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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

RESENHAS

 

Body-mind dissociation in psychoanalysis: development after Bion1

 

 

Thaís Helena T. Marques

Membro efetivo, com funções didáticas, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP)

Correspondência

 

 

Autor: Riccardo Lombardi
Editora: Routledge, London, 2017, 226 p.
Resenhado por: Thaís Helena T. Marques

 

 

Penso a psicanálise como uma sonda que expande o universo que investiga e que não cabe nas teorias que produz. Por essa razão, continuamente necessitamos de novos vértices que sustentem essa investigação. O psicanalista italiano Riccardo Lombardi conecta a teoria de W. R. Bion, principalmente suas ideias sobre O, com a de Ignacio Matte Blanco a respeito do conflito essencial sobre sentir e pensar e com a de Armando Ferrari sobre o objeto original concreto (OOC), ampliando esse universo de investigação e incluindo nele o corpo e suas inefáveis sensações.

A perspectiva de incluir a sensorialidade no instrumental clínico do psicanalista como uma área primeira e vibrante, que impõe desafios a sua mentalização, evidencia uma fronteira na qual interações, desconexões e turbulências mentais das mais diversas ordens acontecem. De forma original e radical, Lombardi propõe que o analista faça uso de seu próprio corpo, num entrelaçamento com o do analisando, transitando nessa fronteira através de fantasias compartilhadas e não compartilhadas.

A leitura do livro é indispensável aos interessados nas áreas primitivas do psiquismo, nas quais o corpo tem um papel importante, sugerindo-se a necessidade de uma nova apreciação da noção de corpo na teoria psicanalítica. A obra aborda a questão do corpo em psicanálise e a relação corpo-mente, assim como o conflito e a dissociação que ocorre entre eles.

As hipóteses que faz, abrangendo a associação corpo-mente (relações harmoniosas) e a dissociação corpo-mente (arranjo discordante no qual ocorre a não interação entre corpo e mente ou a exclusão de um pelo outro), apresentam uma perspectiva e um potencial para a expansão no contexto de uma nova epistemología clínica, que pode liberar a psicanálise das abstrações excessivas e das dificuldades de um conceito sistemático, pondo essa nova epistemologia como fonte de experiência.

Para Lombardi, o problema do conflito é, cada vez mais, encontrado em formas extremamente radicais, nas quais o corpo e a mente assumem papéis absolutos, excluindo um ao outro completamente. Quando o conflito corpo-mente se torna intolerável, a dissociação corpo-mente toma a frente.

O alerta é para o risco de a psicanálise tornar-se antidesenvolvimento, antiterapêutica, e transformar-se em outra das muitas variedades de dissociação corpo-mente características da vida contemporânea, caso tome os níveis mais primitivos de integração interna como certos, concentrando-se precocemente em dinâmicas mentais desenvolvidas e em relações objetais.

Em níveis primitivos da mente, um trabalho de elaboração constantemente centrado na transferência para o analista pode distanciar o indivíduo de si mesmo em todos aqueles estados em que tem dificuldade de relacionar-se com o próprio corpo e com os próprios níveis emocionais primários.

Assim, o analisando é exposto ao risco de uma dinâmica regressiva e paralisante de submissão e imitação. De acordo com Lombardi, quando trabalhamos com estados mentais primitivos, a transferência para o analista (transferência horizontal, segundo Ferrari) coabita com a transferência para o corpo (transferência vertical, segundo Ferrari).

Focalizar o corpo como a força que move o trabalho de elaboração possibilita a construção de uma fábrica de conexões corpo-mente na sessão analítica, à qual o analisando, de outra forma, não teria acesso. O foco no que o autor denomina transferência para o corpo é essencial, particularmente quando o analisando mostra ausência de ressonância emocional unida a manifestações vivas de estranhamento ou indiferença de si mesmo e de sua própria fisicalidade.

Lombardi enfatiza que a transferência para o corpo possibilita alcançar um nível de experiência que não pode necessariamente ser reduzido a termos específicos de conteúdos mentais. Dentro dessa perspectiva, explorar o sentimento como uma categoria humana geral traz à tona nossa condição original mais ampla, que não pode ser reduzida a termos simbólicos e que está enraizada em nossa identidade de Homo sapiens. O saber e o sentir coexistem numa dualidade, da mesma maneira que o corpo e a mente, como identidade.

O autor diz que a consciência do sentimento corpóreo pode ser a fonte da própria sensação de ser, que está em contínua oposição à não sensação de ser. Ressalta a importância da pressão sensorial que surge quando o trabalho de elaboração cria uma conexão com a experiência corpórea, o que ele denomina contratransferência somática, indicando que o analista deve trabalhar nos mesmos níveis de sensações fluidas, intraduzíveis e potencialmente explosivas pelos quais o analisando está passando.

