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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019

 

SUICÍDIO

 

Além dos limites: tentativas de suicídio na adolescência

 

Beyond limits: suicide attempt during adolescence

 

Más allá de los límites: intentos de suicidio en la adolescencia

 

Au-delà des limites: des tentatives de suicide chez les adolescents

 

 

Silvia Flechner

Membro titular da Associação Psicanalítica do Uruguai, com funções didáticas

Correspondência

 

 


RESUMO

Ao considerar o adolescente e sua tentativa ou consumação de suicídio, enfrentamo-nos com duas grandes problemáticas: por um lado, o desejo de morte ou a morte; por outro, a adolescência como trânsito da vida, no qual o adolescente nos confronta de maneira contínua. Uma relação destrutiva com sua psique e com seu corpo ou ataques contra ele mesmo que se manifestam por meio de condutas autodestrutivas podem eclodir na adolescência, pondo em xeque as bases narcisistas sobre as quais se apoia um psiquismo sumamente frágil, que o conduz a realizar ações - de forma consciente ou inconsciente - que atentam contra a sua vida. Do nosso lugar profissional, o trabalho analítico com esses jovens nos compromete e desafia na maioria das vezes, conduzindo-nos por caminhos altamente perigosos, em que nossos próprios pontos de referência podem dissipar-se. O trabalho com os afetos é o que mobiliza o analista, porque o processo representativo pode não ser forte o suficiente para ser expresso e contido. O material clínico que se apresenta neste trabalho tenta explicitar algumas das situações que aparecem na adolescência, que nesse caso compõem a vida, a sexualidade e a morte.

Palavras-chave: adolescência, suicídio, agressividade, violência, sexualidade, passagem ao ato


ABSTRACT

By mentioning adolescents and their suicide attempt or action, we face two main problems: on one hand, the wish to die or death itself; on the other hand, adolescence as life transition point in which adolescents are constantly questioning. A destructive relationship with their psyche and body or self-attacks against themselves that manifest through self-destructive acts may cause an outbreak at adolescence. This may threaten the narcissist basis on which extremely vulnerable psyche is supported, leading them to action-consciously or unconsciously - to attempt against life. From our professional view, the analytical work with these adolescents commit and challenge us most times, leading us through significantly dangerous paths, in which our own points of reference may disperse. Working with affections is what mobilizes the analyst as the representative process may not be strong enough to be expressed or restrained. The clinical material included in this work attempts to explain some of the situations in which are presented during adolescence, that in this case is about life, sexuality and death.

Keywords: adolescence, suicide, aggression, violence, sexuality, passage to the act


RESUMEN

Al referirse al adolescente y sus intentos o consumación de suicidio, nos enfrentamos a dos grandes problemas: por un lado, el deseo de muerte o la muerte; por otro, la adolescencia como tránsito de la vida en que el adolescente nos confronta de forma constante. Una relación destructiva con su psiquis y con su cuerpo o ataques contra él mismo que se manifiestan a través de conductas autodestructivas, pueden generar una eclosión en la adolescencia, dejando en jaque las bases narcisistas sobre las cuales se apoya un psiquismo sumamente frágil que lo conduce a realizar acciones - de forma consciente o inconsciente - que atentan contra su vida. De nuestro lugar profesional, el trabajo analítico con esos jóvenes nos compromete y nos desafía la mayoría de las veces, conduciéndonos por caminos altamente peligrosos, en los que nuestros propios puntos de referencia pueden disiparse. El trabajo con los afectos moviliza al analista, porque el proceso representativo puede no ser lo suficientemente fuerte como para ser expresado y contenido. El material clínico que contiene este trabajo intenta explicitar algunas de las situaciones que aparecen en la adolescencia, que en este caso componen la vida, la sexualidad y la muerte.

Palabras clave: adolescencia, suicidio, agresión, violencia, sexualidad, pasaje al acto


RÉSUMÉ

En parlant des adolescents et de leurs tentatives ou consommation de suicide, nous faisons face à deux grandes problématiques: d'un côté, le désir de mort ou la mort elle-même; de l'autre, l'adolescence comme passage de la vie à laquelle l'adolescent nous oblige à faire face constamment. Un rapport destructif avec sa psyché et avec son corps ou des attaques contre lui-même, qui se manifestent par l'intermédiaire de conduites autodestructives, peuvent donner lieu à une éclosion pendant l'adolescence, en tenant en échec les bases narcissiques sur lesquelles s'appuie un psychisme extrêmement fragile, ce qui conduit le jeune à mener des actes - d'une façon consciente ou inconsciente - qui attentent contre sa vie. De notre place professionnelle, le travail analytique envers ces jeunes, la plupart des fois, nous compromet et nous lance un défi, en nous conduisant par des voies trop dangereuses où nos propres repères peuvent se dissiper. C'est le travail avec les affects qui mobilise l'analyste, parce que le processus représentatif peut n'être pas assez fort pour être exprimé et contenu. Le matériel clinique que comporte ce travail-ci essaye d'expliciter quelques-unes des situations qui apparaissent chez les adolescents, lesquelles, dans ce cas, comprennent la vie, la sexualité et la mort.

Mots-clés: adolescence, suicide, agression, violence, sexualité, passage à l'acte


 

 

As tentativas de suicídio e o suicídio de adolescentes causam enorme impacto, angustiante e inesperado, pois um jovem está escolhendo morrer quando a vida para ele praticamente não começou.

