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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019

 

INTERFACE

 

Macro e micro-olhares na prevenção do suicídio1: um aprendizado de mão dupla

 

Macro and micro looks at suicide prevention: two-way learning

 

Macro y micro miradas a la prevención del suicidio: aprendizaje bidireccional

 

Macro et microregards sur la prévention du suicide: un apprentissage à double sens

 

 

Carlos Filinto da Silva CaisI; Tânia Maron Vichi Freire de MelloII; Marielle Kellermann BarbosaIII

IPsiquiatra. Professor doutor, colaborador da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Ansiedade no Hospital de Clínicas da Unicamp. Mestrado e doutorado com a temática do suicídio
IIPsiquiatra. Colaboradora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coordenadora do Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante (Sappe) da Unicamp
IIIPsicóloga. Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho, escrito a seis mãos, busca oferecer olhares distintos e complementares a respeito de um tema multifacetado: a prevenção ao suicídio. Os autores trazem dados atualizados das taxas de suicídio no Brasil e no mundo, com a informação alarmante de que os números no Brasil cresceram, enquanto no mundo caíram. Tratam de políticas públicas que se mostraram efetivas na diminuição dos casos, contextualizam a intersecção teórica e clínica desse tema entre psicanálise e psiquiatria, discorrem a respeito das reações contratransferenciais do profissional da saúde mental ao lidar com a problemática dos pacientes que apresentam ideação, plano ou tentativa de suicídio com uma vinheta clínica ilustrativa e encerram o trabalho abordando uma perspectiva ética não comum à nossa cultura brasileira, de que existem países que reconhecem como legítimo o desejo de morte de pacientes com transtornos mentais graves, sendo possível a realização oficial e assistida da eutanásia.

Palavras-chave: suicídio, psiquiatria, psicanálise, contratransferência, políticas públicas


ABSTRACT

This work, written by six hands, seeks to offer different and complementary perspectives on a multifaceted theme: suicide prevention. The authors provide up-to-date data on suicide rates in Brazil and around the world, with alarming information that numbers in Brazil have grown while in the world they have fallen. They present public policies that have been effective in reducing cases, contextualize the theoretical and clinical intersection of this theme between psychoanalysis and psychiatry, discuss the countertransference reactions of mental health professionals when dealing with the problem of patients with ideation, plan or attempt of suicide with an illustrative clinical vignette and conclude the work presenting an ethical perspective not common to our Brazilian culture, that there are countries that recognize as legitimate the wish of death of patients with severe mental disorders being possible the official and assisted accomplishment of euthanasia.

Keywords: suicide, psychiatry, psychoanalysis, countertransference, public policy


RESUMEN

Este trabajo, escrito a seis manos, busca ofrecer perspectivas diferentes y complementarias sobre un tema multifacético: la prevención del suicidio. Los autores aportan datos actualizados sobre las tasas de suicidio en Brasil y en todo el mundo, con información alarmante de que las cifras en Brasil han aumentado, mientras que en el mundo han disminuido. Presentan políticas públicas que han sido efectivas en la reducción de casos, contextualizan la intersección teórica y clínica de este tema entre el psicoanálisis y la psiquiatría, discuten las reacciones de contratransferencia de los profesionales de la salud mental al tratar el problema de los pacientes con ideación, plan o intento de suicidio con un caso clínico ilustrativo y concluyen el trabajo presentando una perspectiva ética no común a nuestra cultura brasileña, de que existen países que reconocen como legítimo el deseo de muerte de pacientes con trastornos mentales graves, siendo posible la realización oficial y asistida de la eutanasia.

Palabras clave: suicidio, psiquiatría, psicoanálisis, contratransferencia, políticas públicas


RÉSUMÉ

Cet ouvrage, écrit à six mains, cherche à offrir des regards différents et complémentaires sur un thème aux faces multiples : la prévention du suicide. Les auteurs fournissent des données actualisées sur les taux de suicide au Brésil et dans le monde, avec une information alarmante selon laquelle les chiffres au Brésil ont augmenté tandis que dans le reste du monde, ils ont diminué. Ces chercheurs présentent des politiques publiques qui se sont montrées efficaces pour la réduction du nombre de cas, qui contextualisent l'intersection théorique et clinique de ce thème entre psychanalyse et psychiatrie et, au moyen d'une vignette clinique illustrative, ils exposent des réactions de contre-transfert du professionnel de la santé mentale lorsqu'il est en face de la problématique des patients atteints d'idéation, ayant un projet de suicide ou qui en ont fait une tentative. Ils terminent le travail, en présentant une perspective éthique qui n'est pas habituelle dans la culture brésilienne, c'est-à-dire, qu'il est des pays qui reconnaissent comme légitime le désir de décès des patients souffrant de troubles mentaux graves où il est possible la réalisation officielle et assistée de l'euthanasie.

