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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

 

INTERFACE

 

Suicídio e filosofia: a questão da morte de si

 

Suicide and philosophy: the death issue itself

 

Suicidio y Filosofía: la cuestión de la muerte de si

 

Suicide et philosophie: la question de la mort de soi

 

 

Oswaldo Giacoia Junior

Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp)

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo central deste artigo consiste em apresentar uma reflexão sobre a morte livre na obra de Friedrich Nietzsche, em particular em Assim falou Zaratustra. O artigo analisa o pensamento de Nietzsche a respeito do suicídio, considerando-o tanto em relação à tradição da história da filosofia quanto em relação à posteridade de Nietzsche, e procura destacar a originalidade do tratamento dado ao tema na filosofia desse pensador.

Palavras-chave: suicídio, crime, vida, cultura, tradição


ABSTRACT

The main aim of this paper is to present a reflection on free death in Friedrich Nietzsche's work, particularly in Thus Spoke Zarathustra. The article analyzes the relation of Nietzsche's thought about suicide, considering it both in relation to the tradition of the history of philosophy and Nietzsche's posterity, and seeks to highlight the originality of the treatment given to the theme in the philosophy of this thinker.

Keywords: suicide, crime, life, culture, tradition


RESUMEN

El objetivo central del presente artículo consiste en presentar una reflexión sobre la muerte libre en la obra de Friedrich Nietzsche, en particular en Así habló Zaratustra. El artículo analiza la relación del pensamiento de Nietzsche sobre el suicidio, considerándolo tanto en relación a la tradición de la historia de la filosofía como a la posteridad de Nietzsche, y busca destacar la originalidad del trato dado al tema en la filosofía de este pensador.

Palabras clave: suicidio, crimen, vida, cultura, tradición


RÉSUMÉ

L'objectif central de cet article est de présenter une réflexion concernant la mort libre dans l'oeuvre de Friedrich Nietzsche, en spécial dans Ainsi parlait Zarathoustra. L'article analyse le rapport de la pensée de Nietzsche concernant le suicide, en le prenant aussi bien par rapport à la tradition de l'histoire de la philosophie qu'à la postérité de Nietzche, en cherchant à mettre en relief l'originalité du traitement donné au thème chez la philosophie de ce penseur.

Mots-clés: suicide, crime, vie, culture, tradition


 

 

Se é inegável que o suicídio é o problema filosófico verdadeiramente sério, então impõe-se uma referência ao pensamento de Nietzsche a respeito desse tema, como o reconhece Albert Camus já na abertura do livro O mito de Sísifo, que se inicia justamente com este diagnóstico:

Não há senão um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar que a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou 12 categorias, vem em seguida. São jogos; antes é preciso responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, apreende-se então a importância dessa resposta, pois que ela vai preceder o gesto definitivo. Eis aí as evidências sensíveis ao coração, mas que é preciso aprofundar para torná-las claras para o espírito. (1942, p. 15)

É em Assim falou Zaratustra, no capítulo intitulado "Da morte livre", inserido no primeiro livro da obra, que encontramos a lição do alter ego de Nietzsche (Zaratustra) sobre o gesto e o ato ali chamados significativamente de morte livre - e não morte voluntária, o que por certo significa o mesmo, embora os sintagmas remetam a correntes distintas na mesma tradição. Ao empregar a designação freier Tod (morte livre), Nietzsche deliberadamente vincula-se aos filósofos da Antiguidade clássica - em particular aos estoicos e a Sêneca -, que empregavam o mesmo termo para referir-se à morte de si, e não a palavra suicídio.