Ao falarmos do adolescente e de suas tentativas de suicídio, ou ainda da consumação dele, enfrentamos duas grandes problemáticas: por um lado, o desejo de morte ou a morte; por outro, a adolescência como trânsito da vida, no qual o adolescente nos confronta de maneira contínua com a sexualidade, a vida e a morte.

Serão os movimentos pulsionais que entram em jogo de um modo peculiar que, em grande parte, ficarão materializados no agir - agir esse que, em muitos casos, toma a forma de um ato intrusivo e violento para o próprio adolescente ou para o seu meio.

Na maioria dessas situações há ações mais ou menos graves, mas o corpo é sempre o receptor dos golpes mais duros. É o corpo, em última instância, quem silencia de forma definitiva o psiquismo perturbado, embora seja ele mesmo quem determina a agressão e a estocada final.

As primeiras marcas que vamos descobrindo em cada situação clínica apontam para entornos muito graves, em que a violência materna (Flechner, 2013) irrompe com toda a sua força e deixa, por diversos motivos, recém-nascidos abandonados à própria sorte e expostos a seríssimos danos no seu psiquismo.

Trata-se de situações que se manifestam de forma cruel e apontam o estreito vínculo entre a ideação suicida, produto de uma estruturação psíquica falida desde os inícios da vida, como acontece na maior parte desses casos, e o corpo, receptor final dessas falhas.

Em nossa condição profissional, o trabalho analítico com esses jovens nos compromete e desafia na maior parte das vezes, levando-nos por caminhos altamente perigosos, em que nossos próprios pontos de referência podem se esvair. O que mobiliza o analista é o trabalho com os afetos, porque o processo representativo pode não ser suficientemente forte para ser expresso e contido. Quando os adolescentes nos fazem pensar na morte, não apenas evocam um cenário fatal, mas podem chegar a encená-lo (Chabert, 2004).

No caso de adolescentes, em grande parte, será a clínica que indicará os diferentes aspectos que entrarão em jogo. A corrente narcisista, assim como a corrente objetal, irá advertindo o púbere e seu meio a respeito das mudanças que estão por acontecer.

Segundo o critério de Hale (2008), não há distinção entre suicídio e tentativa suicida. Ele sugere que o ato suicida acontece dentro de um amplo espectro, apresentando fundamentalmente, e em todas as suas manifestações, o desejo de matar o corpo. As fantasias que levam a cometer suicídio são múltiplas e complexas. Geralmente, trata-se de contradições internas, das quais a mais óbvia é o desejo de viver e o desejo de morrer. Expressa-se, assim, o desejo consciente ou inconsciente de matar o próprio corpo. Isso se diferencia dos atos de automuti-lação, nos quais a intenção não é matar, e sim torturar o corpo.

A noção de fantasias suicidas foi desenvolvida por Campbell (2008) e Hale (2008). Na sua formulação, ambos captam o dilema daqueles pacientes para quem nem a separação nem a intimidade na díade mãe-filho são possíveis. A separação gera o terror do abandono, enquanto na intimidade aparece o medo de ficar cativo. Nesses casos, o suicídio aparece como uma "solução" e percebe-se uma avaliação pouco realista do impacto dele.

 

Agressividade e violência

Pensar a agressividade e a violência na adolescência implica considerar seus múltiplos sentidos, que vão da sã afirmação do espaço próprio em relação ao outro à repetição de experiências traumáticas violentas, que incluem situações como a violação dos limites espaçotemporais e a dos limites físicos, tanto próprios quanto alheios.

Pressionado pelas transformações físicas, assim como pelas mudanças em relação ao espaço que ocupa dentro da família e da sociedade, exposto à invasão de excitações internas e externas, o adolescente mostra a complexidade de sua organização psíquica, e também os riscos possíveis de descompensação mental (Flechner, 2005).

A agressividade e a violência na adolescência são apenas uma parte das várias situações que incitam e provocam em nós a inquietante busca de respostas a perguntas que, a partir da teoria e da clínica, impedem de ficarmos indiferentes quando fazemos referência ao devir adolescente.

As atitudes individuais ou coletivas que os analistas, habitualmente, denominam violentas corresponderiam, em grande parte, ao que Freud definiu como próprio da agressividade, ou seja, a mistura pulsional realizada de forma secundária, a partir de dois grandes dinamismos de base. Em Totem e tabu (1913/1986c), Freud afirma que uma natural tendência a matar está presente, em todos os indivíduos, nas origens do inconsciente.

Esses elementos servem para começarmos a nos questionar a respeito do próprio termo violência: teria ele nascido de um conceito psicanalítico?

A imposição de um sentido realizado pela mãe sobre o bebê levou Piera Aulagnier a um notável desenvolvimento metapsicológico com seu conceito de violência primária, usado no sentido de instituir o recém-nascido como sujeito ao irromper no seu espaço psíquico no momento de encontro com a voz materna: "O fenômeno da violência, como ela é entendida aqui, responde em primeiro lugar à diferença que separa um espaço psíquico, o da mãe, em que a ação de repressão já aconteceu, da organização psíquica própria do infans" (1975/1988, p. 34).

As diferentes acepções que atribuímos ao termo poderiam conduzir a outro questionamento: se a violência é caracterizada por privar de liberdade, coagir pelo uso da força, como usá-la para determinar uma ação fundante no estabelecimento de um espaço psíquico?

Isso nos levaria a pensar que diferenciar os termos violência e agressividade, em muitas ocasiões, pode ser um problema, pois criaria certo esmorecimento de suas margens, tornando ambos menos diferenciáveis, dificultando estabelecer seu lugar na clínica. O trabalho que é possível realizar, ao menos parcialmente, teorizando sobre esses conceitos remete a uma situação bastante obscura quando nos aproximamos da clínica, porque ela impele a considerar, uma e outra vez, que é sobre uma dupla trama, narcisista e objetal, que também esses conceitos vão sendo entrelaçados.

