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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

PALAVRA E VERDADE

 

A dor que atravessa a palavra na verdade do abuso sexual e na alienação parental

 

The pain not expressed in words, caused by sexual abuse and parental alienation

 

El dolor que atraviesa la palabra en la verdad del abuso sexual y en la alienación parental

 

La douleur qui transperce le mot dans la vérité de l'abus sexuel et dans l'aliénation parentale

 

 

Cassandra Pereira França

Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Correspondência

 

 


RESUMO

A demanda de análise infantil costuma advir, em geral, das formações sintomatológicas produzidas diante das angústias castrativas vivenciadas pelas crianças em face das regras impostas pela cultura - os chamados traumatismos estruturantes, essenciais à constituição psíquica. Não obstante, a autora pretende mostrar ao leitor, através de vinhetas clínicas, que os analistas precisam dar atenção especial àqueles casos em que é preciso lidar com os efeitos dos traumatismos desestruturantes que ocorrem no abuso sexual ou na alienação parental. Essas situações, provocadas por adultos incapazes de controlar seus impulsos, deixam marcas irrepresentáveis inscritas no corpo da criança, e também sequelas irreversíveis em seu narcisismo e em sua autoestima. Tais atuações, por parte daqueles que deveriam se responsabilizar pela proteção da criança, acabam obstaculizando a possibilidade de representação psíquica e os processos de simbolização do aparelho psíquico em formação, implantando assim o risco de a criança cair em um estado de alienação mental.

Palavras-chave: traumatismo, alienação parental, abuso sexual, palavra, análise de crianças


ABSTRACT

The strong reactions of children to "structuring trauma" (exogenous factors that, despite interference with the psychic apparatus, are essential to their constitution) create a de-mand for analysis. However, there are "disruptive traumas" that hinder the possibility of psy-chic representation and symbolization processes such as sexual abuse and parental alienation. The former is capable of leaving scars inscribed on the body that cannot be represented and irreversible consequences in the subject's narcissism and self-esteem. However, the war be-tween the parental couple (when involving false accusations of sexual abuse) has the potential for even greater psychic devastation, as it can provoke a double denial" and steal the ambigu-ous meaning of the child's words and imprison them in a single meaning. Thus, the child discovers, with great pain, that language can translate both the truth and the false, causing him or her to lose "trust in oneself " and fall into a state of mental alienation.

Keywords: trauma, parental alienation, sexual abuse, word, child analysis


RESUMEN

Las fuertes reacciones de los niños ante el "trauma estructurante" (factores exógenos que, a pesar de la interferencia con el aparato psíquico, son esenciales para su constitución), crean una demanda de análisis. Sin embargo, existen "traumas destructivos" que obstaculizan la posibilidad de representación psíquica y procesos de simbolización como el abuso sexual y la alienación parental. El primero es capaz de dejar marcas irrepresentables inscritas en el cuerpo y secuelas irreversibles en el narcisismo y la autoestima del sujeto. Sin embargo, la guerra entre la pareja parental (cuando involucra acusaciones falsas de abuso sexual) tiene el potencial de una devastación psíquica aún mayor, ya que además de provocar una "doble negación", puede robar el significado ambiguo de las palabras del niño y las encarcela en la univocidad. Así el niño descubre, con gran dolor, que el lenguaje puede traducir tanto lo verdadero como lo falso, lo que lleva a la pérdida de la seguridad en sí mismo y a un estado de alienación mental.

Palabras clave: traumatismo, alienación parental, abuso sexual, palabra, análisis de niños


RÉSUMÉ

Les fortes réactions des enfants aux "traumatismes structurants" (des facteurs exogènes qui, malgré leur interférence sur l'appareil psychique, sont essentiels à leur constitution), créent une demande d'analyse. Cependant, il y a des "traumatismes qui déstructurent" tels que les abus sexuels et l'aliénation parentale, lesquels produisent des obstacles à la possibilité de représentations psychiques et aux symbolisations. Le premier est capable de laisser des marques non représentables inscrites sur le corps et des séquelles irréversibles dans le narcissisme et dans l'estime de soi du sujet. Cependant, la guerre entre la paire parentale (lorsqu'elle implique de fausses accusations d'abus sexuel) a un potentiel de dévastation psychique encore plus grand, car outre le fait de provoquer un "double démenti", elle peut dérober le sens ambigu des mots de l'enfant et les incarcérer dans l'univocité. Ainsi, l'enfant découvre, avec beaucoup de douleur, que le langage peut traduire aussi bien le vrai que le faux, ce qui le mène à perdre la "certitude de soi" et à tomber dans un état d'aliénation mentale.

