dores somáticas impostas pelo câncer que o acometeu, um funcionamento defensivo, que considera uma clivagem do eu como recurso do aparelho psíquico quando confrontado com a dor. No entanto, abstrair-se do sofrimento físico seria da ordem da recusa, que a psicopatologia freudiana atribui à psicose. O limite, contudo, é tênue, sendo "o paradoxo da dor [ela] ser ao mesmo tempo o que relança a criação e o que inibe ou que mostra as insuficiências do exercício de pensar" (p. 230).

 

 

Correspondência:
Ronis Magdaleno Júnior
R. Padre Almeida, 515/14, Cambuí
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