Chabert (2017) esclarece que o conceito de pulsão de morte está muito carregado com a palavra morte, de modo que seu uso é submetido a uma surpreendente confusão de línguas. Freud acaso convoca a morte? Ele enfatiza um movimento antagônico à libido e à pulsão de vida, que empurra para a desvinculação, abrindo-se silenciosamente contra elas para impedir ou até mesmo minar a busca de uma união.

Como afirma Perelberg (1999), sabemos que a literatura sobre a agressão é ampla em relação à psicanálise. Apesar de haver diferentes fantasias associadas ao suicídio, Campbell (1999) sugere que cada uma traz consigo o desejo de sobrevida do self para emergir com uma imago materna idealizada.

 

As primeiras interações mãe-bebê

A qualidade das primeiras interações entre a mãe e o bebê pode resultar decisiva na estruturação de fundo de certos tipos de funcionamento psíquico. Uma mãe mais ou menos adequada, no sentido de Winnicott (1972), tende a sentir-se "fusionada" com seu bebê nas primeiras semanas. Winnicott chama isso de preocupação materna primária e assinala que, se o desejo materno de se fundir com o lactante continuasse depois dessa fase normal, a interação se tornaria persecutoria e patogênica para a criança.

Nesse acordo de dois, cada um é instrumento de gratificação do outro. Entretanto, a mobilidade do bebê, seus impulsos afetivos, sua inteligência, sua sensualidade e sua erogeneidade somente podem ser desenvolvidos na medida em que a mãe investir positivamente em todos esses aspectos. Mas ela pode também inibir a intensificação narcisista desses elementos vitais para a estrutura somatopsíquica precoce da criança, sobretudo se o bebê tiver que preencher faltas no mundo interno da mãe (Winnicott, 1979). Disso deriva que, considerando-se as angústias, os medos e os desejos que a mãe experimenta e transmite à criança, ela corre o risco de provocar o que foi conceitualizado por Chabert (1999), e por outros, como uma relação aditiva à sua presença e ao seu cuidado. Ou seja, a mãe se encontra em um estado de "dependência" em relação ao bebê. Os objetos aditivos resolvem apenas momentaneamente a tensão afetiva, pois são soluções somáticas, e não psíquicas, em substituição da função do afazer materno primário faltante.

No que diz respeito à tentativa de suicídio especificamente, percebemos a existência de diferentes véus - os quais talvez passem inadvertidos - que o adolescente pode adotar na tentativa suicida. Sabemos que a depressão pode ser uma condição necessária, mas não suficiente para esse ato. As depressões severas estão frequentemente vinculadas com tentativas de suicídio. Não obstante, na clínica nos encontramos com ideações suicidas que não necessariamente implicam uma passagem ao ato.

Que condições devem ser dadas, então, para que o fato aconteça?

 

O agir, a passagem ao ato

Uma relação destrutiva com a psique e com o corpo, ataques contra si mesmo, manifestados por meio de condutas autodestrutivas, podem gerar, na adolescência, uma eclosão que ponha em xeque as bases narcisistas sobre as quais se apoia um psiquismo sumamente frágil.

A tentativa de suicídio ou o suicídio serão convertidos, assim, em um momento no qual surgirá uma fenda entre pensamento e ato. O agir se afastará da via da renúncia em busca da satisfação mortífera imediata, deixando suspensos, desse modo, os parâmetros espaçotemporais no que diz respeito à representação. A capacidade de espera para gerar a ilusão torna-se incontrolável, desencadeando a descarga motriz.

Um momento ou rapto ansioso no sentido de uma emergência impulsiva conduzirá o adolescente em risco a realizar aquele ato. Para isso, certo estado de pavor e desespero deverá ter se apoderado dele (Ladame, 1995).

Também encontramos situações como o homicídio precipitado pela vítima (Cassorla, 2018). Nesses casos, a vítima não realiza diretamente o ato suicida, mas estimula alguém a matá-la. A pessoa se põe em situações de risco, frequentando locais perigosos ou desafiando pessoas agressivas. A maioria dos homicídios ocorre dentro das famílias e, por vezes, verificamos que a vítima intuiu uma forma de fazer com que o futuro homicida perdesse a cabeça e a agredisse até matá-la.

Outro fator que Cassorla destaca são os homicídios de jovens que nossa própria sociedade origina. Nessas situações são identificados diferentes tipos de vítima: jovens com componentes melancólicos, jovens com caraterísticas impulsivas, jovens que durante a época de resolução dos conflitos próprios da adolescência são vitimizados pela sociedade por morarem em locais violentos, sem oportunidades, tendo que "demonstrar sua coragem", submeter-se

Silvia Flechner a líderes carismáticos, por idealização ou por medo, e enfrentar por meio de mecanismos de negação a tomada de consciência da própria morte.

 

O caminho aditivo ante a dor psíquica e a angústia

Em determinados momentos da nossa vida, todos recorremos a comportamentos aditivos, em especial quando algum acontecimento nos perturba de um modo não habitual, até o ponto de ficarmos incapazes de lidar com nossos afetos ou de refletir sobre eles de maneira construtiva. Em tais circunstâncias, tendemos a comer ou beber demais, tomar medicamentos em excesso ou assumir compromisso numa relação, tanto sexual quanto de outro tipo, para fugir do sofrimento psíquico. Poderiamos dizer, então, que às vezes a solução que adotamos ante determinados conflitos e dores mentais, que por momentos resultam incontroláveis, pode se transformar em um sintoma aditivo. Este aparece como o único alívio com que contamos para suportar o sofrimento e a dor (Braconnier, 1995).