Mots-clés: traumatisme, aliénation parentale, abus sexuel, mot, analyse des enfants


 

 

Os adultos costumam ter uma noção muito vaga do mundo interno e do funcionamento psíquico de uma criança, julgando que elas ficam alheias às coisas que se passam em seu entorno. Ledo engano. As crianças são muito perspicazes e nada lhes passa desapercebido - com seu possante radar, captam todos os elementos de que precisam para complementar as mais variadas fantasias de que se ocupam na primeira infância. São na verdade pequenos filósofos em busca do sentido da vida e da natureza humana. E quando empreendem um processo de análise, o fazem com tamanha circunspecção, que a produtividade clínica fica garantida. Entretanto, da profundidade atingida por um processo de análise na infância pouco sabem os adultos, até mesmo aqueles que se dedicam a analisar outros adultos. No intuito de circunscrever a problemática na qual pretendo envolver o leitor, convidando-o a tomar ciência da intensidade de sofrimento psíquico que pode violar a sensibilidade de muitas crianças, marcando-as a ferro e fogo por toda a vida, farei alguns cotejamentos clínicos extraídos de minha longa experiência como supervisora/pesquisadora do Projeto de Extensão Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual (Cavas/UFMG), implantado em 2005 na clínica social do Departamento de Psicologia, e também me servirei da experiência clínica de alguns colegas de ofício. A escolha do material clínico ilustrativo foi feita obedecendo-se a duas restrições: a de representar, sinteticamente, vivências de um grande número de pacientes, que guardam entre si certa semelhança, e a de ser possível trabalhar os conteúdos preservando-se a identidade dos pacientes.

 

Cena 1

Traumatismo estruturante

Certa vez, na antessala do consultório, dois pacientes ansiosos e apressados ficaram frente a frente, a um palmo de distância. Um saía de modo afoito de sua sessão e o outro chegava. Seus olhares, que naturalmente não se cruzariam, devido a alinhamentos muito distintos no horizonte, se buscaram. Parados, em pé e com grande assombro, durante longos minutos se entreolharam, cada um medindo o outro de alto a baixo. Ela, para ver a grandeza dele, erguia o pescoço ao máximo. Ele encaixava seu queixo no peito para ver sua pequenez. Ela se esgueirou e saiu correndo. Ele entrou no consultório e, em meio a uma gargalhada estrondosa, questionou: "Doutora, não é possível que esse toco de gente tenha problema! Se ela tiver, eu vou acabar de crer que eu vim mesmo com 75 anos de atraso!" Poucos dias depois, ela, com seus quase 3 anos de idade, entrou no consultório e, com as mãos na cintura e muito brava (como quem toma satisfação), perguntou: "Cassandra, o que aquele vovô veio fazer aqui?"

Pois bem, caberia mesmo ponderar, em consonância com o espanto deles, que é bem provável que um tenha vindo para análise bem tarde e o outro bem cedo. Comecemos por responder à pergunta dele: o que levaria uma criança tão pequena a ter demanda de análise? Essa pergunta, por si só, já evoca o contraponto: demanda da criança ou dos pais? Em inúmeros casos, sem sombra de dúvida, a demanda é dos pais; em outros, as demandas se superpõem. Mas na imensa maioria das vezes, quando chega a ser levada a um analista, a criança tem sim uma demanda de análise, o que nos leva a defender a ideia de que

a criança, como qualquer outra subjetividade, a partir do momento em que é inserida no registro simbólico por intermédio da linguagem, pode ser considerada um analisante de pleno direito, por estar referida não só a um tempo progressivo (de desenvolvimento) como a um tempo de après-coup (nachtraglich freudiano), pelo qual sempre haverá anterioridade de um conflito em relação à situação analítica. (Zornig, 2008, p. 14)

