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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

RESENHAS

 

Psychoanalysis and psychiatry: partners and competitors in the mental health field1

 

 

Mário Tregnago Barcellos

Médico psiquiatra e psicoterapeuta. Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Professor do curso de formação em psicoterapia de orientação analítica do Centro de Estudos Luís Guedes (Celg)

Correspondência

 

 

Organizadores: Cláudio Laks Eizirik e Giovanni Foresti
Editora: Routledge, London, 2018, 302 p.
Resenhado por: Mário Tregnago Barcellos

 

 

Recentemente, em um fórum médico virtual de discussão de casos psiquiátricos, um relato clínico mobilizou diversas participações. Alguns colegas sugeriram diagnósticos e condutas farmacológicas específicas, enquanto outros se detiveram nos aspectos psicodinâmicos descritos, traçando paralelos entre a história de vida do paciente e os comportamentos que ele vinha apresentando. Um dos participantes, então, escreveu o seguinte:

Nós como médicos não podemos intervir na vida das pessoas com base em interpretações de teorias psicanalíticas. Isso não faz parte da medicina. A psicologia funciona deste jeito, mas a psiquiatria, se quiser evoluir e ser respeitada como disciplina médica, precisa saber diferenciar as coisas. O melhor médico psiquiatra é o que consegue separar bem aspectos ambientais dos aspectos sindrômicos que vêm do funcionamento cerebral. E isso em alguns casos é dificílimo!

Em seus últimos anos de vida, Amós Oz dedicou parte de seu pensamento ao fenômeno do recrudescimento do extremismo. Para ele, quanto mais complexos os dilemas e questões que atordoam pessoas e sociedades, mais intensa e frequente a busca por respostas simples. O fanático "oferece a redenção em duas frases" e tem a resposta que cobre todo tipo de pergunta. Não vou chegar ao ponto de adjetivar dessa forma o colega citado, até porque nem o conheço, mas as ideias que ele expôs no mínimo tangenciam a conduta radical, discriminatória e excludente tão em voga nos dias de hoje. E é justamente a presença dessa espécie de posicionamento que traz a convicção de que nunca será demasiado estudar, pensar, falar e escrever sobre a relação entre psicanálise e psiquiatria.

Psychoanalysis and psychiatry: partners and competitors in the mental health field se insere nessa problemática e se alinha à percepção de que não podemos trabalhar com o pressuposto de que tudo já foi dito nesse campo. Organizado por Cláudio Laks Eizirik e Giovanni Foresti, o livro faz parte da série Psychoanalytic Ideas and Applications, do Comitê de Publicações da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Composto de 22 capítulos, foi inspirado pelo trabalho desenvolvido a partir de 2013 pelo Comitê de Psicanálise e Saúde Mental da IPA. O grupo foi estabelecido na gestão de Stefano Bolognini com o objetivo de imaginar, idealizar, refletir sobre, planejar e implementar ações efetivas na interface entre psicanálise e saúde mental. A atividade desse comitê, que começou sua trajetória identificando e enfrentando preocupações e possibilidades da área que se comprometeu a focalizar, acabou seguindo diversos caminhos, sendo um deles o livro em questão.

Como os organizadores ressaltam na introdução, o propósito não é celebrar uma "nova e grande aliança" entre as disciplinas que compõem o chamado campo da saúde mental. Qualquer um que está dentro dessa arena, aliás, sabe bem que uma eventual celebração de tal natureza seria ingenuamente ilusória. Fincando o pé na realidade, o que os textos reunidos buscam é instigar um debate coletivo mais claro a respeito das responsabilidades e perspectivas compartilhadas por quem trabalha com indivíduos que sofrem com transtornos mentais. Em uma tentativa de síntese talvez grosseira: estamos uma vez mais procurando o diálogo entre aqueles que têm como matéria-prima de seu exercício profissional justamente o diálogo.

O livro apresenta a contribuição de 27 diferentes autores da área - psicanalistas, psicoterapeutas, psiquiatras psicodinâmicos, psiquiatras clínicos e psicólogos clínicos, muitos deles com atividades didáticas em centros universitários e sociedades psicanalíticas mundo afora. Os prefácios são escritos pelas presidentes da IPA, Virginia Ungar, e da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), Helen Herrman. Ambas reconhecem a relevância do livro como um modelo de iniciativa para combater o isolamento profissional e, assim, enfrentar de maneira mais eficiente o desafio cotidiano que é ocuparse com saúde mental.

Os textos são divididos em três seções: 1) "O campo da saúde mental: tendências globais e especificidades locais"; 2) "A prática clínica: nosologia, diagnósticos e tratamentos"; 3) "A dimensão formativa: o ensino e a educação continuada". Para não tornar esta resenha cansativa, me proponho a fazer um breve resumo de cada seção e me aprofundar em um capítulo de cada uma delas, a fim de dar uma ideia mais representativa dos temas tratados.