No adolescente, como referido por Jeammet (2004), o caminho aditivo é uma solução à intolerância afetiva. O adolescente pode se sentir afetivamente acorrentado e preso, surgindo assim os mesmos objetos de adição: cigarro, álcool, comida, narcóticos, medicamentos, além de anorexias/bulimias ou gravidez adolescente. No entanto, não é essa a escravidão em si. Pelo contrário, esse objeto é experimentado como essencialmente "bom", como uma promessa de prazer e um atenuante temporário da angústia e da dor psíquica, até se tornar, em algumas ocasiões, o objetivo que dá sentido à vida. Trata-se, então, de um objeto idealizado, pois lhe é atribuído o poder de resolver magicamente as angústias e, de alguma forma, tirar o sentimento de morte interna.

 

A continência

O risco só pode ser controlado de forma relativamente segura se as ansiedades do paciente, da família, do pessoal especializado e da instituição onde trabalham se encontrarem adequadamente contidas. Contenção é um termo originalmente introduzido por Bion (1988) para descrever a função de identificação projetiva na situação analítica, em paralelo com a maneira como o bebê projeta suas angústias insuportáveis na mãe, que as contém, respondendo mediante a modificação das ansiedades do bebê por sua reverie. Esse seria o modo de suportar as ansiedades intoleráveis, moderá-las e oferecê-las de volta ao bebê de uma forma tolerável, promovendo um desenvolvimento mental e físico são.

A função do analista segue alguns desses passos, contém as projeções do paciente em um estado de reverie, porém respondendo com interpretações apropriadas. Winnicott (1972) descreve isso de forma similar com a função de holding do analista e da situação analítica, pela qual ele oferece uma atmosfera em que o paciente pode se sentir seguro e contido, ainda que durante uma regressão severa.

No entanto, devemos ter presente que, nessas situações violentas e perigosas para a vida, nos encontramos trabalhando muito além dos limites, à beira de uma situação que pode ser catastrófica para o próprio paciente ou para o seu meio. O trânsito por esse período será nosso maior inimigo, uma vez que passar ao ato não dá lugar ao pensamento.

Pelo contrário, essas situações nos situam permanentemente como analistas no limite da nossa própria capacidade de pensamento. O questionamento que surge é como criar, no eixo transferência-contratransferência, um espaço dentro da sessão analítica que incorpore a capacidade de pensar do paciente e que, entre outras coisas, também antecipe a ação (Flechner, 2005).

Outras vezes eclodem diferentes aspectos psicopatológicos que expressam situações novas e desconhecidas - tanto para o adolescente como para a sua família -, reavivando determinadas impressões ou marcas traumáticas já experimentadas no começo da sua vida, reativando processos que, até esse momento, teriam ficado temporariamente encobertos (Flechner, 2010).

As transformações físicas, a perda dos pontos de referência da infância, as mudanças de parâmetros espaçotemporais, bem como de parâmetros corporais, incidem nas bases únicas e irrepetíveis sobre as quais vai se formando o psiquismo do recém-nascido até chegar à adolescência.

Essas bases atravessarão uma nova e longa passagem, na qual ficará em jogo a sua história, atrelada a uma nova história que estará por ser inscrita, dentro do meio familiar primeiro, e depois no meio social. Embora eu não tome o marco social como centro do trabalho, fica assinalado que esse será um ponto fundamental ao longo de todo o processo de desenvolvimento e estruturação do psiquismo, ganhando um espaço preponderante na adolescência.

Por meio da clínica, perceberemos os complexos laços que vão se atrelando, como em um palimpsesto, mexendo nas bases da problemática narcisista e objetal própria do despertar de um corpo sexualmente maduro e de um psiquismo cujas marcas se reacenderão a posteriori, deixando abertas para o adolescente, no seu trabalho com o analista, diferentes possibilidades de novas inscrições, quando isso for possível.

 

O analista confrontado com pacientes adolescentes em risco

Para tentar compreender a significação do impulso autodestrutivo no adolescente e o caminho interior que o determinou, dispomos de um instrumento privilegiado: a relação analítica.

Se o paciente aceitar o tratamento após uma ou várias tentativas destrutivas, manifestas ou encobertas, ele permitirá começarmos a trabalhar em cima de algumas hipóteses que precisaremos formular a partir do entendimento das áreas mais frágeis que expressarão seu mundo interno, em torno das quais gravitam, entre outras, as tendências suicidas. Libertá-lo de sua fascinação pela morte vai requerer ajudá-lo a compreender aquilo que tentou consumar. Isso significa integrá-lo e, para tanto, será indispensável trabalhar o momento traumático de forma tal que não se constitua em um ponto de constante atenção e de espanto e, ao mesmo tempo, procurar impedir que reapareça de modo repetitivo em outros atos. A tentativa é que essa angústia, esse terror, não anule o pensamento, e sim se torne um verdadeiro alarme que permita um primeiro ponto de ancoragem, que passará necessariamente pela figura do analista.

 

O sofrimento de Ana

Um colega cardiologista me solicitou que atendesse os pais de uma adolescente de 18 anos que, dois anos antes, tinha passado por um transplante de coração. Embora o procedimento tivesse sido bem-sucedido, a jovem fazia o possível para que suas condições não melhorassem e assim terminar de vez com a própria vida.