De modo geral, pode-se afirmar que as crianças muito pequenas costumam parar na análise principalmente pelas fortes reações que expressam ao longo dos processos de traumatismos estruturantes, assim chamados os fatores exógenos que, apesar da interferência no aparelho psíquico, são essenciais a sua estruturação - tanto no que diz respeito à construção das paredes egoicas e à representação da alteridade quanto no que se refere ao árduo trabalho de elaboração dos limites que regem nossa existência no mundo -, processos acompanhados de angústias castrativas, cuja intensidade denunciará o peso retumbante que tem, para cada sujeito, a aceitação das regras anônimas impostas pela cultura. A dor desses tempos inaugurais bem a conhece o analista de crianças, que, assistindo de camarote à constituição da "neurose infantil", vai reencontrá-la na cena analítica dos adultos com outras roupagens fantasmáticas, reeditadas na relação transferencial e obedecendo aos desígnios da compulsão à repetição.

Entretanto, o assunto de que ora se quer ocupar diz respeito àqueles traumatismos que provocam efeitos devastadores na constituição psíquica da criança, deixando sequelas irreversíveis no narcisismo e na autoestima. São os traumatismos desestruturantes, os quais apresentam questões contundentes, que merecem a atenção daqueles que estão se dispondo a garimpar ainda mais a obra de Sándor Ferenczi em busca de respostas para os desafios clínicos da contemporaneidade.

 

Cena 2

Traumatismo desestruturante: o abuso sexual infantil

Quando eu tinha 5 anos de idade, eu tinha uma bicicletinha. Eu sabia que não podia descer as ladeiras da minha cidade. Mas eu fui até o ponto mais alto do morro. Fiquei lá olhando o mar, o mar de Minas, o mar de montanhas... Eu olhei o morro. o morro. eu morro. e soltei o meu corpo. Criança se mata? Eu acho que morri! Só fui acordar dentro da Santa Casa. Só lembro de mim deitada na cama, toda arrebentada, toda ralada. Ainda hoje tenho essas marcas. Havia um cortinado, para que nenhum mosquito me encostasse. Mas de que adiantava? Ele ia lá me visitar... Era o que mais tempo tinha para ficar. Eu perdi todas as minhas amigas de infância. Nunca entendi isso.

Quando a minha filha tinha 3 anos e foi fazer xixi, ela disse que estava ardendo, e eu falei que ia buscar a pomada para passar. Então ela me disse: "Não é isso, mamãe, não é por causa do xixi. É que quando ele fica passando o dedo em mim, sempre dói depois para fazer xixi". Nessa hora, tudo voltou! Mas dessa vez eu tive forças para denunciá-lo. Não me importei com o estrago que ia causar na minha família. Reuni todos os sobrinhos e contei tudo! Aí eu entendi por que eu tinha perdido todas as minhas amigas. Ele havia feito o mesmo com todas as crianças com que ele brincava.

Abrimos um processo contra ele, muitos sobrinhos foram depor. Eu poupei os meus pais, pois já eram idosos, e ele era como um filho para eles. Mas sabe o que ele fez? Arrolou os meus pais na justiça para testemunharem que ele era uma boa pessoa. Eles foram intimados. Todos na cidade ficaram sabendo de tudo. Meu pai foi parar no hospital, e quando ficou a sós comigo no leito do hospital, entre lágrimas, disse: "Minha filha, onde eu estava que não vi nada disso? Onde eu estava que não te protegi?". Eu morri, de novo. A dor do meu pai acamado me fazia sentir a mesma dor da minha sujeira, toda a vergonha, porque eu tinha gostado do que aquele crápula fazia. E sabe o que foi que a minha mãe falou? "Você não tem vergonha de ter me exposto para a cidade toda? Agora estão todos comentando!" Foi isso o que disse aquela ordinária!

