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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo jul./set. 2019

 

EDITORIAL

 

Palavra e verdade

 

 

Marina MassiI; Leda Maria Codeço BaroneII

IEditora
IIEditora associada

Correspondência

 

 

Julia Kristeva abre este número com um artigo sobre o feminino, pode parecer fora de lugar, mas ao contrário, Kristeva nos mostra quando um conceito, em vez de se esvaziar, pode se diversificar de novos significados calcados num processo dramático e radical de transformação da realidade sócio-histórica.

A preparação de cada número da RBP é precedida por um intenso trabalho de reflexão sobre os temas candentes de nossa realidade, os quais afetam nosso ofício de psicanalista. Mediante um brainstorm, procuramos ser tocados por eles, com o intuito de fazer surgir algo que nos interpele e exija nosso debruçar sobre ele, em busca de uma abertura e um aprofundamento capazes de incidir sobre a clínica, a teoria e o método da psicanálise. Foi dessa maneira que surgiu o tema deste número: Palavra e verdade.

Em nossas discussões, consideramos que o tema poderia ser explorado por diferentes prismas: da filosofia, da ética, da prática psicanalítica, entre outros. Tomamos dois pontos como centrais em nossas discussões. O primeiro foi o fato de a matéria com a qual o analista trabalha ser a palavra - tanto a do analisando como a do próprio analista. O segundo foi o esvaziamento da palavra, seu esgarçamento observado nos dias atuais, quando as fake news ganham destaque nas redes sociais, influenciando e obstruindo o pensamento crítico sobre a realidade.

A carta-convite deste número contemplou parte das discussões da equipe editorial para que o leitor e colaborador pudesse captar a proposta temática a ser debatida. É interessante observar o que estamos publicando, como uma amostra dos trabalhos realizados por colegas no país.

A primeira menção à importância da palavra em Freud encontra-se em "Tratamento psíquico", de 1890, em que o autor aponta para o poder da palavra, quando disse:

As palavras são o mais importante meio pelo qual um homem busca influenciar outro; as palavras são um bom método de produzir mudanças mentais na pessoa a quem são dirigidas. Nada mais existe de enigmático, portanto, na afirmativa de que a mágica das palavras pode eliminar os sintomas de doenças, e especialmente daquelas que se fundam em estados mentais. ([1890]1905/1972, p. 306)

Podemos observar a extensão da importância da palavra e a preocupação de Freud com o tema quando reconhece, numa conferência no ano de 1916, que, na formação em medicina, os alunos estão acostumados a ver coisas - a contração de um músculo, o precipitado de uma reação química, uma preparação anatômica... -, enquanto

na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou de rejeição que ele, analista, provoca no paciente. (1916/1985b, p. 29)

A seguir, Freud trata das desconfianças de amigos e parentes de doentes submetidos à análise, quando perguntam se não poderia ser feito algo pela doença que não seja simplesmente falar. Ele completa seu argumento dizendo:

As palavras, originalmente, eram mágicas, e até os dias atuais conservam muito de seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra pessoa jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e a decisão deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso da palavra na psicoterapia. (p. 29)

Essa maneira de considerar o poder da palavra está em concordância com o pensamento de Walter Benjamin, que considera o tema da origem da linguagem, da essência da linguagem, algo ligado a seu caráter mágico. Para o autor, apesar das variadas formas como a linguagem possa mostrar-se eficaz, "ela o será não através da mediação de conteúdos, mas antes através do mais puro abrir de sua dignidade e de sua essência" (citado por Seligmann-Silva, 1999, p. 79).

Benjamin elaborou sua teoria da linguagem em diálogo com pensadores alemães, em especial com os poetas e críticos Friedrich Schlegel e Novalis. Em sua abordagem, a linguagem foi tomada não tanto numa dimensão instrumental, mas numa dimensão considerada como mágica ou performativa, quando dizer é fazer, ou seja, quando a palavra tem o poder de interferir na realidade.

Num pequeno mas potente texto, "Narrativa e cura", Benjamin relata a experiência de uma mãe à beira do leito de um filho enfermo. Ela fala, narra histórias, e Benjamin se interroga: "A narrativa não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz?" (2002, p. 115). O mesmo poder da palavra encontramos na observação de Freud de um menino com medo do escuro. Reconhecendo que o medo do escuro e da solidão está relacionado à ausência da pessoa amada que cuida da criança (a mãe ou substituta), Freud nos conta ter observado uma criança com medo do escuro dizer em voz alta: "Mas fala comigo, titia. Estou com medo!". E a tia: "Por quê? De que adianta isso? Tu nem estás me vendo". Ao que a criança responde: "Se alguém fala, fica mais claro" (1917/1985a, p. 474).

Na concepção benjaminiana, a linguagem é a essência espiritual do homem. Assim, "ele não pode comunicar-se através dela, mas sim nela. A suma dessa totalidade intensiva da linguagem como essência espiritual é o nome. O homem é aquele que denomina. Daí reconhecer-se que a linguagem pura fala a partir dele" (citado por Seligmann-Silva, 1999, p. 81)

A questão da verdade surge de um estranhamento em relação à dimensão que as fake news, presentes nas redes sociais, ganharam no mundo político e na vida cotidiana de todos nós. Trata-se de uma forma contemporânea de comunicação na esfera pública e privada, naturalmente muito potencializada pelos meios de divulgação de massa. Encaradas como expressão sintomática de nossa época, as fake news podem ser consideradas representantes da qualidade dos discursos que circulam socialmente, confundindo o pensamento e o julgamento da realidade.