Meu colega me transmitia uma mistura de angústia e raiva, e me explicava que são muitas as análises realizadas (entre elas, as psicológicas) para saber se o órgão do doador será compatível com os órgãos do receptor. São difíceis os caminhos pelos quais é necessário transitar para a família do doador aceitar a doação do órgão e os infindáveis tratamentos posteriores para chegar à estabilização fisiológica e mental do receptor, de modo que ele consiga, finalmente, viver com o órgão estranho que substituiu o seu próprio. Nesse caso, tratava-se do transplante de um coração que ainda funcionava em uma pessoa com morte cerebral, e que continuaria batendo no corpo de outra pessoa cujo coração estava prestes a parar. Acrescente-se a isso o que significa, do ponto de vista real e imaginário, "renascer" depois de uma operação dessa natureza, com um órgão proveniente de um doador que morreu, e que será aproveitado por outra pessoa, a qual, no caso de haver incompatibilidade, do ponto de vista imunológico, também morrerá.

Os pais de Ana estavam claramente desesperados. A mãe contava que o problema cardíaco se manifestou desde o nascimento da menina e que, a partir de então, foram advertidos de que na adolescência seria necessário operá-la. Mas naquele momento a adolescência parecia um tempo muito distante e tentaram dar a Ana uma vida normal, tanto quanto lhes permitiam suas condições econômicas, que por certo eram muito limitadas. De qualquer forma, a problemática de Ana permeava as relações familiares, que pareciam harmônicas. Os irmãos eram agressivos com ela, provavelmente pelo cuidado preferencial que sentiam por parte da mãe com a filha. A mãe e Ana "não se desgrudavam", explicava o pai. Segundo palavras da mãe, Ana sempre "deixava que batessem nela".

Também existia uma relação de maus-tratos entre os pais. Predominantemente era a mãe de Ana que desvalorizava o pai. Ele trabalhava muito, mas nunca trazia para casa o suficiente. O pai era tolerante durante longos períodos, até revidar maltratando a esposa, chegando à agressão física, o que tinha um efeito nefasto e devastador em Ana, fazendo com que ela se escondesse embaixo da cama, encolhida e trêmula.

Ana tinha uma atuação escolar muito boa, mas começaram a ficar evidentes algumas situações problemáticas com o início do ensino médio. Seu desempenho piorou claramente, até que deixou de frequentar as aulas para ficar com sua turma de amigos, desinteressando-se definitivamente pelos estudos. Os problemas cardíacos passaram a se agravar na puberdade, justo no momento em que Ana experimentava suas primeiras mudanças corporais, sua menarca. Ela começava a se sentir e se mostrar diferente do resto das meninas da sua idade. Tornou-se ainda mais retraída. Seu baixo rendimento escolar e o fato de não querer assistir às aulas fizeram Ana procurar novos amigos, os quais segundo a mãe eram "más companhias".

Nessa época, Ana já estava na lista de transplante para fazer a intervenção assim que aparecesse um doador, o que aconteceu quando tinha por volta de 16 anos. O transplante foi um sucesso, embora o comportamento de Ana continuasse, segundo os pais, "de mal a pior".

Quando sugeri aos pais a possibilidade de entrevistar Ana, eles me disseram que naquele momento não seria possível, porque dois dias antes ela havia tentado suicídio - tinha cortado os pulsos no banheiro de casa, enquanto se encontrava sob o efeito de drogas. A combinação de drogas pesadas com a medicação indicada pelo transplante (imunossupressores etc.) era incompatível e implicava um sério risco para a jovem. A psiquiatra que a recebeu na emergência do hospital decidiu interná-la e medicá-la, algo que ainda não tinha sido feito.

De certa forma, os pais se mostravam aliviados com a internação. Eles já não conseguiam ter paz, visto que Ana saía sem avisar e não voltava antes da madrugada, muitas vezes carregada por alguns amigos, que a deixavam na porta de casa e partiam rapidamente para não ter que dar explicações. Em outras ocasiões, Ana voltava embriagada para casa, e assim sua vida, bem como a de seus pais e irmãos, passava da aflição de não encontrar forma de ajudá-la ao ódio e ao desejo de morte encoberto e negado devido à impotência provocada pela situação que atravessavam.

Ana foi virando uma jovem agressiva, desrespeitosa, intrometida e atuadora dentro da vida familiar. Sua atitude também era violenta dentro do grupo de amigos, mas o próprio grupo era definido como violento. Mostrava-se promíscua em suas relações sexuais, que eram ora homossexuais, ora heterossexuais, e apresentavam características sumamente agressivas, tanto para ela quanto para o grupo.

Em diversos momentos, durante as sessões de análise, ressurgia o fato de que, devido ao transplante e às complicações decorrentes dele, não poderia ter filhos. O relato dos pais deixava claro que Ana estava fazendo o possível para terminar com a própria vida.

Permaneci à espera de Ana para vê-la ao sair da internação. Meu propósito era investigar se ainda existia nela algum desejo de viver. Ana chegou à consulta acompanhada dos pais algumas semanas depois. Entrou sozinha no consultório. Encontrei uma menina muito magra, vestida à maneira hippie, com tecidos de várias cores e texturas (umas sobre as outras), inúmeros brincos pendurados e uma boina de cor berrante na cabeça. Notava-se, no conjunto, algo de extravagante. Seu cabelo muito curto e seus traços faciais não deixavam claro se eu estava diante de um homem ou de uma mulher.