Nesse depoimento emocionante, da abertura de um processo de análise com uma mulher de meia-idade, encontramos os elementos da teoria do trauma de Sándor Ferenczi: "o enxerto prematuro de formas de amor passional e recheado de sentimentos de culpa num ser ainda imaturo e inocente" (1932/2011a, p. 118). A introjeção da culpa que deveria ser do abusador pairava sobre a criança, a qual, numa tentativa de ficar em sintonia com os valores familiares, procurava preservar aquele objeto idealizado. A vergonha por ter gostado do que o abusador lhe fizera evidencia quão profícuas são as palavras de Ferenczi:

A criança sente o mesmo susto se suas sensações genitais foram prematuramente forçadas, pois o que a criança deseja, de fato, mesmo no que diz respeito às coisas sexuais, é somente o jogo e a ternura, e não a manifestação violenta da paixão. (1930/2011b, p. 64)

Nesse caso, porém, apesar da chance existente, não houve brechas para que, de fato, ocorresse o desmentido ferencziano, uma vez que, quando o abuso foi revelado às pessoas próximas, elas imediatamente deram crédito à paciente, inclusive apoiando sua decisão de desmascarar o abusador diante de toda a família. Uma primeira surpresa foi a comoção geral que a revelação causou, porque algumas pessoas presentes também tinham recordações parecidas. Outra surpresa foi a reação dos pais: por um lado, a paciente se lamentou ao perceber que poderia ter contado com o apoio do pai, mas não o fizera; por outro, sentiu ódio pelo comportamento da mãe, evidência factual de que, se ela tivesse narrado os abusos, poderia ter ocorrido o desmentido, visto que entre mãe e filha não havia intimidade e confiança suficientes para que a mãe lutasse por ela. Em face disso, ela arrumou forças para fazer diferente somente por causa de sua filha.

O que dizer do algoz? A princípio, ela sentia-se satisfeita por ele ter perdido o amor e o convívio da esposa, dos filhos e dos parentes. Respondeu na justiça pelo que fez, mas infelizmente não foi preso, porque o Estatuto do Idoso o beneficiou. "Mas da justiça divina, com certeza, ele não escapará!" Quanto à vida atual da paciente, ela estava completamente infeliz, a ponto de se divorciar, mas presa a uma relação desrespeitosa, causada pelo alcoolismo do marido. "Os filhos? Eu não queria nenhum deles, eu não queria ser mãe. Agora estou cheia de filhos. Esse não era meu projeto! Eles são filhos das concessões que fiz na vida!" - concessões que ainda fazia, a ponto de chegar a viver as maiores humilhações em público. Teria ela se tornado seu próprio agressor e encontrado um jeito de ficar engessada numa posição masoquista?

Enquanto se estudavam alguns horários em que a paciente, ao longo da semana, pudesse dar início à análise, ela colocava obstáculos: não podia ser nesta hora, também não podia ser naquela outra... Eu, estranhando essa falta de agenda, uma vez que ela tinha empregada doméstica e não trabalhava, questionei o porquê de ela não poder comparecer naqueles horários, ao que ela prontamente respondeu: "É que são os horários em que eu ajudo minha filha de 2 anos a fazer os deveres da escola... Eles lá são muito exigentes!" Percebendo, de algum modo, em minha expressão fisionômica, meu espanto e estranheza diante da resposta, ela balançou a cabeça se autorreprovando e, categoricamente, decidiu: "Marca a hora que você tiver, que eu venho!" E cumpriu, com determinação, o que era preciso.

Renata Cromberg, ao fazer algumas reflexões clínicas sobre os escritos de Uchitel (2001) acerca do impacto traumático na vida dos pacientes, nos lembra de que o grande desafio de um processo de análise é conseguir que "as marcas irrepresentáveis inscritas no corpo" migrem de "apresentação (percepção e memória do mundo material, inescapável e dolorosa) em representação" (2004, p. 324). Acompanhar esses caminhos em análise implicará, segundo a autora, uma despadronização do setting e uma ampliação da função do analista e de suas possibilidades. Mais do que em outros campos clínicos, o analista terá, com certeza, de lidar com a impossibilidade de realizar intervenções "com restos não ligados, responsáveis pela força produtora da compulsão à repetição, do gozo masoquista e do trauma" (p. 324).

