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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

RESENHAS

 

Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: Matrizes e modelos em psicanálise

 

 

Ana Cristina de A. Cintra

Diretora do Ateliescola Acaia. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo (IP-USP)

Correspondência

 

 

Autores: Luís Claudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior (com a colaboração de Paulo de Carvalho Ribeiro e Ivanise Fontes)
Editora: Blucher, São Paulo, 2018, 304 p.
Resenhado por: Ana Cristina de A. Cintra

 

 

Enquanto me via às voltas com a ideia de fazer a resenha deste livro, ouvi numa conversa de jovens que um amigo deles "estava resenhando" alguém, expressão cujo sentido era "flertar". Ora, isso me pareceu bastante apropriado: escrever uma resenha é como flertar com o texto que se vai apresentar, tornar o conteúdo atraente, fazer um convite a sua leitura. Pois bem, espero conseguir resenhar este livro para vocês.

A obra dos autores, em especial a de Luís Claudio Figueiredo, é bastante extensa. Essa produção demonstra o envolvimento do autor, já há bastante tempo, com a ideia de matrizes, como observamos em Matrizes do pensamento psicológico (1991), em que ele aponta a ambiguidade da posição do sujeito e do indivíduo na cultura ocidental contemporânea e a necessidade de submeter a subjetividade a leis, descobrindo-se regularidades que possibilitem seu controle e a coloquem a serviço do domínio técnico da natureza e da reprodução social. Sua relação com a obra de Ferenczi pode ser verificada no livro Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999), que nos oferece uma leitura minuciosa de Além do princípio do prazer e Thalassa, com o objetivo de reconstruir a peculiar lógica que vigora no pensamento psicanalítico freudo-ferencziano.

Muitos de seus textos posteriores estão relacionados aos desdobramentos da psicanálise nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, no que chamamos de psicanálise contemporânea.

Reencontrei-me com matrizes nas aulas de xilogravura. Ali, verificava que, embora a matriz reproduzisse o que havia sido gravado, o resultado dependia não apenas dos sulcos feitos pelo gravador, mas também das escolhas do impressor. A matriz ser bem entintada, a densidade da tinta, a utilização ou não de mais de uma cor em sobreposição, a impressão ser feita na prensa ou com colher, o papel a ser gravado ter fibra curta ou longa: cada uma dessas variáveis oferecia um produto final diferente.

Consideremos agora o livro que nos cabe resenhar. A introdução, feita pelos autores principais, Luís Claudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior, e o primeiro capítulo, "Preliminares à consideração das matrizes", escrito por Luís Claudio, me deixaram um pouco aturdida: ali estava realizada, de um modo que não faríamos melhor, a apresentação do livro que tínhamos em mãos. Dessa forma, de meu ponto vista, é imprescindível tratar dos capítulos iniciais antes de prosseguir com a leitura.

Na introdução, logo nas primeiras linhas, os autores afirmam: as bases da matriz freudo-kleiniana e da matriz ferencziana foram estabelecidas nos anos 1920 e, para as duas matrizes, os adoecimentos psíquicos podem ser universalmente pensados como uma interrupção nos processos de saúde. Ao falar em processos de saúde, eles se referem ao exercício livre e eficaz dos trabalhos psíquicos inconscientes e conscientes. A seguir, definem a empreitada do livro. "A cada uma dessas grandes matrizes de adoecimento corresponderá uma estratégia de cura" (p. 9). Para além disso, apontam autores contemporâneos que vieram a formar uma base privilegiada para os projetos transmatriciais.

O presente trabalho pretende, primeiramente, mapear o vasto e complexo campo do pensamento psicanalítico em termos das duas matrizes e dos diversos modelos de adoecimento psíquico nelas identificados; em seguida, pretende considerar os esforços de articulação entre elas nas obras de autores contemporâneos, todos eles apoiados em Winnicott e Bion (com algumas doses de Lacan), embora em dosa-gens diferentes, (pp. 10-11)

O texto de Freud Inibição, sintoma e angústia (1926) é tomado como ponto de ancoragem da matriz freudo-kleiniana, seguido pela apropriação e por contribuições de Melanie Klein, de Anna Freud e dos autores da psicologia do ego, e posteriormente por aportes de psicanalistas freudo-kleinianos, como Herbert Rosenfeld e Wilfred Bion. Já a matriz ferencziana parte dos escritos de Ferenczi, elaborados entre 1927 e 1932, e segue em modelos a ela associados, em autores como Balint, Spitz e Winnicott. Após a exposição das duas matrizes, são apresentados projetos de articulação transmatricial, examinados nas obras de André Green, René Roussillon, Anne Alvarez e Thomas Ogden.