Mots-clés: suicide, psychiatrie, psychanalyse, contre-transfert, politique publique


 

 

Acelerando na contramão: números de suicídio no Brasil e no mundo

A questão do suicídio suscita grande preocupação e debate na sociedade, e não poderia ser diferente, uma vez que o suicídio é, em última instância, um questionamento radical a respeito do sentido da vida. Esse debate se torna pungente entre os profissionais envolvidos diretamente com o cuidado em saúde e mais especialmente com saúde mental.

O número de suicídios vem caindo no mundo de maneira significativa. Entre 2000 e 2016 (último ano com dados disponíveis), houve uma diminuição de 18% das taxas de suicídio globais (World Health Organization, 2019). Infelizmente, no mesmo período, as taxas brasileiras de suicídio subiram 26,5% (Ministério da Saúde, 2019). Há uma clara associação entre a aplicação de políticas públicas nacionais ou regionais, elaboradas a partir de evidências científicas, adaptadas às condições locais, e a redução do número de suicídios. No caso do Brasil, não houve uma política pública sistematizada implantada com essa finalidade. As iniciativas foram realizadas de maneira isolada e dispersa. Isso talvez explique o fato de estarmos na contramão das boas notícias mundiais.

 

Avaliação de risco suicida

Chamamos comportamento suicida um amplo espectro de afetos, cognições e comportamentos que vão da ideação suicida, do plano, da tentativa, ao suicídio propriamente dito. O comportamento suicida engloba, em proporções distintas em cada caso, três componentes cujo reconhecimento e manejo são essenciais ao clínico: desejo de morte, sinalização de um importante sofrimento psíquico acompanhada de um pedido de ajuda, e tentativa de modificar as relações e o ambiente, muitas vezes carregada de impulsos agressivos e sádicos.

As evidências científicas consolidadas (Bertolote et al., 2005) apontam que a presença de transtornos mentais, principalmente quando há sintomas depressivos e/ou ansiosos, é um fator de vulnerabilização preponderante para que o indivíduo atinja o nível de angústia insuportável que costuma estar associado ao comportamento suicida. Os holofotes têm se voltado também para as situações de crise, nas quais fatores precipitantes, operando em um aparelho psíquico já fragilizado, podem desencadear a crise suicida. Evidentemente, esses fatores são singulares para cada indivíduo, dependem de sua história pessoal e de sua dinâmica psíquica, podendo incluir desde uma ruptura amorosa ou a perda do emprego até a revivência de uma situação traumática anterior.

Quando falamos em desejo de morte, deparamo-nos muito mais, na clínica, com um desejo de cessar uma angústia insuportável do que com o desejo de finitude propriamente dito. Nesse dégradé em tons de cinza, quanto mais o comportamento suicida caminha da ideação para a tentativa, maior é a probabilidade de suicídio futuro (Cais & Botega, 2017). Entretanto, cabe ressaltar que tais etapas não se apresentam necessariamente nessa ordem, de maneira que um indivíduo pode cometer suicídio sem nunca ter apresentado um plano ou realizado uma tentativa anterior. Daí a importância, para o profissional da saúde mental, de reunir elementos que forneçam a maior quantidade de informações que possibilitem avaliar o risco de suicídio do paciente, pautando as ações e os cuidados desse profissional.

Podemos citar alguns desses elementos. Quanto mais recente o comportamento suicida, maior será o risco no momento presente. Em uma entrevista com o paciente, é necessário avaliar se houve tomada de decisão, planejamento - em outras palavras, inferir o grau de intencionalidade suicida. Outro elemento tão importante quanto os aspectos objetivos de planejamento (como, onde, quando) nessa inferência de risco é a percepção, pelo clínico, de sua própria angústia quanto ao possível suicídio daquele paciente. Por mais complexas e pessoais que sejam as reações contratransferenciais, há evidência científica de que, quando um clínico experiente sente angústia com a possibilidade de suicídio de um paciente sob seus cuidados, esse é também um elemento fundamental a ser levado em conta, mesmo quando os fatores objetivos não "expliquem" tal angústia.