Nunca é demais lembrar o leitor acerca das investigações genealógicas de Foucault - inspiradas em Nietzsche - em relação à origem de determinados termos, como, por exemplo, a loucura ou a sexualidade, a fim de sensibilizá-lo para o fato de que nosso modo de pensar a questão da morte de si está, portanto, desde o começo contaminado por uma associação, historicamente construída, entre esta e o homicídio. Ao pensarmos a palavra suicídio, já estamos, ainda que sem o saber, incluindo o ato de se matar em um gênero maior, qual seja, o do homicídio. Essa inclusão teórica, mas não vocabular, tem sua origem em um dos mais importantes pensadores do Ocidente: Agostinho de Hipona. (Puente, 2008, p. 14)

Além dessa particularidade, a posição de Nietzsche quanto à morte de si diverge fundamentalmente da tradição herdada da história da filosofia também por outro aspecto: ela não pretende desenvolver-se nem como uma refutação dos argumentos contrários ao suicídio sustentados pelos filósofos ao longo da história, nem como um reforço daqueles que se apresentam como aprobatórios desse mesmo ato. Quanto aos argumentos em contrário, sabemos que eles podem ser resumidos no seguinte: o ato de matar-se seria um atentado sacrílego contra a vontade de Deus, contra a cidade e contra si mesmo. Os favoráveis, por sua vez, resumem-se na renúncia a uma vida de penúria, sofrimento e indigência, ou em pôr termo a uma situação de desonra e aviltamento.1

A posição de Nietzsche acerca da morte voluntária insere-se no quadro mais geral da relação entre vida e morte, ou melhor, no horizonte da ressignificação nietzschiana da imbricação essencial entre vida e morte, e difere fundamentalmente tanto daquela que domina a tradição histórica da filosofia quanto das reflexões sobre o mesmo tema que encontramos nas filosofias contemporâneas posteriores a Nietzsche.

Uma prova robusta dessa singularidade pode ser encontrada numa das mais incisivas reflexões contemporâneas sobre a morte: aquela que se enuncia como o sentido "existenziário"2 do ser-para-a-morte em Ser e tempo, de Martin Heidegger. Em sua analítica da finitude, Heidegger compreende o homem, enquanto Dasein, justamente a partir de sua condição ontológica de ser-no-mundo essencial e originariamente como ser-para-a-morte

E, no entanto, essa relação da morte com o ser do Dasein dá-se como algo que o irrealiza, que o priva da realização, na efetividade, de seu ser em relação a algo: ao compreender-se ontologicamente como ser-para-a-morte, o Dasein (o Ser-O-Aí) toma consciência de que essa aproximação da morte, que ele carrega consigo, não tende a tornar disponível algo efetivamente real em sua ocupação consigo mesmo e com os demais entes intramundanos, mas significa apenas que a possibilidade do possível "torna-se maior":

A máxima proximidade do ser-para-a-morte, como possibilidade, está o mais longe possível do efetivamente real. Quanto mais patente é o entendimento dessa possibilidade, tanto mais puramente o entendimento penetra na possibilidade como impossibilidade da existência em geral. A morte como possibilidade nada oferece ao Dasein para "realizar efetivamente" e nada que ele possa ser ele mesmo como efetivamente real. A morte é a possibilidade da impossibilidade de todo comportar-se para... de todo existir. (Heidegger, 2012, p. 721)

O que percebemos na analítica da finitude de Heidegger vale também para o existencialismo, em geral: a morte é um elemento estranho, que se abate sobre nós como uma fatalidade, que sempre vem de fora, como uma potência inumana, intrusa e hostil, contra a qual se chocam e se desfazem todos os nossos projetos. É possível que nos preparemos para a morte, mas nunca completamente; ela sempre nos acomete, nos sobrevém, de modo que jamais podemos nos apoderar inteiramente dela. A morte não faz compromissos, não pode ser incorporada, colonizada nem domesticada - ela é o além das possibilidades humanas.