A primeira parte agrupa ensaios que comparam diferentes visões regionais (limitadas à Europa, à América Latina e aos Estados Unidos) da situação passada e presente da relação entre psicanálise e psiquiatria. Eizirik, no capítulo 2, cita distintas fases que acompanhou ao longo de mais de 40 anos de atividade psiquiátrica e psicanalítica: a migração da psiquiatria para junto das demais especialidades médicas nos hospitais gerais, a idealização da teoria e da técnica psicanalítica, a introdução e a popularização dos psicofármacos, a formulação de diferentes (e cada vez mais curtas e circunscritas) modalidades psicoterápicas, o crescimento da pesquisa e dos programas de pós-graduação na área da saúde mental, a mudança nas indicações terapêuticas dos tratamentos psicanalíticos, a idealização da chamada psiquiatria biológica e do poder explanatório das neurociências, a presença crescente da indústria farmacêutica no dia a dia de médicos e pacientes, a ênfase atual na medicina baseada em evidências, entre outras. A partir daí, traça uma cronologia bastante abrangente - ainda que fragmentária, como ele mesmo sublinha - do movimento psicanalítico em diferentes países da América Latina, tornando clara a conexão umbilical entre psicanálise e psiquiatria na região. Revisado o passado, o autor aponta alguns desafios do presente que podem levar o campo da saúde mental à integração ou à desintegração: a relação entre psiquiatria, psicanálise e ciência básica, a posição da psiquiatria como especialidade médica e o subsequente risco de hiperdiluição e de perda de especificidade e, por último, a formação teórico-técnica e pessoal dos psiquiatras contemporâneos. Levando todos os aspectos citados em consideração e sem deixar de manter aberta a possibilidade de desfechos menos felizes, Eizirik se diz esperançoso de que um cenário inclusivo e agregador possa prevalecer - sendo a prática e o diálogo integrativos fundamentais para o cuidado adequado de nossos pacientes.

A segunda parte reúne artigos sobre as metodologias já desenvolvidas para tentar entender e diagnosticar os transtornos mentais através de diferentes ângulos possíveis de observação. Glen Gabbard, no capítulo 9, em meio a textos que tratam de entrevistas diagnósticas semiestruturadas, lembra o perigo de a avaliação psiquiátrica ficar restrita a conversas de 15 minutos e checklists de sintomas, às vezes complementados por exames de imagem e de laboratório. A partir da máxima de Hipócrates de que "é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que a doença que a pessoa tem", o autor desenvolve o tema da relevância da pessoa para o trabalho psiquiátrico. Segundo ele, a psicanálise é a subárea da saúde mental que carrega para o treinamento em psiquiatria a perspectiva essencial de que estamos sempre diagnosticando pessoas, não doenças. Gabbard faz uma breve digressão a respeito da busca pela pessoa e conclui que saber quem um indivíduo é requer uma integração entre as perspectivas interior e exterior. Isso, diz ele, é algo que a psicanálise proporciona ao permitir (e até exigir) que o médico tenha tanto o olhar de primeira pessoa sobre o paciente - empatia com a experiência ouvida - quanto o olhar de terceira pessoa - sua própria experiência como observador. Sob esse mesmo prisma, o autor descreve o que vê como um grande obstáculo para a integração entre o pensamento psiquiátrico e o psicanalítico: a existência de uma divisão na nosografía psiquiátrica entre a personalidade de um paciente e seu(s) outro(s) diagnóstico(s). Ainda que o dsm-5 tenha eliminado o diagnóstico multiaxial, segue presente a herança de pensamento dualístico deixada pelo DSM-IV, que leva à visão do paciente como duas entidades estranhas dividindo um mesmo corpo - o Eixo I, transtornos psiquiátricos clínicos com exceção dos de personalidade, e o Eixo II, transtornos de personalidade. Foram várias as gerações marcadas pela dificuldade de reconhecer a distinção entre, de um lado, transtorno de personalidade e, de outro, a pessoa, com seus traços particulares de caráter. Por fim, o autor reflete sobre os motivos para a negligência da pessoa por parte da psiquiatria contemporânea. Ele lista o declínio da influência das teorias psicanalíticas, o crescimento da psiquiatria biológica/psicofarmacológica, a diminuição da disponibilidade de tempo para atender os pacientes, a entrada da tecnologia nos consultórios médicos e, também, o desconforto que sempre pode surgir quando tentamos atingir a pessoa dentro de um ser humano. Como conclusão, Gabbard afirma que a preocupação com a união das vertentes biológicas, psicológicas e socioculturais deve ser ininterrupta em nossa mente, mesmo que exija dispêndio maior de energia e tempo.