Matriz freudo-kleiniana: adoecimentos por ativação (por Luís Claudio Figueiredo)

Uma característica fundamental da matriz freudo-kleiniana é o fato de centrar toda a problemática dos adoecimentos psíquicos na experiência das angústias, na consideração das "situações de perigo" e nas formas ativas do psiquismo de se defender delas. Assim, os adoecimentos decorrem não das falhas das defesas, mas, ao contrário, de seu "sucesso": mais angústias são geradas, criando-se um círculo vicioso de compulsão à repetição. Quanto menor o recurso egoico, mais defesas são acionadas e mais maciço é seu uso, interrompendo-se processos de saúde. A estratégia clínica precisa se haver com o monitoramento de angústias e defesas, ou seja, desativar angústias e defesas excessivamente ativadas.

Esta parte do livro, como dito antes, analisa com profundidade o texto Inibição, sintoma e angústia, mostrando que, embora a angústia seja indeterminada e ocorra na ausência do objeto, é sempre angústia diante de algo. Evidencia a diferença entre a angústia automática, eclodida na situação traumática original, e a angústia-sinal, em que se teme a repetição da situação traumática. Reitera, porém, que todas as angústias acionam mecanismos de defesa.

Melanie Klein, a partir das ideias freudianas de 1926, oferece um primeiro modelo psicanalítico para os adoecimentos não neuróticos, aqueles que decorrem do acionamento precoce e excessivo dos mecanismos de defesa primitivos, mas ainda assim baseados na dinâmica que implica angústias e defesas. Em seus textos da maturidade, Klein sugere que a angústia de morte está na base de todas as demais angústias em situação de desamparo, ou seja, as angústias do nascimento, de separação e de castração seriam sempre reedições da angústia de morte. Ainda mais tarde, abordará as angústias de aniquilação e a emergência das culpas, quando os ataques superegoicos tornam-se predominantes na eclosão dos estados angustiados.

O autor diz que encontramos no pensamento de Melanie Klein, como premissa da matriz freudo-kleiniana do adoecimento psíquico por ativação, o fato de que "haverá sempre do que nos angustiarmos e nos defendermos enquanto estivermos vivos e ativos" (p. 80). A partir de Bion, é possível vislumbrar, como objetivos essenciais do tratamento nos adoecimentos por ativação, a moderação das angústias e a lenta desconstrução das defesas e dos sistemas defensivos.

Por fim, são identificados três vértices clínicos das estratégias de desativação: clínica da continência (Judith Mitrani), do confronto (Howard Levine) e da ausência (Rudi Vermote).

Matriz ferencziana: adoecimentos por passivaçâo (por Nelson Ernesto Coelho Junior)

Apesar de ocupar uma posição suplementar à matriz freudo-kleiniana, a matriz ferencziana se mostra indispensável para pensar modalidades de adoecimento fundadas em traumatismos precoces, experiências de ruptura que produzem a ultrapassagem e uma verdadeira aniquilação das capacidades de defesa e resistência. Traumas precoces evocam no traumatizado uma condição de passividade, de inércia. Em Ferenczi e em todos aqueles por ele inspirados, "a escuta do analista deve ser sensível ao que não é da ordem da defesa ativa e da resistência. ... Abre-se assim o campo da escuta do inaudível, em uma clínica de revitalização" (p. 19).

Segundo o autor deste capítulo, coube a Ferenczi e a Otto Rank a renovação do interesse psicanalítico pela importância do trauma real vivido nos processos de constituição subjetiva. No livro O trauma do nascimento (1924), Rank destaca esse trauma como modelo fundamental do afeto de angústia e, numa conferência em Londres (1927), Ferenczi apresenta aspectos importantes de sua noção de trauma precoce e aponta o fato de que a falha dos pais em se adaptar às necessidades da criança tem papel preponderante. Quanto mais precoce o trauma, maior a tendência mórbida.

Em seu Diário clínico (1932), Ferenczi ilustra o que estamos chamando de adoecimentos e defesas por passivação: "O caráter insuportável de uma situação leva a um estado psíquico próximo do sono. . O efeito do choque vai ainda mais longe. . Sua vida afetiva se refugiara na regressão"; o trauma é entendido como um "choque equivalente a uma aniquilação de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do si mesmo" (p. 133). Na visão ferencziana, em termos dos traumas vividos por crianças, cabe aos pais, e depois, se for o caso, aos analistas, a tarefa de reconhecer (e não desmentir) o trauma vivido, gerando um ambiente propício para o acolhimento e a transformação do sofrimento.