Nesses níveis primitivos, o analista é confrontado não tanto com conteúdos mentais específicos ou áreas de conflito bem definidas, como aquelas encontradas nos fenômenos mais integrados de contratransferência, mas com manifestações primitivas mais radicais. Lombardi assinala que o analista se encontra num estado de conter, em seu próprio corpo, as manifestações sensoriais pré-simbólicas que precedem os fenômenos mentais, dessa forma promovendo condições para o funcionamento mental em níveis mais evoluídos.

É necessário atenção e dedicação para receber os fenômenos da suposta contratransferência somática, já que emoções podem ser violentas, difíceis de conter, e devem ter o tempo que precisarem para serem metabolizadas. Esse tempo, que independe da vontade do analista, talvez entre em conflito com outros aspectos de sua vida. O trabalho de elaboração emocional dos níveis mais profundos estende-se muito além dos limites da sessão e pode também excluir os níveis conscientes. Lombardi nos lembra que, no final de sua obra, Freud passou a atribuir às sensações corpóreas uma correspondência próxima aos fenômenos inconscientes.

Desse modo, o analista é convocado a estar ciente de suas reações internas mesmo fora do consultório e a ter em mente que elas podem aparecer quando menos esperar. Um aspecto interessante na abordagem de Lombardi é que, muito além de nossa vontade inconsciente, a experiência que temos com nossos analisandos nos acompanha constantemente, e o trabalho de elaboração é contínuo, ativo e intenso.

O autor propõe uma mudança radical na observação psicanalítica, com ênfase no corpo. Seu interesse, portanto, não se limita ao significado simbólico ou a fantasias inconscientes relacionadas a ele. Sua proposta é que a psicanálise toda não se resuma a uma mera metaforização, mas, ao contrário, que evoque um confronto com a realidade e com a primeira expressão da realidade, o corpo.

Nas últimas décadas, a relação corpo-mente tem sido subestimada pela psicanálise, provavelmente porque envolve uma retração de seu poder interpretativo e metafórico, já que levar em conta esses elementos de evidência parece diminuir o status intelectual do analista.

No entanto, Lombardi afirma que pôr o corpo em primeiro plano implica dar de volta ao analisando um território sobre o qual ele tem uma verdadeira sabedoria e autoridade, que é frequentemente ofuscada por uma cultura analítica centrada de modo enlouquecedor na interpretação da transferência e no pedido por dependência. Assim, valorizar o corpo em psicanálise pode ter uma função protetora decisiva diante de operações inconscientes de colonização e submissão do analisando ao conhecimento analítico.

É importante considerar que a capacidade de abstração é construída a partir de uma base de experiências organizadas ao redor da capacidade perceptiva dos órgãos dos sentidos. Sendo corporais por natureza, os órgãos dos sentidos estão incluídos no contexto da relação corpo-mente. Desse modo, e de acordo com as ideias contidas ao longo do livro, a sensorialidade ganha uma nova dimensão na prática analítica, pois o trabalho analítico efetuado exclusivamente no nível mental leva ao que Lombardi denomina pseudomentalização defensiva.

Havendo hoje novas demandas no horizonte psicanalítico, é possível ampliar o espectro de ação da psicanálise e considerar o nível interno não tanto através da lente de um modelo relacional com o qual a psicanálise começou, mas através de uma sensibilidade à singularidade da organização interna de cada analisando e aos novos horizontes abertos por problemas que pertencem à relação corpo-mente. A mentalização compulsiva pode estar associada à alienação das emoções do analisando.

Citando Matte Blanco e Ferrari, Lombardi aponta que é essencial auxiliar o analisando a ser responsável por sua atitude interna e suas barreiras, para legitimamente ser capaz de ouvir a si mesmo no nível das sensações e emoções. Apresenta situações clínicas que elucidam um movimento que pode ser alcançado na análise num contexto no qual a mente se emancipou artificialmente do substrato corpóreo que gera sensações e emoções.

Em seus diversos trabalhos clínicos, assinala preferentemente intervenções que ressaltem a entrada do corpo na análise, com o intuito de mostrar a possibilidade de pensar e discriminar, na experiência do corpo, a forma como o analisando se aproxima das próprias emoções. Delineia a importância de discriminar esse instante em que ocorre a interface da experiência do contato sensorial com o próprio corpo e de sua emergente percepção mental.