Muitas dúvidas surgem, entre profissionais da saúde, acerca da entrevista ou sessão na qual o profissional vai pesquisar com o paciente a respeito da ideação suicida deste. Existe uma compreensão leiga - muito fundamentada nos tabus culturais e religiosos e também nas reações agressivas causadas pelo comportamento suicida - de que não se deve perguntar sobre a ideação ou o plano de suicídio, como se o mero ato de fazer a pergunta fosse capaz de instaurar a ideia, plantar uma semente mórbida no psiquismo daquele sujeito. Entre os profissionais que trabalham com prevenção ao suicídio, é conhecimento consolidado que essa ideia é falsa. Perguntar ao paciente se ele tem desejo de se matar ou se tem um plano para isso não induz ou sugere; ao contrário, produz uma experiência de acolhimento e de reconhecimento de sua dor. Muitas vezes, o sujeito não pôde, até então, conversar com ninguém a esse respeito, e poder falar sobre isso já oferece conforto e possibilita o sentimento de ser compreendido, além, é claro, de permitir o encaminhamento para o cuidado necessário. Perguntar não sugere; antes, alivia e acolhe (Dazzi, Gribble, Wessely & Fear, 2014).

 

Urgência subjetiva e urgência médica: corpo e sujeito

Em parte dos suicídios, a tomada de decisão, a passagem ao ato suicida em si, é uma resposta do sujeito a um estado de dor psíquica insuportável, ou seja, não há possibilidade de elaboração ou simbolização dessa dor, e a única forma de cessar o sofrimento é cessando a vida.

Quando há razoável perspectiva de transitoriedade nesse estado de dor psíquica insuportável, justifica-se eticamente uma intervenção por parte do profissional que está em contato com o sujeito em sofrimento. O tempo, a integridade do corpo físico e a integridade do psiquismo entram em jogo nessa discussão, cuja finalidade é pensar sobre as possíveis intervenções quando estamos diante de um sujeito em risco de suicídio.

Primeiramente, diante do sujeito em risco de suicídio, é importante pensar em termos de construção de redes - redes para o indivíduo, para o profissional, para os entes queridos que estão próximos. O campo da saúde mental pode servir como baliza importante para pensar em possíveis intervenções nesse momento. É interdisciplinar em sua natureza, no que diz respeito tanto às diferentes formações de seus profissionais quanto aos campos do saber propriamente ditos que aí fazem interlocução. São campos irredutíveis entre si, mas é na sua interlocução que podemos achar, para cada caso, as ferramentas mais apropriadas para a intervenção quando estamos diante de uma situação clínica. Se há algo que a clínica com indivíduos em risco de suicídio ensina é que não há campo de conhecimento que dê conta isoladamente do sofrimento desses indivíduos.

Proporemos aqui, então, a interlocução entre a psiquiatria e a psicanálise, num recorte dentro do campo da saúde mental, para avançarmos na discussão sobre as possíveis intervenções diante do sujeito em risco de suicídio.

A psicanálise, nunca é demais lembrar, nasceu, assim como a saúde mental, interdisciplinar. Freud, estudante de medicina, pesquisou no laboratório de fisiologia do Dr. Von Brücke, e depois no de anatomia de H. Meynert. Especializou-se em neurologia, defendendo mestrado em neuropa-tologia, tendo como interlocutor Jean-Martin Charcot. Ao mesmo tempo que se formava médico neurologista, Freud se interessava por outros campos do saber, como a filosofia. A partir de 1880, próximo à conclusão do curso de medicina, Freud traduziu cinco grandes obras de John Stuart Mill, além de ser leitor de Schopenhauer e Brentano. No campo dos estudos literários, para falar apenas do caso mais célebre, a tragédia grega permitiu que pusesse o mito de Édipo como operador, que do universal vai para o particular, possibilitando tanto a formalização de sua teoria quanto a proposição de uma técnica. Evidentemente, avançou-se muito desde então. No entanto, sua leitura ainda é útil como fundamento para todos os psicanalistas e outros profissionais da saúde mental que queiram ampliar sua cultura e seu repertório clínico. No campo da poesia, Freud leu Shakespeare, Heine e muitos outros; utilizou-se desse campo para criar ferramentas para a teoria e para a prática clínica. Em 1930, foi agraciado com o Prêmio Goethe, destinado a "reconhecidas personalidades cujas realizações criadoras são dignas de honrar a memória de Goethe" (Bracco, 2011).