Ficamos a sós, conversando, ela e eu, e rapidamente Ana começou a falar com um tom de extrema confiança, com uma linguagem típica de jovens viciados, em que bagulho (a droga), peteleco de pó (cocaína) e tomar um pico (heroína intravenosa) eram expressões que dava por certo que eu entenderia. Sua falta de percepção do outro se instaurava de forma rápida, e bastava deixá -la falar um pouco para perceber que todos os seus começos tinham sido problemáticos. Referia-se à sua vinda ao mundo com uma malformação cardíaca congênita e às suas mudanças corporais a partir da puberdade, que a tomaram totalmente de surpresa, gerando uma grande confusão em relação às diferenças entre os sexos. Também, aos seus inícios pelos caminhos da sexualidade e ao fato de não poder conceber a ideia de fazer projetos de vida a longo prazo, porque para ela sempre havia o risco de que o que levava dentro parasse de funcionar. Assim falava Ana:

Eu vivo o dia a dia. Não sei nem quero saber o que vai acontecer amanhã. Se hoje tem bagulho, uso; amanhã eu vejo como consigo de novo. Não me interessa nada, nem estudar, nem trabalhar, nem nada. Não me venha com esse papo de que estou deprimida. A psiquiatra já me deu a medicação e estou cagando para ela. Tomo porque minha velha me faz tomar, senão nem isso. E agora a única coisa que me fode a vida é não me deixarem sair e ficar com meus amigos.

Ao perguntar por seus amigos, quem eram e o que faziam, disse:

Eles são que nem eu: vivem o dia a dia. Também não fazem coisa nenhuma. A gente curte e sai por aí. Às vezes roubamos para conseguir mais bagulho e às vezes para transar. Às vezes namoramos. Eu já tive duas namoradas e outros namorados. Não duramos muito, alguma festinha e só. Para quê? Igual, filhos não vou poder ter nunca. Já me avisaram que com o assunto do transplante... Olha, melhor, porque não quero ter, imagina se saísse um que nem eu!

Seu discurso se prolongava e, praticamente, ela não dava espaço para minhas intervenções. Apenas consegui fazer algumas perguntas, mas serviram para eu perceber que Ana era uma menina inteligente, que estava sofrendo por seu futuro e não podia encarar nenhum presente, pois isso a angustiava de uma forma desestabilizadora.

Continuamos nos encontrando todas as semanas, mas ainda não me atrevia a estabelecer um enquadramento, por temer que ela se sentisse prisioneira da imposição de outro limite. Portanto, deixei passar um bom tempo enquanto seguíamos nos encontrando três vezes por semana. Primeiro, Ana e eu; mais tarde, algumas vezes, também com a mãe, que a trazia a todas as sessões. Aparentemente, era a única pessoa a quem Ana queria bem e pela qual lamentava tudo que estava acontecendo.

Só se acalmava ao pensar no quanto seus irmãos tentavam agradá-la. Isso fazia com que não se sentisse tão mal. Às vezes, acreditava que poderia deixar de fazer mal para a mãe, pois com sua morte acabariam, em grande parte, os problemas que causava a ela, inclusive os problemas econômicos. Mas a relação de dependência que ambas mostravam não permitia incluir um terceiro, o que me levava a perceber que essa situação tomaria seu tempo.

Para evitar que Ana continuasse usando drogas, ideamos uma primeira estratégia, segundo a qual Ana nunca deveria sair sozinha - deveria estar sempre acompanhada por algum membro da família. Ela contou que as "bocas" onde conseguia a droga não ficavam muito longe, bastava ir até a esquina de sua própria casa. A única forma de os rapazes não se aproximarem para oferecer droga era Ana estar acompanhada. Depois, decidimos que participasse em um grupo de narcóticos anônimos (na), ao qual Ana já havia comparecido sem muito sucesso. De acordo com ela, nesse grupo somente tinha conseguido garotos e garotas com os quais ter uma noite de "festa". Dessa vez, no entanto, tentamos fazer a participação ser encarada de outra maneira. Embora a mãe já tivesse participado dos grupos de pais de dependentes, ela decidiu sentar e aguardar na porta até Ana sair do grupo. Procuramos um grupo que ela pudesse frequentar duas vezes por semana (nos dias que não nos encontrávamos), sempre acompanhada.

Lentamente, junto com o cardiologista, a psiquiatra, o grupo de na e a família, fomos montando uma rede cuja intenção era ir rodeando Ana com um envoltório protetor e mais acolhedor do que aquele ao qual havia se entregado. Ainda que fosse um trabalho artesanal, tinha a peculiaridade de ir sendo criado e recriado, como uma malha fina que precisa ser reforçada em diferentes lugares na medida em que é tecida.

Não se passaram muitas semanas até Ana começar a se irritar com a companhia permanente e a sensação de estar sempre sob controle. Contudo, pudemos enfrentar os momentos mais depressivos, agressivos e violentos que foi atravessando. Pouco a pouco, ela foi assumindo alguma responsabilidade, como servir o café no na ou lavar sua roupa íntima em casa. Começou a criar uma agenda artesanal, assim como outros trabalhos manuais. A sequência das sessões e a presença da mãe e do grupo de pessoas do na começaram a produzir nela um efeito tranquilizador. Embora os acessos de raiva e mau humor continuassem presentes, era mais fácil para a mãe e para Ana conseguir convertê-los em palavras e, assim, diminuir a angústia.

Depois de aproximadamente seis meses nesse ritmo - que eu me encarregava de manter, como forma de instalar uma rotina -, numa das sessões Ana me pediu que a mãe não entrasse mais para falar comigo depois da sessão, e pediu o mesmo à mãe. A relação simbiótica que se estabelecera entre ela e a mãe desde os inícios de sua vida, e que parecia impossível de ser resolvida, começava a rachar pela força da transferência.

