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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

 

EDITORIAL

 

Suicídio1

 

 

Marina Massi

Editora

Correspondência

 

 

Fechamos o ano de 2019 com o tema Suicídio, importante para a clínica psicanalítica, para a sociedade em geral e para a esfera das políticas públicas na área de saúde mental.

Na carta-convite, salientamos que o objetivo da equipe editorial neste número era trazer alguma luz para a compreensão do suicídio em nosso tempo. Trata-se de um tema sempre difícil e controverso e, quando mudanças sociais e psíquicas implicam reconfigurações dos laços sociais, a amplitude da questão passa a demandar esforços reflexivos cada vez mais profundos. Assim, convocamos psicanalistas e cientistas sociais a uma refinada análise transdisciplinar da subjetividade do ato suicida na contemporaneidade, considerando a contemporaneidade a partir da formulação de Giorgio Agamben: "uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo" (2010, p. 59) - atitude muito próxima da que o método psicanalítico exige de nós, analistas.

 

Algumas palavras sobre o tema

Podemos supor que a morte voluntária esteve presente desde os primór-dios da humanidade. A morte tem um lugar especial nas diversas civilizações e culturas. Na civilização ocidental, por exemplo, até por volta de 1600, o tema era visto como um dos mais graves crimes, levando a variadas penalizações, condenações e vergonha à família do morto.

A morte voluntária passou a ser denominada suicídio por volta de 1700 e demorou a ser incluída nos estudos ocidentais sobre a morte natural. Por ser considerada crime, não era contabilizada pela Igreja católica como óbito natural. Conforme aponta Minois, a existência dessa grande lacuna sobre a morte voluntária relaciona-se com o fato de que seu significado "não é de ordem demográfica, mas filosófica, religiosa, moral e cultural. O silêncio e a dissimulação que a rodearam durante muito tempo instauraram um clima de mal-estar em torno dela" (2018, p. 2).

Na própria psicanálise podemos nos indagar se esse mal-estar persiste. Nesse sentido, parece-nos muito significativa a receptividade de nossos colaboradores ao convite da RBP. Se ainda eram escassos os trabalhos dedicados ao tema, o interesse em refletir sobre ele encontrou neste número outro destino, o que talvez ofereça aos psicanalistas subsídios relevantes tanto para pensar a clínica quanto para desenvolver a teoria.

Como veremos nos artigos aqui publicados, não se trata de um suicídio, mas de muitos suicídios. Suas causas são diversas. Suas formas incluem desde atos impulsivos, estudados (nos quais uma carta explicita o desejo do sujeito) ou silenciosos (em que o próprio suicida não se dá conta de sua conduta destrutiva) até tentativas malsucedidas e repetidas. Seus sentidos também variam para o sujeito, assim como aquilo que ele pretende comunicar ao outro, o que mostra sua estreita relação com a subjetividade, o espaço e o tempo.

Segundo Gilson lannini,

no século XXI, o consórcio entre ciência, tecnologia e capitalismo sem fronteiras promete saídas menos dolorosas, como a Sarco, uma cápsula de eutanásia, impressa em 3D, que administraria nitrogênio líquido em um dispositivo com design futurista. Seu criador, Philip Nitschke, promete para 2030 o acesso universal a seu dispositivo. ... Na Suíça, onde o suicídio assistido é legalizado, empresas como Dignitas e Life Circle atraem interessados de vários países. Os debates sobre suicídio assistido e eutanásia avançam em muitos países, como a Espanha, a Holanda, a França e alguns estados dos eua. Esses exemplos mostram como a morte voluntária ganha contornos inéditos. (2019, p. 27)

Os fatos mencionados desafiam a compreensão desses fenômenos e de suas consequências no humano e no social. E mais: apontam para a intervenção das pesquisas científicas no ritual da morte voluntária, ao anunciar uma possibilidade de controle da morte sem dor física.

Portanto, para a equipe editorial, o importante era oferecer um espaço reflexivo, não alarmista, para pensar esse tema tão complexo e ainda silencioso em nossas instituições, como o silêncio sobre o suicídio de colegas psicanalistas, a começar pelo criador da psicanálise - suspeita-se que Freud tenha tido uma morte voluntária, e não natural.

O suicídio de colegas como Viktor Tausk, Wilhelm Stekel, Paul Federn, Bruno Bettelheim e Gilles Deleuze, para citar alguns casos, põe a questão mais perto dos psicanalistas e nos convida a ampliar o diálogo sobre o assunto entre nós, para além da clínica, que já traz o suicídio porta adentro de nossos consultórios.

 

A montagem editorial do vol. 53, n. 4

Recebemos espontaneamente 17 artigos, da Febrapsi e externos, em resposta à carta-convite, o que demostra o interesse e a preocupação com o tema escolhido pela equipe editorial da RBP. Agradecemos a participação de todos que nos enviaram seu trabalho, o que nos permitiu compor um número com diferentes reflexões, olhares e práticas, tornando-o muito mais potente.

Fizemos alguns convites para a seção "Interface", procurando garantir a transdisciplinaridade, que consideramos fundamental para alcançar a complexidade reflexiva que nos propusemos no início do trabalho editorial deste número.

A fim de facilitar a organização da leitura, optamos por apresentar os autores da Febrapsi na seção temática e os autores externos à ipa na seção "Outras palavras", já que havia material para fechar o número só com artigos sobre suicídio.

Na seção "História da psicanálise", temos o privilégio de publicar um importante texto histórico, cuidadosamente traduzido para a RBP. Esperamos que os leitores apreciem esse achado.

Na seção "Projetos e pesquisas", há um trabalho de abordagem da clínica extensa, interdisciplinar, que também fala sobre o suicídio.

Por fim, na seção de resenhas, o tema foi contemplado com a resenha de um livro recém-lançado que analisa a obra O suicídio, de Émile Durkheim, publicada em 1897, talvez o primeiro trabalho científico a tomar o suicídio como objeto de estudo nas ciências sociais.

 

Considerações finais

O suicídio como tema foi um desafio que a RBP aceitou enfrentar, o que resultou em um número que, do nosso ponto de vista, cumpre o propósito de tornar-se uma referência significativa para psicanalistas, analistas em formação, psiquiatras, pesquisadores, estudantes universitários - enfim, para aqueles que correm o risco de trabalhar com a realidade social, a subjetividade e o funcionamento psíquico de pessoas que sofrem com pensamentos mórbidos, ou que se sentem internamente tomadas pela fantasia de se suicidar, ou que realizam o ato. O número contempla as indagações sobre os alcances e limites da psicanálise e de suas clínicas no enfrentamento desse sofrimento psíquico.

Para finalizar, agradecemos aos colegas da equipe editorial, aos coeditores nacionais e internacionais, à assistente editorial Nubia Brito Bueno, aos revisores, tradutores e pareceristas, a Mireille Bellelis, Lis Gráfica e bibliotecárias da sbpsp por mais um ano de trabalho em conjunto.

A todos vocês, o nosso sincero agradecimento pela enorme colaboração e disposição para fazer este projeto editorial avançar.

Aos leitores, desejamos uma instigante leitura.

 

Referências

Agamben, G. (2010). O que é o contemporâneo? e outros ensaios (V. N. Honesko, Trad.). Chapecó: Argos.         [ Links ]

lannini, G. (2019). O tabu do suicídio. Cult, 22(250),26-28.         [ Links ]

Minois, G. (2018). História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária (F Santos, Trad.). São Paulo: Unesp.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marina Massi
marinamassieditora@rbp.org.br

 

 

1 Agradeço a leitura e as sugestões da editora associada Leda Codeço Barone.

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