Fizemos essa digressão sobre a história do fundador da psicanálise para mostrar como esta se presta, no campo da saúde mental, em toda a sua interdisciplinaridade original, para intervenções potentes na problemática suicida, no que diz respeito a oferecer ao sujeito em sofrimento psíquico a possibilidade de elaborar esse sofrimento. Contudo, quem está na linha de frente da prática clínica sabe como o analista, ou o trabalhador da saúde mental, pode se angustiar numa situação em que há um grande risco de morte. Nesses momentos, além de contar com uma rede, também é preciso construir estratégias de discernimento de posições diante do sujeito que traz esse sofrimento e esse risco.

Quem tem tempo suficiente de clínica já se deparou com alguma situação de risco. A questão é o que e como fazer, qual a posição a ser sustentada e de que maneira.

Como já mencionado, estamos em um campo heterogêneo e interdisciplinar. Isso significa que, nesse caso, a crise suicida comporta diversos discursos, o religioso, o filosófico e, no que nos diz respeito mais diretamente, o da medicina e o da psicanálise. No momento de crise, embora a interlocução entre os campos se faça necessária, o discernimento entre eles é igualmente importante. Para melhor auxiliar o sujeito suicida, devemos saber de que lugar estamos oferecendo ajuda. Propomos então, seguindo Barreto (2004), como ferramenta teórica para utilidade técnica, a introdução da ideia de urgência subjetiva no campo da saúde mental. Barreto traça um paralelo entre a perspectiva médica e a perspectiva psicanalítica na abordagem do tema. Tal contraposição pode ser lida de duas maneiras. Na comparação ponto por ponto, fica evidente a diferença entre o discurso médico e o discurso psicanalítico. Por outro lado, se consideramos um dos pontos sob diversas perspectivas, percebemos sua coerência. Ressaltamos que, para efeito de comparação, nesse caso, o discurso da psicologia, a nosso ver, alinha-se com o discurso médico, ou seja, é diverso do discurso psicanalítico. Todavia, insistimos que, no paralelo traçado, para além de objetivos didáticos, o campo da saúde mental deve ser o lugar de muitos discursos.

Seguindo com o raciocínio proposto, observamos que o que está em jogo, na urgência médica, é o corpo biológico, ou seja, o corpo tal como foi apreendido pelo discurso da ciência. Nesse caso, a crise que origina a urgência pode ser definida como uma ruptura aguda da homeostase e/ou da integridade física do organismo. No horizonte, como ameaça, estão a invalidez ou a morte. Já na perspectiva psicanalítica, o que está no âmbito do interesse é a urgência do sujeito, a urgência subjetiva (Barreto, 2004).

Os psicanalistas sabem que o sujeito em questão aqui é o sujeito do inconsciente, e isso torna as coisas um pouco mais complicadas. A crise pode ser compreendida como a perda da capacidade de elaborar ou de simbolizar uma situação. O risco, então, de partir para a ação aumenta consideravelmente. "A urgência subjetiva é a impossibilidade, num momento dado, de significar minimamente. ... o que se apresenta não é o que se diz ... algo do dizer não se articula" (Barreto, 2004, p. 47). Muitas vezes, nessas situações, nos deparamos com sujeitos que falam pouco, ou pouco articulam. Nessa perspectiva, cabe ao analista dar condições para que o sujeito tenha tempo de elaborar fantasias, nomear afetos, articular desejos, estabilizar-se e, eventualmente, realizar construções. Na urgência subjetiva é necessário que o tempo seja distendido. É preciso que se introduzam dizeres.

Já na urgência médica a lógica é outra, e o que está em jogo, em primeiro plano, não é a subjetividade. O corpo biológico sofreu quebra de sua homeostase, e é preciso, o quanto antes, restaurá-la. O médico e os demais profissionais da saúde envolvidos no cuidado devem ser rápidos, ágeis, e aplicar seus conhecimentos. O paciente, seu corpo, é objeto dessas intervenções. É necessário estabelecer rapidamente as causas da ruptura e intervir o quanto antes. O saber está do lado dos profissionais da saúde. É preciso que se introduzam fazeres (Barreto, 2004).

A divisão proposta ajuda no discernimento de posições que não serão e nem devem ser estanques. Deixamos clara, desde o início, a multiplicidade de discursos que o campo e a situação de crise comportam. No entanto, quem já tem alguma experiência clínica sabe que nem sempre é possível manter essa distinção no momento da intervenção. Psicanalistas podem e devem tomar atitudes pragmáticas e ativas diante de pacientes em risco de suicídio. Mas o que é interessante para o clínico é saber, no momento de crise, qual a natureza de sua intervenção, e a partir daí construir a intervenção mais apropriada para aquele sujeito, naquele momento.