Queria utilizar todo o tempo da sessão para falar somente ela, sem que a mãe ocupasse também um lugar no seu espaço analítico. Entendi o fato como um enorme progresso, mas também foi o preâmbulo da descoberta de outra adversidade na vida de Ana. Naquela sessão, queria relatar algo que ocorrera na última reunião do grupo de NA a que havia assistido.

PACIENTE: Nem sabe como foi forte o que aconteceu no grupo. São esses acasos que não dá para acreditar por que acontecem. Agora, ainda que pareça estranho, éramos todas mulheres, não tinha ido nenhum homem. Sabe como é que é, todo mundo tem que falar, e cada uma começou a contar quem foi que a estuprou quando era criança. Você nem imagina as histórias! Se estivesse lá, te caía o cu da bunda. [Relata detalhes das violações que foi ouvindo das companheiras, e o faz com um sorriso forçado e os olhos brilhosos, como se fosse chorar, mas não chora.]

ANALISTA: E na sua vez, o que você falou? Quem te estuprou?

PACIENTE: [Silêncio prolongado, no qual lentamente vai me dando uma agonia.] Meu avô paterno, quando eu tinha 7 anos. Estuprou a mim, à minha prima e acho que também outra das minhas irmãs, mas não tenho certeza, nunca tive coragem de falar disso com ninguém, é a primeira vez que conto. Ele nos levava para os fundos, uma de cada vez, dizia que queria nos mostrar uma coisa e sentava num banquinho, sentava a gente em seus joelhos e nos baixava a calcinha. O resto cê já sabe. Por favor, não me faça falar mais hoje.

Ana não percebeu que me deixara totalmente desconcertada e paralisada. Na verdade, minha pergunta (aparentemente) apontava mais para o fato de se sentir violentada, e não para a experiência de ser concretamente estuprada, e a isso eu atribuo ter sofrido, de certo modo, um lapsus.

Não era a primeira vez que ouvia o relato de adolescentes abusados, tanto de moças quanto de rapazes. Portanto, não era isso que me chamava a atenção, e sim que minha mente ficasse paralisada, sem poder pensar, tomada por completo pela surpresa. Essa reação contratransferencial talvez estivesse me dando a pauta de que, mais uma vez, o começo de Ana, no tocante à sua iniciação sexual, tinha sido complicado, inesperado e traumatizante, em um mau momento, com sofrimento, dor e agressão. Talvez, assim como eu, ela tenha sido tomada de surpresa, e novamente um muito mau começo dava início à sua sexualidade.

Os pais não entendiam por que Ana não queria visitar os avós, e era o mesmo problema que tinham os tios com uma de suas primas. Nenhuma das crianças, porém, chegou a falar no assunto, até esse momento.

Depois dessa situação traumática para a criança, Ana fez uma associação muito interessante que nos permitiu aprofundar e investigar esse assunto tão complexo, que transita de forma permanente entre o psíquico e o somático: sua fantasia era que não teriam colocado um coração de outra pessoa no lugar do seu, mas que, na verdade, teria sido violentada e teriam colocado um grande pênis dentro, que era igual ao do avô, e ela queria tirá-lo dali porque a sensação de que "isso" lhe enchia o peito era insuportável. A busca da morte por parte de Ana tinha, nesse caso - entre outras acepções -, um caráter libertador.

 

Algumas reflexões

Como eu disse no começo, para Ana entraram em jogo as bases narcisistas e objetais, e precisamos transitar por sua angustiante história para poder compreender, em parte, sua problemática.

Uma relação de fusão e confusão com a mãe desde o nascimento. A infância marcada pela lembrança traumática da violação por parte do avô, introduzindo-a ao mundo sexual feminino desprovida de um aparato psíquico capaz de metabolizar esse ultraje. A impossibilidade de vislumbrar um futuro que não signifique se enxergar como uma mulher estéril, violentada e estuprada, também por uma cirurgia que, segundo ela, não queria, a mantinha em um presente inóspito e sombrio, que resultava insuportavelmente doloroso. A única maneira de sobreviver a ele foi por meio da droga, que usava como forma de acalmar minimamente suas angústias de morte e evitar estar lúcida diante de lembranças traumáticas e de um futuro sem esperança.

Parte da problemática de Ana também ficou centrada na situação de superproteção, uma vez que a mãe "optou" por um grau de proteção extremo para a filha mais doente, deixando-a, no entanto, a questionar-se sobre o traumatismo sexual causado pelo avô, sem conseguir compreender como é que isso aconteceu se sua mamãe cuidava tanto dela.

A chegada da adolescência de Ana reacendeu todos os fantasmas que tinham ficado relativamente ocultos durante o estágio latente. Seus inícios com a menarca e as sensações produzidas pelas mudanças corporais a transportaram rapidamente às dolorosas lembranças do estupro praticado por um avô supostamente querido. A cirurgia na adolescência veio ressignificar, como um segundo estupro, seu corpo e seu coração biológica e simbolicamente debilitados, produto de tanta violência. A cirurgia de transplante de coração não foi vivida como a salvação de sua vida, mas como o implante daquilo que não conseguiu o avô deixar dentro, o implante de objetos parciais vividos dentro de um corpo agredido, vexado, sexualmente ultrajado.