As contribuições de Michael Balint, tanto no âmbito teórico quanto no plano técnico, foram fundamentais para o desenvolvimento da matriz das formas passivas de adoecimento psíquico: a falha básica; a ênfase dada à regressão; do ponto de vista da técnica, o new beginning (o novo começo), que ampliava a importância do objeto - o analista - como forma de reparar as falhas precoces do objeto e do ambiente.

Nelson Ernesto Coelho Junior põe Winnicott lado a lado de seu contemporâneo Balint, como autor fundamental na compreensão dos processos de constituição subjetiva que valoriza o papel do objeto: o fator traumático reside nas falhas ambientais que impedem que as necessidades psíquicas do bebê sejam garantidas. Em casos de traumatismo precoce, o trabalho do analista seria restaurar a temporalidade da experiência do trauma e do colapso e oferecer suporte (holding) à tendência de desintegração. Em vários artigos, Winnicott enfatiza a importância da quietude e da capacidade de estar só (ainda que inicialmente na presença de alguém) e, entre os paradoxos desse autor, um deles diz: "É uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado" (1965/1990, p. 169).

Nelson afirma que, por sua atenção a experiências psíquicas que remontam a conteúdos que nunca foram conscientes, anteriores à compreensão verbal, e por sua sensibilidade aos aspectos intersubjetivos e empáticos presentes numa análise, Ferenczi é - como dito por André Green - o pai de grande parte da psicanálise contemporânea. Aponta os psicanalistas norte-americanos Harold Searles e Robert Langs como parte dos primórdios de um momento da história da psicanálise em que se reconhecem esforços de suplementaridade entre as duas matrizes, o que os poria entre os analistas que compartilham um modo transmatricial de trabalho analítico.

Psicanálise transmatricial: articulação das duas matrizes (por Luís Claudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior)

A psicanálise contemporânea se esforça para articular uma psicanálise cuja premissa é uma atividade psíquica inesgotável e outra que considera o esgotamento psíquico, sua passividade, seus silêncios e vazios. O pensamento de Bion, oriundo da matriz freudo-kleiniana, e o de Winnicott, de inspiração ferencziana, propiciam essa articulação. O livro apresenta psicanalistas - Ferro, Ogden, Alvarez, Roussillon, Green etc. - que se apropriam desses autores, cada um a seu modo, para construir sua própria teorização; que utilizam as matrizes e imprimem sua marca. Ferro fala explicitamente de "meu Bion", e Roussillon de "seu Winnicott". Já André Green diz, com convicção, que "não podemos passar sem uma dessas matrizes se queremos entender os casos-limite ou os casos de sofrimento não neurótico" (1990, p. 22).

Ivanise Fontes e Paulo de Carvalho Ribeiro contribuíram e colaboraram nos anexos deste livro: a primeira situa Pierre Fédida no contexto das duas matrizes; o segundo, recorrendo às propostas de Heinz Lichtenstein, trata da posição singular de Jean Laplanche no contexto das matrizes freudo-kleiniana e ferencziana.

No decorrer do livro, a psicanálise é percebida como revolução permanente no âmbito dos tratamentos psicológicos. A obra é rica em referências, revela autores pouco conhecidos, incita à pesquisa. Assim, na matriz freudo-kleiniana, somos remetidos a pensadores freudianos e da psicologia do ego, ou a eles associados, como a psicanalista holandesa Jeanne Lampl-de Groot e Heinz Hartmann, o qual aborda a neutralização das forças libidinais e, principalmente, o destino da agressividade nas questões do adoecimento e da saúde. Na matriz ferencziana, temos o posicionamento de René Spitz - influenciado pelas ideias do psicanalista húngaro Imre Hermann -, Gutiérrez-Peláez, entre outros.

A escrita do livro retoma sistematicamente o que foi dito antes, seja para enfatizar algo, seja para avançar um pouco mais na discussão. Parágrafos construídos com frases como "Trabalharemos, ao longo de todo o texto", "No entanto, e já antecipando o que será apresentado detalhadamente adiante" e "Dando início às considerações cabe caracterizá-la mais uma vez" dão a tônica dos capítulos, didáticos, escritos por professores. Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura não é um livro de cabeceira, mas sim de estudo.

 

Referências

Figueiredo, L. C. M. (1991). Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. M. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Green, A. (1990). Les tournant des années folles. In A. Green, La folie privée (pp. 11-39). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). The maturational process and the facilitating environments. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ana Cristina de Araújo Cintra
Rua Doutor Avelino Chaves,105
05318-040 São Paulo, SP
Tel.: 11 97372-4141
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