Ora, se o pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche está, em alguma medida, em linha de tradição com o esclarecimento (Aufklärung), enquanto movimento de emancipação intelectual e moral da humanidade, então esse alinhamento manifesta-se no compromisso com um superlativo esforço para elevar o ser humano a um patamar de completa autodeterminação. Em Nietzsche, essa tarefa inclui a inversão, ou supressão, de todas as barreiras que possam opor-se à autonomia humana, sobretudo aquelas em que esta parece definitivamente confrontada com obstáculos naturais, barreiras supostamente inamovíveis - como a conservação da vida, a reprodução, o nascimento e a morte.

Sob a égide dessas instâncias, nas quais a nossa existência faz a experiência radical de sua contingência e limitação - em especial no sofrimento, na temporalidade, na morte e na exigência de sentido -, são justamente esses limiares que concitam e incitam à libertação de corações e mentes. É sobretudo neles que transcorre a anti-via crucis de Zaratustra/Nietzsche. A morte de si insere-se nessa constelação de temas e questões cruciais.

Tomemos um dos casos mais emblemáticos dessa tarefa de autoformação da humanidade: o ressentimento, o espírito de vingança e a necessidade de sua superação. A psicologia do ressentimento talvez seja o legado mais impactante da filosofia de Nietzsche, sua mais cativante promessa de liberação. Pois bem, a superação do espírito de vingança, da postura reativa e negativa em relação à vida - é esse o significado, para Nietzsche, da vitória sobre o ressentimento -, é um ensinamento de Zaratustra que põe em movimento uma exigência aporética. Para vencer o ressentimento, a vontade deve tornar-se capaz de querer para trás, de inverter a flecha do tempo, e com isso livrar-se de sua mais radical impotência: a impotência em face do tempo, da experiência do passar do tempo, que é o âmago da própria temporalidade, considerada como horizonte existencial da vida humana.

Nenhuma forma ou modalidade de dominação física, econômica, social ou histórica é mais poderosa do que a impotência revelada em cada instante que foi :

Querer liberta: mas como se chama aquilo que põe em cadeias também o libertador? "Foi": chama-se o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade. Impotente contra aquilo que está feito - ela é uma espectadora zangada de tudo que é passado. A vontade não pode querer para trás; que ela não seja capaz de romper o tempo e a avidez (Begierde) do tempo - eis a mais solitária aflição da vontade. Que o tempo não ande para trás, eis o motivo de sua raiva; "aquilo que foi" - assim se chama a pedra, que ela é incapaz de mover. E assim move ela pedras, de raiva e indisposição, e exerce vingança em tudo que não sente, como ela, raiva e indisposição. Assim se converteu a vontade, a libertadora, em causadora de dor: e ela se vinga em tudo que é capaz de sofrimento, por não poder retroceder. Isso, sim, somente isso é a própria vingança: a aversão da vontade ao tempo e ao seu "foi". (Nietzsche, 2015, p. 168)

A superação da vingança - que é o solo originário das religiões e das metafísicas, como figuras de uma transcendência para além-do-mundo - só pode ser alcançada com a transformação de todo "foi" em um "assim eu o quis"; ou seja, vivendo cada instante de nossa vida como se ele pudesse ou tivesse de repetir-se eternamente, contemplar cada momento sub specie aeternitatis, e assim querer o que, de um ponto de vista "natural", apresenta-se como fatalidade. Afirmar a vida em sua integridade, sem acréscimo nem subtração, manter-se, em relação a ela, numa postura de amor ao destino (amor fati), o que reverte e subverte a concepção "natural" do tempo, e aproxima a vida da obra artística, que é destruída em sua singularidade pela exclusão de qualquer um de seus elementos, ou mesmo pelo acrescentamento de outros, e que tem em si mesma sua rigorosa necessidade, coerência e finalidade.