Lombardi faz uma interessante abordagem sobre o corpo e a mente na adolescência, focalizando o conflito entre eles a partir do paradoxo de que o corpo é linear e finito e a mente é atemporal e infinita. As manifestações adolescentes apresentam frequentemente padrões contraditórios, nos quais o corpo e a mente, cada um deles, buscam o controle da personalidade, tendo como consequência que um dos competidores internos domina o outro. Assim, o acting out torna-se essencial para o adolescente, visto que apenas através da ação ele pode ganhar experiência e conhecimento, mesmo que por isso pague um preço alto.

Nos momentos em que o adolescente sofre intensas sensações físicas, surge a necessidade urgente de a mente assumir seu papel de registrar e conter a forte onda sensorial associada a essas experiências. Nesse sentido, a função da mente é conter a onda sensorial provinda do corpo, e do trabalho analítico é intervir na relação do adolescente com o corpo, privilegiando a construção de um espaço mental que permita a abordagem de sensações e emoções intoleráveis para o reconhecimento mental do corpo e do senso de identidade corpórea.

O desafio é encorajar os analisandos a emergir do abismo sem dimensões da não existência. Por essa razão, Lombardi considera que um elemento central da ação terapêutica da psicanálise seja a descoberta e o trabalho de elaboração de experiências sensoriais e corporais para vivenciar formas autênticas de existência subjetiva.

A tolerância à escuridão e ao mistério é especialmente necessária quando lidamos com supostos casos graves, que confrontam as limitações na questão de traduzir e comunicar nossa experiência analítica, dado que as verbalizações disponíveis não fornecem formulações adequadas ao psicanalista. Esse problema torna-se ainda mais complexo pelo fato de que, quando procuramos transmitir a experiência clínica, nenhum vértice reconhecido atualmente é adequado. Portanto, os psicanalistas só podem sobreviver num contexto aberto à busca de novos vértices, alinhados com o que se vivencia com analisandos mais extremos.

Lombardi ressalta que a ênfase insistente de Bion no significado inefável da experiência da psicanálise e em O como a realidade última deixa sua abordagem aberta para uma tendência interpretativa de natureza espiritualista e mística. Assim, ele sugere uma justaposição dialética das proposições de Bion com a "inefável dimensão das sensações físicas", como a expressão dos níveis mais profundos e concretos do inconsciente, ampliando dessa forma as implicações de suas hipóteses.

No nível sensorial, podemos descobrir dentro de nós mesmos um novo mundo que tem aquelas características assustadoras e evolutivas que Bion atribuiu a O. A evolução acontece num nível sensorial no analista e envolve a tolerância a fenômenos desconhecidos com características explosivas, os quais duram até que alguma definição representativa e simbólica seja encontrada.

No último capítulo, de maneira bastante significativa, Lombardi aborda o tema da claustrofobia corpórea e da música usando como modelo a ópera Fidelio, de Beethoven. Segundo sua leitura, as relações entre os diferentes personagens expressam a profundidade do conflito corpo-mente. Nessa ópera, Leonore/Fidelio busca resgatar seu marido (Florestan), aprisionado num calabouço/escuridão, ameaçado por uma mente onipotente e controladora (Don Pizarro), que tenta prevalecer - mesmo ao ponto da aniquilação através do assassinato - sobre o corpo e a experiência sensorial.

Essa ópera representa as vicissitudes de uma mente disposta a confrontar e a permanecer conectada a essas profundas sensações do corpo. Na concepção do autor, Beethoven elaborou-a buscando se reconectar com seu corpo, aceitando a surdez.

A conclusão do livro inspira simpatia. Lombardi traz a ideia de que a familiaridade com a arte, com a música em especial, sustenta a construção de uma rede de interações por meio da qual o corpo e a mente podem conversar entre si, de modo semelhante ao que acontece no trabalho onírico. A resposta estética à beleza nos apresenta um instante no qual a mente é capaz, mediante a experiência com a arte, de contemplar as inefáveis sensações do corpo.

Lombardi encerra o livro dizendo que o analista pode reconstruir a ligação entre corpo e mente através de um consistente cuidado com sua relação com o corpo, sugerindo ser possível cultivá-la pela abertura à culinária, à degustação de vinho ou, de acordo com as propensões de cada um, ao esporte, à jardinagem ou ao cuidado com animais de estimação. Esses movimentos podem oferecer proteção contra o perigo de o corpo e a mente habitarem dois reinos incompatíveis.

 

 

Correspondência:
Thais Helena Thomé Marques
Rua Doutor Granadino de Baptista, 424
17502-180 Marília, SP
Tel.: 14 3454-1637
thmarq@terra.com.br

 

 

1 Dissociação corpo-mente em psicanálise: desenvolvimento após Bion.

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