A terceira parte compila textos que exemplificam e comentam a integração entre psicanálise e psiquiatria em contextos de ensino. Há um foco na exposição de práticas testadas e com potencial de reprodução que podem ajudar a desenvolver relações mais estreitas e saudáveis entre as disciplinas. Joachim Küchenhoff, no capítulo 17, toma como ponto de partida sua experiência como psicanalista, psiquiatra, preceptor de residência médica, professor universitário e chefe de uma unidade psiquiátrica com serviço ambulatorial, internação e hospital-dia. Ele trata de dois métodos distintos de ensino com os quais tem contato diário: um formal, isto é, um programa estruturado de ferramentas básicas de psicoterapia oferecido aos residentes, e outro informal, que vem a ser a inserção da abordagem psicodinâmica na rotina de atendimentos de pacientes no âmbito da formação psiquiátrica. Quanto ao método formal, o objetivo é possibilitar a assimilação de conceitos de psicoterapia para residentes em início de treinamento. Através de um programa de quatro horas por mês, são examinados temas psicanalíticos teóricos e clínicos com a finalidade, segundo o autor, não de formar psicanalistas ou psicoterapeutas de orientação analítica, mas sim de estimular compreensões úteis na atenção a qualquer paciente. Um segundo passo do ensino formal é o contato com o Operationalized Psychodynamic Diagnosis (OPD), um sistema de classificação diagnostica multiaxial baseado em princípios psicodinâmicos. Como os residentes já estão acostumados aos manuais diagnósticos clínicos tradicionais (CID e DSM), a apresentação de um modelo psicodinâmico análogo contribui para a aquisição de noções psicodinâmicas a serem acrescentadas à rotina clínica diária e ajuda a desconstruir a visão - muitas vezes existente, ainda que míope - de que a técnica psicanalítica é fruto apenas de inspiração e de que as teorias da psicanálise são desconectadas da prática. Quanto ao treinamento informal, Küchenhoff considera-o a parte mais importante: é através dele que a psicodinâmica é "normalizada" para os aprendizes e se torna realmente parte da educação psiquiátrica. Os conceitos psicodinâmicos são incorporados nos momentos de avaliação diagnóstica, planejamento terapêutico, manejo de crise e supervisão (inclusive da própria equipe e instituição), não havendo uma estrutura rígida a ser seguida. Por fim, o autor estabelece 12 "regras" para o ensino de psicanálise em residências médicas, as quais, ainda que simples e aparentemente óbvias, poderiam estar penduradas no mural de todo serviço de psiquiatria que busca agregar tópicos de psicanálise à formação de seus residentes.

Freud (1917/2006) dedicou uma de suas conferências introdutórias à relação entre psicanálise e psiquiatria. Lá, afirmou que, embora conflitos já estivessem eclodindo entre os dois domínios, não havia motivo para tal, pois uma suposta oposição ou contradição entre eles inexistia. Em uma de suas tiradas notáveis, Freud disse que não era a psiquiatria que se opunha à psicanálise, e sim os psiquiatras. O oposto, há que reconhecer, também pode ser tomado como verdadeiro. Ou seja, a contenda tem mais a ver com pessoas do que com diferenças fundamentais entre as efetivas áreas do conhecimento. Como bem lembrado por Robert Hinshelwood no capítulo 4 do livro aqui resenhado, podemos recorrer à conceituação do próprio Freud do narcisismo das pequenas diferenças como hipótese explanatória mais plausível para as eventuais hostilidades.

Embora haja um longo histórico tanto de desacordos quanto de tentativas de integração entre psicanálise e psiquiatria, me parece que estamos em um momento especialmente propício para uma nova investida de conciliação - o que torna ainda mais meritória uma publicação como Psychoanalysis and psychiatry: partners and competitors in the mental health field. Ambas as disciplinas já tiveram o que poderíamos chamar de seu apogeu - com as ilusões de onisciência e onipotência que acompanham todo clímax - e hoje navegam em mares menos amistosos, em meio a ondas de questionamento. Oxalá o reconhecimento das limitações incontornáveis (que, aliás, estão sempre a nossa espreita em tudo que fazemos) da psiquiatria e da psicanálise por parte de psiquiatras e psicanalistas possa finalmente transformar em realidade a profecia de 1917 de Freud: "No fim - não sabemos dizer onde nem quando - cada pequena parcela de conhecimento se transformará em poder, e também em poder terapêutico" (p. 262). Os pacientes agradecem.

 

Referências

Freud, S. (2006). Psicanálise e psiquiatria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 16, pp. 251-263). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mário Tregnago Barcellos
Avenida Taquara, 110/202
90460-210 Porto Alegre, RS
mariotbarcellos@gmail.com

 

 

1 Psicanálise e psiquiatria: parceiras e competidoras no campo da saúde mental.

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