Outro exemplo pode ser encontrado na lição de Zaratustra sobre o casamento, a procriação e o novo nascimento. Também nessas instâncias da vida não se trata de "natureza", de mera conservação e reprodução, do "reino da necessidade", mas de um empenho libertário paradoxal, que consiste em assumir e como que recriar essas determinações naturais:

És jovem e desejas criança e núpcias. Mas eu pergunto: és um homem que pode desejar uma criança? És o vitorioso, o abnegado, o soberano dos sentidos, o senhor de tuas virtudes? Assim pergunto. Ou fala em teu desejo o animal e a necessidade? Ou a solidão? Ou a insatisfação contigo mesmo? Quero que a tua vitória e tua liberdade anseiem por uma criança. Deves construir monumentos vivos à tua vitória e à tua libertação. Deves construir para além de ti. Mas primeiro deves estar tu mesmo construído, retangular no corpo e na alma. Não deves apenas te proliferar, mas elevar-te! Que nisso te ajude o jardim das núpcias! Núpcias, assim chamo a vontade de dois para criar um que seja mais do que aqueles que o criaram. De respeito mútuo chamo as núpcias, respeito perante o querente de uma tal vontade. (Nietzsche, 2015, pp. 89-90)

Entre os pensadores contemporâneos, um dos que refletiram de maneira mais profunda sobre vida e morte em termos similares àqueles de Nietzsche foi Sigmund Freud. Não por acaso, o pensamento de ambos a esse respeito guarda uma profunda afinidade eletiva. No livro de Freud intitulado Além do princípio do prazer (1920/2010), nós nos defrontamos com uma dialética incontornável, no interior da qual as pulsões de vida, os impulsos eróticos, apresentam-se na condição paradoxal de desvios permanentes no caminho da morte. Nesse percurso desviante atuaria, no entanto, um poderoso fator de complexificação, que não se deixa suprimir ou remover, instaurando-se como contradição insolúvel entre a tendência essencialmente regressiva de todo elemento pulsional e o efeito produzido por sua própria atuação, que perenemente adia o destino final de retorno ao inorgânico: este não pode ser alcançado por força da contradição em que incorre e que se institui entre sua meta e o caminho para alcançá-la.

Essa condição paradoxal e antinómica é compartilhada por Nietzsche, e talvez seja em razão dela que Freud tenha se recordado de Nietzsche quando, num momento próximo ao final de sua própria vida, fez explícita menção ao autor de Assim falou Zaratustra. Ao reconhecer a extensão do débito da psicanálise em relação à literatura e à filosofia, Freud menciona especificamente o nome de Nietzsche:

Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O seu Zaratustra diz: A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade; pura, profundamente eternidade. (Freud, 1988, p. 57)

Percebemos, a partir dessa transcrição, que Freud apreendeu o essencial em Nietzsche.

Li Schopenhauer muito tarde na vida. Nietzsche, o outro filósofo cujos pressentimentos e insights (Einsichten) coincidem de maneira admirável com os resultados trabalhosamente adquiridos pela psicanálise, eu evitei, por isso mesmo, durante muito tempo; importava para mim menos a prioridade do que a manutenção de minha independência (Unbefangenheit). (Freud, 1925/1968, p. 86)

E surpreendentemente esse elemento essencial, que Freud apreende em Nietzsche, aparece de modo muito claro no ensinamento que tem por objeto a morte livre.

Antes de analisar a passagem dedicada à morte livre em Assim falou Zaratustra, é necessário considerar sua inserção no conjunto desse livro. Por ocasião do ensinamento a respeito da morte livre, Zaratustra não fala para nenhuma multidão reunida na praça pública, mas reservadamente a seus discípulos. Há que ter em vista, além disso, que Assim falou Zaratustra tem como subtítulo Um livro para todos e para ninguém. Considerando esses dois aspectos, percebe-se que o ensinamento da morte livre não é, então, um discurso público, feito para todos os ouvidos - e essa particularidade tem em vista pór em questão um dos consensos mais caros à modernidade cultural, a saber, a hipervalorização da importância e eficácia da comunicação de massa, da universalidade abstrata da comunicação. E, no entanto, não estamos em face de um discurso hermético, uma vez que pode ser compreendido por todos aqueles para quem esta vida - terrestre, contingente, precária, sofredora e mortal, portanto gravada e definida pela finitude - constitui um valor supremo, a tal ponto que não pode ser, ela mesma, tornada objeto de nenhum juízo de valor imparcial.