As observações do filósofo italiano Luigi Pareyson já prenunciavam essa situação em 1971, num tempo em que ainda não tínhamos a tecnologia avançada de hoje. Segundo o autor, o exagero dos mass media e da indústria cultural decorrente deles levou a uma escrita de "consumo rápido e imediato, intolerante com as pausas requeridas pela releitura e reflexão" (2005, p. 1). No mesmo texto, Pareyson faz uma defesa da filosofia, de sua extrema necessidade. Propõe que ela não pode ser retomada "sem que se restitua ao pensamento seu princípio genuíno, que é a verdade". Critica todas as tentativas de reduzir o pensamento a algo "histórico e pragmático, técnico e instrumental, empírico e ideológico" (p. 2). De acordo com ele, o pensamento verdadeiro, aquele digno desse nome,

é antes de tudo pensamento do ser, e disso deriva sua virtualidade prática e sua eficácia histórica: por um lado unidade originária de teoria e prática ... por outro lado pensamento autêntico, preocupado com aquilo que é seu princípio e sua origem, isto é, com sua radicação ontológica e com seu caráter revelativo, e, por isso mesmo, capaz de dirigir e fecundar a experiência e de dominar e transformar a situação. (p. 3)

O autor ainda diz que a verdade não pode ser entendida num sentido meramente objetivo ou meta-histórico. Isso porque

ela não é objeto, mas origem do pensamento, não é resultado, mas princípio da razão, não é conteúdo, mas fonte dos conteúdos; por outro lado, ela só se oferece no interior de uma interpretação histórica e pessoal que já a formula de determinado modo, com o qual se identifica a cada vez, sem nele se exaurir ou a ele se reduzir. (pp. 3-4)

Pareyson observa que há uma solidariedade entre pessoa e verdade. Com isso, o autor sustenta a essência genuína do conceito de interpretação. Com base nesse conceito de interpretação, propõe distinguir pensamento expressivo de pensamento revelativo. Aprofundando a diferença entre esses dois modos de pensamento - o pensamento que é mero produto histórico e o pensamento que manifesta a verdade -, o autor afirma que tal distinção não diz respeito apenas à filosofia, mas constitui o dilema que o homem enfrenta seja qual for sua atividade: "O homem deve escolher entre ser história e ter história ... entre renunciar à verdade ou dar uma revelação irrepetível dela". Isso vai depender da forma como o homem livremente prospecta a própria situação. Ele pode prospectar "como simples confim da existência ou como abertura para o ser, como limitação inevitável e fatal ou como via de acesso à verdade" (p. 9).

Para o autor, "no pensamento revelativo, a palavra revela a verdade no mesmo ato em que exprime a pessoa e seu tempo, e vice-versa". No entanto, tudo se transforma quando a liberdade para de reger o vínculo entre verdade e pessoa:

A verdade desaparece, deixando o pensamento vazio e desancorado, desaparecendo também a pessoa, reduzida a mera situação histórica. ... A natureza da palavra se degenera e se fragmenta: de um lado, um discurso cuja racionalidade vazia só se presta a uma utilização técnica e instrumental; do outro, mascarado pelo discurso explícito, o verdadeiro significado deste, isto é, a expressão do tempo. (pp. 12-13)

Neste número, contamos com o trabalho de Luiz Alfredo Garcia-Roza "A função significativa da palavra: Lacan e Santo Agostinho", retirado de seu livro Palavra e verdade, publicado pela editora Zahar. Nesse texto, o autor retoma a proposta agostiniana de que a verdade não habita a palavra, mas que é a verdade, através de nossa interioridade, que possibilita a palavra:

Ao articular a palavra com a interioridade e com a verdade, Agostinho remete-a também simultaneamente ao registro do erro, do equívoco, da mentira. E é por referência a esse registro que podemos situar a questão do sujeito. É isso que interessa particularmente a Lacan em sua análise.

É com prazer que contamos com essa colaboração, e por isso gostaríamos de agradecer a Livia Garcia-Roza a generosa autorização para a publicação, bem como à editora Zahar.

Por último, queremos informar a nossos leitores e colaboradores que a RBP alcançou nota B1 na última avaliação da Capes.

Boa leitura!

 

Referências

Benjamin, W. (2002). Narrativa e cura. Jornal de Psicanálise, 35(64-65),115-116.         [ Links ]

Freud, S. (1972). Tratamento psíquico. Fragmento da análise de um caso de histeria. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7, pp. 297-316). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em [1890]1905)        [ Links ]

Freud, S. (1985a). A ansiedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 16, pp. 457-479). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Freud, S. (1985b). Parapraxias. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 15, pp. 27-101). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916)        [ Links ]

Pareyson, L. (2005). Verdade e interpretação (M. H. N. Garcez & S. N. Abdo, Trads.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Seligmann-Silva, M. (1999). Ler o livro do mundo. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marina Massi
marinamassieditora@rbp.org.br

Leda Maria Codeço Barone
ledabarone@uol.com.br

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