Esse pequeno fragmento de material clínico apresentado foi selecionado para abrir o debate acerca dos processos de incorporação e introjeção que se seguem às experiências vivenciadas com o abusador. Consegue-se acompanhar bem os processos de identificação com o agressor ao longo da infância e da adolescência tanto nos desenhos das crianças quanto nas condutas e nos discursos dos adolescentes. Nessa paciente, porém, apesar de se ver claramente o aprisionamento na maternidade, não se consegue acompanhar a lógica do raciocínio de Ferenczi nos caminhos psíquicos desse arranjo. Creio que esse é um veio de pesquisa muito interessante a ser deslindado nos escritos de Ferenczi e que está bem sintetizado na bela tese de doutorado de Teresa Pinheiro, Ferenczi: do grito à palavra:

A maternidade de que a criança se faz prisioneira é como a mensagem própria de toda incorporação que se repete incansavelmente. Falsa mensagem que quer a todo preço fazer crer que houve uma introjeção que de fato nunca houve, e que tenta esconder o assassinato que ela teve de perpetrar sobre uma parte de seu próprio ego. (1995, p. 94)

 

Cena 3

Traumatismo desestruturante: a alienação parental

Recebo uma criança de 5 anos para as primeiras entrevistas lúdicas. Ela entra na sala lúdica um pouco receosa, mas logo se atira na caixa de brinquedos e passa a selecionar alguns bonecos que dramatizam uma vida no campo. Surge na dramatização uma criança muito interessada em ver o que um homem fazia lá na fazenda. Como a mãe não a deixava sair de casa, a criança dizia uma mentira e conseguia fugir. Episódios envolvendo mentiras iam se repetindo, e quando eu fiz essa marcação, ela de imediato respondeu: "Você sabe que minha mãe falou que quem mente pode se dar muito bem na vida?" Ao longo do tempo, a cena se repetia compulsivamente, e cada vez mais a menina se aproximava da fazenda, evidenciando seu desejo de chegar perto daquele homem. No entanto, quando ela estava quase cara a cara com o fazendeiro, a mãe chegava, a cena ficava congelada, e ela fugia em pânico.

Nem é preciso dizer que essa cena parecia retratar a saudade que a criança sentia do pai, a quem não via há quase um ano. A mãe conseguira provar o abuso sexual sofrido pela filha, por meio de um laudo psicológico realizado com base em uma única sessão lúdica, em que a menina fez dois desenhos: no primeiro, havia uma criança descabelada e, ao longe, uma representação gráfica que poderia ser da genitália masculina; no segundo, a figura da mãe parecia estar muito mais completa que a do pai, mal esboçada. Olhando atentamente tais desenhos, eles nada me sugeriam, mas a mãe insistia em dizer que eram a prova concreta da verdade narrada pela criança.

No entanto, em outra entrevista com essa mãe, ela deixa escapar que, desde quando a menina era menor, sempre lia para ela um livro de histórias a fim de "deixá-la preparada para a vida". Curiosa, insisto que fale sobre o tal livro. Ela cita o nome dele, mas desconversa. Imediatamente eu me recordo de que se trata de um dos inúmeros livros que existem de prevenção à violência sexual infantojuvenil e que obedecem a um mesmo esquema ficcional: ilustram um pacto de segredo envolvendo um homem sinistro que faz "coisas de adulto" com uma criança, em troca de balas e quitutes. No entanto, a garota da história acaba contando seu problema para uma amiga, que a aconselha a dizer tudo para a mãe, "a única que poderia ajudar". Nas cenas seguintes, aparece a mãe mandando o homem embora de sua casa. Aliás, a figura do homem sinistro da história em muito se parecia com as descrições "daquele monstro" - expressão usada pela família para se referir ao pai da menina. Todos esses dados não deixam de levantar a suspeita de que a leitura do livro poderia ter afetado o imaginário da criança. No entanto, não fica evidente se havia certa intencionalidade de incutir mensagens subliminares na cabecinha da menina, indispondo-a contra o pai, ou se havia sido apenas um procedimento em consonância com as diretrizes que têm sido dadas aos pais pela mídia.