A malha fina que fomos reforçando ao longo do tratamento representava minha essencial necessidade de ir criando um envoltório psíquico protetor, como o mencionado por Houzel: "O envoltório psíquico situa-se no cruzamento de diversos campos analíticos e epistêmicos, o que sem dúvida contribui para a sua fecundidade" (2004, p. 66). Referindo-se à cura individual, proporá que, quer falemos de crianças, de adolescentes ou de adultos, o conceito de envoltório psíquico comporta, ao mesmo tempo, aspectos do funcionamento mental de quem está sendo analisado, aspectos do enquadramento analítico e aspectos da contratransferência.

 

O analista confrontado com seus limites com pacientes adolescentes em risco

A reativação da dor psíquica, da angústia e da depressão que determinam a expressão consciente e inconsciente do ódio pelo analista, que representa o objeto amado e odiado na relação transferenciai, constitui uma dura prova para a contratransferência. Os sentimentos hostis e a angústia de morte que os acompanha podem ser projetados sobre o analista ou tornar-se auto-destrutivos, o que requer dele a capacidade para receber e conter os aspectos negativos, entendê-los e interpretá-los.

Uma das maiores dificuldades para interpretar os conflitos adolescentes - que muitas vezes expõem de forma lancinante os conflitos de amor e de ódio - está vinculada às nossas próprias resistências contratransferen-ciais a aceitar as projeções hostis do paciente analisado e sua necessidade de nos destruir, nós que que representamos os culpados e os responsáveis por acordar a dor psíquica.

Será o analista com cada paciente que poderá encontrar ou não - por meio do vínculo transferência-contratransferência - a forma de estabelecer um novo nexo, que permita ao paciente transitar com menos dor pelo caminho analítico que decidiu empreender. De qualquer modo, parece fundamental ter estudado os aspectos que se referem diretamente à própria adolescência do analista, bem como as angústias em relação à nossa própria morte.

As dificuldades e os riscos para o analista no trabalho com esse tipo de paciente estarão sempre presentes. Eles demandarão uma atenção constante devido à permanência e intensidade do quadro, à relação da transferência e também ao controle da regressão (Flechner, 2011).

Além da relação analítica dual, na maioria das vezes surge a problemática com a família, que pode representar uma situação de abordagem complicada. Em casos de adolescentes que atentaram contra a própria vida, a família pode procurar apagar totalmente o fato, ou inclusive negar o valor dos sinais que possam ser expressos em momentos de risco.

Nos dias de hoje, falar a respeito de tentativas de suicídio e de suicídios na adolescência deixa um sabor amargo, que nos impede de ser otimistas. No entanto, embora saibamos que existem adolescentes pelos quais nada pode ser feito, há outros que nos permitem entrar em contato com sua dor mental, ainda que muitas vezes eles sintam que a morte é a única alternativa de silenciar o inimigo interno que os atormenta, a partir de algum lugar de seu corpo ou de sua mente. Essa situação nos desafia a realizar mais um trabalho, trabalho esse que fará entrar em jogo a nossa criatividade.

De acordo com Freud (1910/1986a, 1926/1986b), a morte é a maior crise que enfrenta o homem, inexoravelmente; põe a prova seu aparelho psíquico e a intrincada manipulação do narcisismo. Talvez nós, psicanalistas, em nossa própria dimensão humana, nos encontremos mal preparados diante dessa problemática tão dolorosa, visto que falar da morte é sempre falar do sofrimento e da dor. Alizade expressa isso da seguinte forma:

Quando de morrer se trata, todo o sistema narcisista fica abalado. ... O eu enfrenta o corpo, esse estranho para o eu, esse poderoso limitador. Diante do espelho (espelho de azougue, mas também espelho no rosto do semelhante), o narcisismo enraizado no corpo desmorona. (1995, p. 126)

Pareceria indispensável integrar, dentro de nossos próprios pontos de referência teórico-clínicos, a dimensão da morte, pois de outra forma seríamos nós mesmos que estaríamos negando, ou anulando, uma problemática que também é nossa.

Perguntamo-nos então: qual é a dimensão com que a morte do adolescente nos confronta em relação à perspectiva da nossa própria morte? Cassorla observa:

Existe uma grande dificuldade, em todos nós, de crer que nossas motivações e atitudes não podem ser explicadas apenas pelo racional, e que existe uma vertente inconsciente de extrema importância. O raciocínio lógico nos faz procurar e encontrar motivações para os atos suicidas, e geralmente essas motivações são julgadas insuficientes para justificá-los. Precisamos enfrentar nosso "não saber". Muitas vezes, lidamos com isso culpando aquele que nos fez perceber que "não sabemos", principalmente quando o "não saber" tem relação com a morte e o suicídio e quando sabemos pouco ou nada sobre eles. Diante da frustração do "não saber", podemos condenar aquele que nos defronta com nossa ignorância e impotência. (2018, p. 38)

Em última instância, não podemos perder de vista que a morte também produz uma verdadeira fascinação por causa do seu caráter incognoscível e impensável, pela dificuldade de encontrar o sentido e a significação de um fato drástico e irreversível. O ato suicida, portanto, nos mergulha no mistério da vida e da morte, da origem e do fim. O incompreensível atingirá também o analista, que vai atribuir ao fato, segundo sua própria história, outro sentido, que sempre terminará com o mesmo questionamento para todos os seres humanos: o que mais poderia ter sido feito para isso não acontecer?

 

Referências

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Correspondência:
Silvia Flechner
Vazquez Ledesma 2889/801
11300, Montevideo, Uruguay
Tel.: 00598 2710-9911
silvifr77@gmail.com

Recebido em 5/11/2019
Aceito em 10/12/2019

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