Plenitude de vida, vontade de tempo, de terra e de vir-a-ser é o autêntico teor do ensinamento da morte livre por Zaratustra; paradoxalmente, a pregação da morte voluntária é, em toda a extensão dessa ambiguidade, uma elegia da vida, uma transvaloração da morte, que se transmuda de luto, nostalgia e pranto em riso, promessa e festa, no gesto heroico de um morrer a tempo, de querer a própria morte.

Muitos morrem tarde demais, e alguns morrem cedo demais. Ainda parece estranho o ensinamento: "Morre no tempo certo!". Morre no tempo certo: assim ensina Zaratustra. Sim, mas quem jamais vive no tempo certo, como poderia morrer no tempo certo? Oxalá não tivesse nascido! - Assim recomendo eu aos supérfluos. Mas também os supérfluos dão grande peso à sua morte, e também a noz mais vazia deseja ser quebrada. Todos dão grande peso ao fato de morrer: mas a morte ainda não é uma festa. Os homens ainda não aprenderam como consagrar as mais bonitas festas. Eu vos mostrarei a morte consumadora, que se torna um aguilhão e uma promessa para os vivos. Aquele que consuma a sua vida morre a sua morte, vitorioso, rodeado de esperançosos e promitentes. (Nietzsche, 2011, p. 69)

Menos do que isso, e a vida torna-se obstinação em perdurar, em sobreviver, e ingressa - a isso remete a metáfora dos supérfluos, dos demasiadamente maduros - na trajetória declinante do ocaso, no domínio sombrio da morte-fatalidade. Afirmar integralmente a vida é transmudar a morte em autodeterminação gloriosa, em nome de uma plenitude e superabundância de vida, pois uma tal morte acontece como doação de um sentido superior para a vida. Toda determinação da morte como externa, alheia e estranha à vida - seja como fato biológico irremovível, como limite do orgânico, como necessidade e destino, ou como negação de nosso ser e nossa liberdade - é estratégia de má-fé, haurida no veneno do ressentimento, no ódio à finitude e à facticidade da existência.

Naquelas experiências em que nossa condição de autonomia e responsabilidade - de nosso ser-si-mesmo - parece irremissivelmente negada, como na irreversibilidade do tempo e nos extremos do nascimento e da morte, é no curso dessas experiências que, como bem notou Freud, pode surgir a ocasião e o ensejo para uma atitude afirmativa, uma postura não ressentida nem meramente resignada em relação à temporalidade patenteada na morte, e também em relação à contingência de nossa condição, mas como um gesto de bendição e amor ao destino, que se efetiva na transformação de nossa existência em obra de arte.

A transvaloração pregada por Zaratustra implica reversão de valores, que não se limita a uma alternância de posições hierárquicas, mas que se amplia numa ressignificação integral das relações entre a morte e a vida. Para nos compenetrarmos desse entendimento, consideremos a frase impactante: "Oxalá não tivesse nascido!". Nesse diálogo intertextual - mantido permanentemente em Zaratustra - a inversão torna-se o elemento dominante, pois a frase é uma citação que remete aos Evangelhos, à narrativa em que Jesus se refere àquele que será seu traidor - e, uma vez que o Redentor define a si mesmo como o caminho, a verdade e a vida, o traidor do Cristo será também o traidor da vida por excelência. "O Filho do homem vai, como de fato está escrito a respeito dele. Mas ai daquele que trai o Filho do homem! Melhor lhe seria jamais haver nascido" (Mateus 26,24). A traição da vida - o sacrilégio -não é a morte livre e assumida, mas a negação reativa, odiosa e ressentida da vida plena, o amesquinhamento e abastardamento da vida e do espírito.