No fórum, a visitação assistida do pai à criança havia sido suspensa, e ele telefonava, constantemente, suplicando à mãe da criança que levasse a filha em algum lugar público, para que ele pudesse vê-la.

Mas ela é quem não quer mais saber de vê-lo, nem pintado! Também pudera, depois de tudo que ele fez com ela! Mas eu não interfiro, digo: "Filha, você é quem sabe se quer encontrar com ele. A mamãe vai estar sempre junto de você, para te proteger". Ela então se agarra no meu pescoço e não larga por nada! Eu não quero um laudo. Isso eu já tenho. Eu só quero um tratamento para ela, para ajudá-la a se livrar dessas lembranças horríveis do que aconteceu.

Mesmo ciente de que não cabe ao analista julgar os fatos, quando se vai embrenhando pela história pregressa daquele pequeno núcleo familiar, percebe-se a fragilidade da relação amorosa que jazia sob uma ruptura não consensual, o que, como se sabe, pode despertar angústias e levar a atuações violentas e destrutivas. Veem-se a falta de maturidade da mãe para aceitar o peso dos fracassos afetivos e o enorme ressentimento pelo fato de o ex-marido ter arrumado outra relação. Seria demais, então, pensar que nesse emaranhado de afetos também se emaranhava uma intenção de afastar, definitivamente, a filha de uma possível convivência com a rival?

Relatos como esse passaram a ser frequentes nos serviços de psicologia desde que foi sancionada no Brasil a Lei n.° 12.318, de 26 de agosto de 2010, mais conhecida como Lei da Alienação Parental, que montou um imbróglio que dificilmente se desfaz, deixando sequelas irreversíveis no psiquismo da criança ou do adolescente, principalmente se a disputa da guarda tiver sido apimentada por uma acusação de abuso sexual. Se a lei surgiu para proteger a criança de ser usada como escudo, objeto de barganha ou prêmio final pelos casais que estão em guerra na justiça, ela pode, paradoxalmente, ser vista como um instrumento para que pais violentos e/ou abusadores escondam seus atos abusivos por detrás das alegações de que estão sendo vítimas de alienação parental. Este é o ponto que se quer ressaltar: não se está defendendo a Lei da Alienação Parental (até porque se vê nela mais malefícios para as crianças do que benefícios); o que se pretende é fazer um contraponto ao assunto, salientando-se quão descomunal é o abuso psíquico cometido pelos pais em nome de um suposto abuso sexual. Aliás, pode-se dizer que o que sobrevém dessa situação não raro é até pior do que alguns abusos sexuais verdadeiros.

As engrenagens do adoecimento da paixão costumam ser cruéis. O enredo de uma separação litigiosa muitas vezes nos permite ver que um trauma que dilacerou o eu pode despertar uma fúria pulsional de grande monta, o que leva o arcaico sofrimento da perda, revivido pelo sujeito, a uma lógica de vingança completamente acorrentada ao narcisismo. A tragédia familiar então se anuncia, e para satisfazer a rivalidade com o ex-cônjuge muitos pais não se acanham em destroçar os filhos. Não há dúvidas de que o assunto se instala nas raias da perversão, e assim nos encontraremos diante daqueles "adultos enfurecidos, de certo modo loucos (... sem controle)", que Ferenczi descreveu em "Confusão de línguas" (1932/2011a, p. 120).