Partamos então desse ponto, no qual consideramos que o cuidado para a prevenção do suicídio é um campo multifacetado, de que fazem parte olhares provindos das políticas públicas, da prevenção em saúde mental, da clínica psiquiátrica e psicanalítica e dos profissionais da saúde que atendem pacientes com reais tentativas de suicídio em serviços hospitalares.

 

Política pública eficaz: identificar e reduzir a disponibilidade e o acesso a meios letais

A diminuição do acesso a meios letais (como pesticidas, medicamentos e armas de fogo) tem se mostrado uma das estratégias mais consistentes e eficazes de prevenção do suicídio como política pública, uma vez que a impulsividade é um fator importante em significativa porção dos comportamentos suicidas. A impulsividade é um traço do psiquismo em que a psicanálise pode não ter a mesma potência de mudança do que os psicofármacos ou mesmo outras formas de terapia, principalmente no curto prazo, mas o insight sobre essa condição é sim papel do analista, embora não exclusivo, evidentemente. Ter consciência de sua impulsividade e mesmo de sua agressividade pode permitir que o indivíduo faça escolhas que o protejam de si mesmo.

Pequenos esforços têm se mostrado muito profícuos. Uma simples mudança na apresentação de um medicamento de uso corriqueiro, para uma apresentação em que a retirada de uma quantidade letal do invólucro leva mais tempo, revelou-se muito efetiva em diminuir a taxa de suicídios tanto nos eua quanto na Inglaterra. Na Austrália, um programa governamental de redução do acesso da população a armas de fogo levou à redução de suicídios e homicídios em massa seguidos de suicídio. Já na China rural diminuiu-se a quantidade de pesticidas que um agricultor pode armazenar e aumentou-se o número de centros aptos a tratar intoxicação por organofosforados e organo-clorados em tentativas de suicídio (World Health Organization, 2014).

 

Intervenções escolares

Existem programas de prevenção ao suicídio que focalizam ações dentro de escolas, ressaltando que qualquer intervenção para prevenir o suicídio é, antes de tudo, prevenção em saúde mental, área amplamente negligenciada pelas políticas públicas de saúde no Brasil, na qual profissionais da saúde mental teriam muito a desenvolver e contribuir.

Parte das intervenções escolares baseia-se em princípios caros à prática de psiquiatras e psicanalistas de adolescentes e crianças, como o desenvolvimento da capacidade de expressar afetos, de narrar com palavras enredos próprios que deem conta de aspectos também emocionais e inconscientes da história do sujeito. Nesse ponto, pode-se considerar quanto ainda há a ser feito se profissionais da saúde mental puderem levar consigo seu repertório teórico para além dos muros dos consultórios, antes do momento em que se busca atendimento psicológico ou psiquiátrico, e muito antes da procura por atendimento em pronto-socorro por uma tentativa de suicídio.

Bion (1962/1988), psicanalista inglês que se dedicou a trabalhar conceitos metapsicológicos da formação dos pensamentos, diz que se a mente não for capaz de pensar pensamentos, isto é, de forma resumida, se a mente não tiver as condições necessárias para que as experiências "cruas" - sensações, afetos -, designadas por Bion como elementos beta, tornem-se elementos alfa, ou seja, elementos capazes de serem pensados, associados, ligados a outras ideias e criadores de sentido, desenvolve-se então não um aparelho para pensar pensamentos, mas um aparelho para livrar a psique do acúmulo de objetos internos maus.

Sem a pretensão de aprofundar possíveis interpretações psicanalíticas a respeito das tentativas de suicídio, já que estas exigiriam um olhar cuidadoso para histórias singulares de sujeitos reais, não podemos descartar uma hipótese generalista e teórica (por isso também superficial e sujeita a correções) de que o suicídio seja a atuação radical de uma mente tentando se livrar de objetos internos maus - em linguagem mais comum a outros profissionais da saúde mental, a atuação radical de um sujeito que busca livrar-se de sentimentos, ideias, pensamentos e afetos insuportáveis, intoleráveis, impossíveis de serem metabolizados psiquicamente.

Dito isso, ações em escolas que possibilitem às crianças e aos adolescentes espaços confiáveis e facilitados para que narrem suas experiências afetivas, para que se tornem mais capazes de pôr em palavras o que lhes aconteceu, o que sentiram, o que experienciaram - essas ações estão, em última instância, prevenindo o suicídio (World Health Organization, 2019).