A morte livre é a prova de que a vida não deve ser vivida como estando a serviço da morte, como se fosse negada e dominada pela morte; o inverso é, antes, a expressão da verdade: a morte pode e deve ser, para Zaratustra/Nietzsche, consumação e glorificação, plenificação da vida, o que se faz pela prodigalização, pela dádiva de um valor sublime, uma meta, um alvo que seja também exaltação. A morte a tempo é a morte a serviço da vida, para mostrar aos vivos que a vida deles deve servir a uma meta suprema. A morte livre é afirmação da liberdade para a morte e gesto de autonomia mesmo na morte, que é assumida como feito culminante de uma vida bem lograda, quando esta atinge o ápice do que lhe era possível. Se a morte é querida, então ela deixa de ser uma compulsão, uma fatalidade à qual estamos passivamente sujeitos.

À diferença do ensinamento epicurista do suicídio, de acordo com o qual a vida pode ser terminada se não é mais agradável, e diferentemente do ensinamento estoico, que aconselha o suicídio em face de uma desgraça pessoal que não pode ser dominada, o ensinamento de Zaratustra requer que a morte livre seja realizada unicamente por seu efeito sobre uma audiência. A morte torna-se gloriosa quando feita por e para ela; ela serve a seus propósitos, sendo uma ocasião para o juramento dos mais sérios votos e, portanto, para vidas sacrificiais. Como a morte de Licurgo, ela pode mostrar aos vivos a que deve servir a vida deles. (Lampert, 1986, p. 69)

Para aqueles poucos que são capazes de sentir como ele, a morte livre de Zaratustra pode bem ser um parâmetro de medida de suas próprias ações e de seu valor, uma preciosa oferenda e uma contribuição para a realização histórica do bem e da grandeza. Nesse sentido, a morte livre é o feito conclusivo e culminante de uma vida que se realiza em função daquilo que é valioso, de uma tarefa digna de ser realizada até seu cumprimento integral, como um "crepúsculo a incendiar a terra"; do contrário, a morte é um malogro e uma blasfêmia contra a vida, os homens e a terra.

Aquele que consuma a sua vida morre a sua morte, vitorioso, rodeado de esperançosos e promitentes. Assim se deveria aprender a morrer; e não deveria haver festa em que tal moribundo não consagrasse os votos dos vivos! Morrer assim é a melhor coisa; mas a segunda melhor é: morrer na luta e prodigalizar uma grande alma. Mas igualmente odiosa para o combatente e para o vencedor é a vossa morte de sorriso amarelo (grinsen), que se aproxima furtivamente como um ladrão - e, no entanto, chega como um senhor. Eu vos faço o louvor da minha morte, a morte voluntária, que vem a mim porque eu quero. E quando irei querer? (Nietzsche, 2011, p. 69)

Nietzsche põe em cena com essa passagem a transfiguração do memento mori em memento vivere. Quando vou querer minha morte? Esse momento realiza, para Nietzsche, a mais completa recusa da concepção ascética da vida. A morte não é a autonegação da vontade de viver, como pensavam Schopenhauer e outros ascetas, para quem a existência era concebida e valorada como um erro, sendo a vida o que não deveria ser. Para Nietzsche, querer a morte - na morte livre - não é renunciar e finalmente pôr termo ao vale de lágrimas no qual transcorre nossa existência terrena, mas a glorificação da temporalidade, do sofrimento e da própria morte, em nome da doação de um sentido imanente à vida, que a torna digna de ser retomada em cada um de seus instantes. "Então era isso a vida?", pergunta-se Zaratustra. E responde: "Então que seja tudo outra vez, da capo".

Visados são aqui os transmundanos, pregadores da morte em vida, que cultuam os ideais ascéticos, para quem a vida, a temporalidade, o corpo, o sofrimento e, por fim, a morte são exodus, uma ascensão para outro plano de vida, uma existência no além, num mundo metafísico, que para Nietzsche é um Nada.