Independentemente de onde se enquiste a verdade dos fatos em cada processo de alienação parental, o que se pretende aqui é chamar a atenção dos colegas para a violência dilacerante das palavras, que podem matar a representação psíquica de um genitor no psiquismo de uma criança e ainda por cima trazer os efeitos de um duplo desmentido, o qual anulará as percepções, as verdades e as crenças da criança. Afinal, cada um dos genitores envolvidos no processo, com seus respectivos advogados, vai trabalhar com estratégias maniqueístas (que bem combinam com o imaginário infantil), defendendo uma facção do bem contra uma facção do mal, o que muito nos lembra a crítica feita por Teresa Pinheiro a Ferenczi, por ele ter dado ao desmentido uma versão estanque:

Se tudo indica que Ferenczi acerta o alvo ao afirmar que o desmentido é o fator essencialmente traumático e desestruturante, parece, no entanto, que ele se perde na tentativa de justificá-lo. A confusão que cria começa em sua abordagem, que coloca a verdade de um lado e de outro a mentira, atrelando-as respectivamente ao fato real e à fabulação. ... Dessa forma, o fato real está para a verdade assim como a fabulação está para a mentira. (1995, p. 74)

Contudo, na guerra judicial, muitas vezes a realidade psíquica da criança pouco importa, pois suas fabulações precisam ser, forçosamente, transformadas em fatos reais. Tudo começa com o engessamento das palavras da criança, que respondem a algumas perguntas feitas pelo genitor alienante sobre o encontro a sós da criança com o outro genitor - perguntas que vão tomando vias de derivação que conduzem à escansão procurada. Tome-se um exemplo: "O papai te deu banho quando você estava lá na casa dele? Ele passou sabonete em você? Ele lavou a sua peteca? Ele passou o sabonete com a mão? Ele passou a mão na peteca?". As respostas afirmativas dadas pela criança acabam levando à conclusão que será oficialmente repetida para ela: "Ah. O papai passou a mão na sua peteca". Pronto! Essa frase, repetida à exaustão, servirá para ser memorizada e repetida diante de um promotor: "O papai passou a mão na minha peteca!" - frase que, recortada do contexto em que foi proferida, terá um poderio bélico capaz de fazer a criança perder o convívio com o pai ou, se comprovada a alienação parental, perder o convívio com a mãe.

Analisando-se uma criança no começo de um desses processos de alienação parental, pode-se conseguir ainda observar o funcionamento adequado de sua capacidade crítica sobre as alegações infundadas acerca do corpo do pai e de suas possíveis intenções. Lembro-me de uma criança que me questionou: "Cassandra, homem toma banho de calção?" Ao perceber que estranhei sua pergunta, ela completou sua fala: "Minha mãe acha que toma, pois ela falou que meu pai não podia ter me dado banho nu e nem ter passado sabonete em mim" Vemos assim que

as palavras, mesmo quando têm por objetivo descrever a realidade, só podem ser investidas pelo sujeito quando guardam o caráter da multiplicidade dos sentidos. Quando esse caráter fica interditado, as palavras perdem sua elasticidade e são encerradas numa rigidez que não permite ao psiquismo integrá-las. (Pinheiro, 1995, p. 76)

Na guerra entre os pais, quando "o adulto rouba à fala da criança o sentido ambíguo das palavras, sua polissemia, encarcerando-a na univoci-dade" (Pinheiro, 1995, p. 76), eles interditam os processos de simbolização e, à medida que cada um dos genitores se encarrega de denegrir a imagem do outro e também de implantar falsas memórias na criança, sepultam de vez tanto a função paterna quanto a função materna que deveriam exercer. Lembremos que isso está longe de ser pouca coisa. É gravíssimo. Afinal, "a crença daquele que aposta em Sua Majestade o Bebê é a matéria-prima na constituição da subjetividade e o solo no qual a certeza de si se apoiará" (Pinheiro & Viana, 2011, p. 355). Na obra ferencziana, encontramos o termo convicção, ou ainda crença nos próprios sentidos, para falar da "certeza de si", que como nos dizem as colegas Pinheiro e Viana

refere-se a algo que será mais ele do que qualquer outra coisa, algo imóvel, que passa pela ação do tempo sem sofrer seus efeitos e permanece imutável. É assim, de alguma maneira, como um fiador de si mesmo, de que cada um pode lançar mão, sempre que necessário. ... Sem ela a possibilidade de interlocução interna pode desaparecer. Sem ela o eu fica refém daquilo que o outro afirma sobre si mesmo. Nesse caso o eu ganha, por assim dizer, uma exterioridade radical. O que o eu é passa a ser o que o outro que afirma é. (2011, p. 352)