Para não poucos a vida é um malogro: um verme venenoso lhes corrói o coração. Que cuidem, então, para que a morte lhes seja bem-sucedida. Muitos não chegam a ficar doces, apodrecem já no verão. O que os prende ao galho é a covardia. São demasiados os que vivem, e por tempo demais permanecem presos a seus galhos. Que venha uma tempestade e arranque da árvore tudo que é podre e bichado! Que venham os pregadores da morte rápida! Seriam, para mim, os verdadeiros temporais a sacudir as árvores da vida! Mas ouço apenas os pregadores da morte lenta e a paciência com tudo o que é "terrestre". Ah, vós pregais paciência com o que é terreno? Mas é o terreno que tem paciência demasiada convosco, blasfemadores! (Nietzsche, 2011, p. 70)

Por causa disso, a morte voluntária é, para Nietzsche, um excelsior, a recusa ao rebaixamento da vida a uma condição de indigência e penúria, como sobrevivência e conservação a todo custo, em nome e em busca de uma felicidade medíocre e banal, aquela que é própria dos últimos homens, esses que

ainda brigam, mas logo se reconciliam - de outro modo, estraga-se o estômago. Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a saúde. Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer. Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse. Ninguém se torna mais rico ou pobre: ambas as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obedecer? Ambas as coisas são árduas. "Nós inventamos a felicidade" - dizem os últimos homens, e piscam o olho. (Nietzsche, 2011, pp. 18-19)

Para Nietzsche, assim como para os gregos homéricos, o que marca a singularidade de uma vida é sua exemplaridade, não o solipsismo, o encerramento na interioridade da consciência, mas as ações e os feitos grandiosos, que são tanto o signo da àpcrq/areté (da excelência na virtude) como a construção de um destino, a conquista da glória, de um nome próprio que sobrevive através dos séculos na memória coletiva da cultura:

Quem tem uma meta e um herdeiro, quer a morte no tempo certo para a meta e o herdeiro. E, por reverência à meta e ao herdeiro, não mais pendurará coroas ressequidas no santuário da vida. Em verdade, não quero semelhar-me aos cordoeiros: eles puxam seu fio ao comprido e nisso andam sempre para trás. Alguns se tornam demasiado velhos também para as suas verdades e vitórias; uma boca sem dentes não tem mais direito a todas as verdades. E todo aquele que deseja a glória tem que despedir-se a tempo da honra e exercer a difícil arte de, no tempo certo, ir-se embora. É preciso cessar de deixar-se comer quando se é mais saboroso: isso sabem aqueles que desejam ser longamente amados. (Nietzsche, 2011, p. 70)

Morrer no tempo errado pode ser morrer tarde demais, como é o caso dos que permanecem aferrados aos galhos da vida até se tornarem murchos, podres e bichados, com um verme venenoso a corroer-lhes o coração. Mas pode ser também morrer cedo demais. Esse é o caso de Jesus de Nazaré, de acordo com a interpretação de Nietzsche:

Em verdade, morreu cedo demais aquele hebreu que é honrado pelos pregadores da morte lenta: e para muitos foi uma fatalidade, desde então, que ele morresse cedo demais. Ainda conhecia apenas lágrimas e a melancolia do hebreu, juntamente com o ódio dos bons e dos justos - o hebreu Jesus: então foi acometido pelo anseio da morte. Tivesse ele permanecido no deserto, longe dos bons e dos justos! Talvez tivesse aprendido a viver e aprendido a amar a terra - e também o riso! Crede em mim, irmãos! Ele morreu cedo demais; ele próprio teria renegado sua doutrina, se tivesse alcançado a minha idade! Era nobre o bastante para renegá-la! Mas ainda era imaturo. De modo imaturo ama o jovem, e também de modo imaturo odeia os homens e a terra. Pesados e presos ainda são seu ânimo e as asas de seu espírito. Mas no homem há mais criança do que no jovem, e menos melancolia: ele entende mais da morte e da vida. (Nietzsche, 2011, pp. 70-71)

De acordo com Zaratustra, Jesus não conheceu a fundo senão a melancolia e as lágrimas, mas não a transformação da morte em festa, do pranto em riso e amor à terra.