Desorientada, recebendo a imposição de ter de relatar fatos distorcidos, a criança vai descobrir, com muita dor, que a linguagem pode traduzir tanto o verdadeiro quanto o falso, sendo então abduzida por um estado de alienação que surpreenderá até mesmo o analista. Piera Aulagnier nos chama a atenção para o fato de que, perdendo a certeza do que lhe aconteceu no passado recente, "o eu se torna incapaz de investir o que o fluxo temporal lhe impõe como diferença entre ele mesmo tal como se pensa e ele mesmo tal como se tornará e tal como se descobre tornando-se" (1985, p. 20). Sem saber mais em quem confiar, já que na alienação parental o sentido das palavras ofertadas pela mãe ou pelo pai jaz completamente distorcido, apagam-se de vez as boas lembranças do passado, que seriam capazes de sustentar a força com que se poderia encarar a realidade atual - situação descrita em dois textos interpenetráveis: "A perda da certeza de si", em que Pinheiro e Viana vão dizer que "o descrédito teria o poder de tirar a certeza das próprias percepções, como se a partir daí a criança não pudesse mais confiar nos próprios sentidos" (2011, p. 354); e Os destinos do prazer, no qual Piera Aulagnier enfatiza que,

entre a resposta neurótica e a resposta psicótica, a experiência prova a existência de uma terceira via de saída para o conflito identificatório. Via que será imposta ao sujeito porque os acontecimentos singulares da sua história pessoal erodiram sua tolerância ao conflito, e porque a realidade ambiente que ele encontra o confronta efetivamente a injunções absurdas e paradoxais, a demandas cuja desmedida torna impossível qualquer resposta que não seja marcada pelo compromisso que efetua a atividade de pensar e que eu chamo de alienação. (1985, p. 18)

Assim, logo após uma súplica desesperada, último respiro de uma onipotência em agonia, a criança ainda clama: "Mãe! Oh mãe! Tira o crescer de mim!", sucumbindo então entre as fissuras da descrença no amor e nas palavras. Desse momento de estilhaçamento e derrocada do eu, poderiamos ter como possível representação a cena que veremos a seguir.

 

Cena 4

Conclusões da coxia: o destino da alienação mental

Uma menina de 5 anos, cujo pai havia acusado a mãe de abuso sexual, narra em sua segunda entrevista com a analista o conto dos elefantes africanos: "Havia três elefantes. Um lutou com o outro que tem dentes grandes, e o terceiro está morto. O pequenininho estava morto, e o grande cuidava para que não quebrasse seu esqueleto. Na realidade fingia de morto, parecia morto, mas não estava morto. O pequenininho tinha dormido e fingia de morto". (Toporosi, 2018, p. 110)

A analista dessa criança pergunta-se se não seria a onipotência que a levaria a apostar em fazer-se de morta para que ninguém ameaçasse destruida. A metáfora do elefante servia, portanto, para mostrar que a criança havia matado seus próprios pensamentos e se entregado, disciplinadamente, aos pensamentos de outro como um modo de evitar um rompimento ainda maior em sua cabeça. Este é o destino que tanto tememos: a saida pela alienação mental. É em nome desse risco, "o de ficar doida no encalço", como diz Adélia Prado no poema "Dona Doida" (1991, p. 108), que não devemos nem podemos nos calar. Afinal, cada um de nós, em seu oficio, deve encontrar seu modo de tentar resgatar a verdade contida no silêncio das crianças, evitando assim que elas apenas cumpram a sina comum aos filhos do egoismo: a de ter sua infância roubada.

 

Referências

Aulagnier, P. (1985). Os destinos do prazer: alienação, amor, paixão (M. V. A. A. Gervaiseau & M. C. Pellegrino, Trads.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

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Correspondência:
Cassandra Pereira França
Avenida André Cavalcante 136/701
30441-014 Belo Horizonte, MG
cassandrapfranca@gmail.com

Recebido em 2/9/2019
Aceito em 23/9/2019

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