Em Zaratustra, ao contrário, haveria mais criança e menos melancolia, portanto mais riso e liberdade para a morte e na morte. Esta seria a dádiva ofertada aos seus discípulos, a doçura de sua alma e de seu querer, a sua "bola de ouro":

Que o vosso morrer não seja uma blasfêmia contra os homens e a terra, meus amigos: eis o que suplico ao mel de vossa alma. Em vosso morrer devem ainda refulgir vosso espírito e a vossa virtude, como um crepúsculo a incendiar a terra: ou então vosso morrer terá malogrado. Assim quero eu próprio morrer, de maneira que vós, meus amigos, ameis mais a terra por minha causa; e quero me tornar terra de novo, de modo a ter sossego naquela que me gerou. Em verdade, tinha uma meta Zaratustra, e lançou sua bola: agora sois os herdeiros de minha meta, amigos, e vos lanço a bola de ouro. Mais do que tudo, amigos, gosto de vos ver lançar a bola de ouro! Por isso me demoro (verziehen) ainda um pouco na terra: perdoai-me (verzeihen). (Nietzsche, 2011, p. 71)

Com essas palavras e com esse gesto, a conclusão do capítulo sobre a morte livre parece entrar em contradição com o teor da pregação de Zaratustra. Uma vez que o personagem teria consumado sua obra - teria lançado sua bola de ouro -, não haveria mais razão para demorar-se ainda um pouco na vida e na terra; decidir-se a fazê-lo seria, então, segundo seus parâmetros, renegar o próprio ensinamento, mostrar-se ainda aquém de suas rigorosas exigências. Por causa disso, o texto se encerra com um humilde pedido de perdão.

Lampert interpreta justamente nesse registro o gesto conclusivo de Zaratustra:

Não somente ele retirou muito do que pode ter dado a seus discípulos, mas mostrou-se falho, carecendo de perdão, capaz de ser superado. Ele conclui seus discursos na cidade com um ato que convém a um mestre que fez da inveja o poderoso estímulo à grandeza. Seus sérios seguidores podem pensar-se mais sérios do que seu mestre na dedicação a um feito que dá sentido à terra. (1986, p. 73)

E, no entanto, pode-se também interpretar esse mesmo gesto num outro sentido: a morte livre, objeto do ensinamento, não foi revogada pela permanência de Zaratustra na vida; talvez essa permanência se deva ao humano (demasiado humano?) desejo de contemplar a obra de seus próprios discípulos, de acompanhá-los na realização de seus próprios feitos gloriosos - pois é neles que se atesta a efetiva sobrevivência do mestre: "Um corpo mais elevado deves criar, um primeiro movimento, uma roda que gire por si mesma - um criador deves tu criar" (Nietzsche, 2011, p. 67).

 

Referências

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Puente, F. R. (Org). (2008). Os filósofos e o suicídio. Belo Horizonte: UFMG.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Oswaldo Giacoia Junior
Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Filosofia
Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo
13083-970 Campinas, SP
Tel.: 19 3521-1608
ogiacoia@hotmail.com

Recebido em 11/11/2019
Aceito em 10/12/2019

 

 

1 A respeito dos argumentos a favor e contra o suicídio, ver Puente (2008).
2 Emprego o neologismo "existenziário" para referir-me ao estatuto antológico de determinadas categorias e conceitos no pensamento de Martin Heidegger, à diferença de seus similares encontráveis nas distintas correntes do existencialismo. O uso do termo tem como pano de fundo a diferença pensada por Heidegger entre os níveis ôntico e ontológico, que constitui o horizonte teórico de sua ontologia fundamental.

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