 

A experiência subjetiva do profissional

Das diversas estratégias de prevenção do suicídio, nos deteremos aqui, com um pouco mais de detalhamento, na mudança dos profissionais da saúde para atitudes mais favoráveis na clínica com indivíduos em risco de suicídio. Quando falamos de atitude, não nos referimos a comportamento, mas sim a uma tríade com três elementos bastante interligados: afetos, crenças e comportamentos.

Tanto no campo médico quanto no psicanalítico, os afetos do profissional obviamente são fundamentais para entendermos e aprimorarmos suas atitudes. Como dito, a atitude é compreendida enquanto uma tríade: afetos, crenças e comportamentos. A psicanálise elege predominantemente os afetos como alvo para a mudança de atitude. Sem invalidar as outras abordagens, vamos exemplificar alguns afetos comumente envolvidos no campo da clínica com indivíduos em risco de suicídio, seja do lado do profissional da saúde, seja do lado do indivíduo em sofrimento.

• Paranoia: a ameaça do suicídio de um paciente pode causar, no profissional que o assiste, sentimentos persecutorios. Por sua vez, a persecutoriedade contratransferencial pode resultar em uma série de comportamentos não terapêuticos por parte do profissional, como agressividade, distanciamento ou excesso de medidas protetivas para evitar o suposto suicídio. Essa constelação emocional do profissional pode distorcer sua capacidade de realizar uma boa e acurada avaliação do risco de suicídio, pois estará inconscientemente mais dedicado a se livrar de seus afetos paranoides.

• Melancolia: outro funcionamento que se apresenta frequentemente em indivíduos em risco de suicídio é o melancólico. O profissional pode ser inundado por tais sentimentos do paciente, vivenciando uma profunda sensação de impotência. É comum profissionais psicanalistas se defenderem inconscientemente da experiência de impotência alegando a si próprios que posturas mais pragmáticas e ativas cabem ao psiquiatra apenas, e que essas posturas destruiriam o setting se adotadas por eles, quando muitas vezes seriam atitudes lidas pelos pacientes como cuidado, e que poderiam ser até cruciais para que ele permanecesse vivo.

• Culpa: o profissional que com frequência, na clínica, maneja indivíduos em risco de suicídio provavelmente lida com pacientes de funcionamento borderline (Cais, Stefanello, Mauro, Freitas & Botega, 2009). Tal afirmação se baseia na experiência clínica e também nos dados psicopatológicos de que indivíduos com funcionamento borderline apresentam comportamentos impulsivos e potencialmente agressivos, tanto contra os outros quanto contra eles mesmos. Esse profissional está bastante habituado a se deparar com indivíduos com aguçada capacidade de "escanear"/perceber suas falhas pessoais dentro e fora do setting, e a usá-las para descarregar suas pulsões agressivas em comportamentos acusadores. Como regra geral, o escaneamento é bem-sucedido, e o profissional reconhece que as acusações são verdadeiras ou, no mínimo, parcialmente verdadeiras. Com isso, ele pode ser tomado pela culpa. Tal sentimento pode levar a atitudes reparatórias, distintas daquelas que beneficiam o indivíduo em sofrimento, e fazer o profissional ficar ou sentir-se refém do seu paciente, o que pode conduzir a outra atitude indesejada, o afastamento real ou emocional por parte do profissional, o que suscitaria uma experiência de desamparo no paciente, disparando novas pulsões agressivas/acusatórias, agora relacionadas ao abandono, pondo mais combustível nesse ciclo vicioso de culpa e atitudes indesejadas por parte do profissional. Falhas narcísicas do profissional, o desejo de se ver como competente, a dificuldade de aceitar suas falhas/impotências e perversidades como humanas e talvez até terapêuticas podem conduzir a atitudes errôneas e a desfechos clínicos não favoráveis.

Para ilustrar o complexo campo das transferências e contratransferên-cias em casos de pacientes com funcionamento borderline em risco de suicídio, apresentaremos um breve relato clínico.

Patrícia (nome fictício) frequenta um psiquiatra, o qual prescreve sua medicação e a acompanha em momentos de maior desorganização psíquica, tendo inclusive indicado internação para ela em dois momentos diferentes desde que a acompanha, há sete anos. Patrícia tem um funcionamento borderline e, a depender de situações externas da sua vida, desorganiza-se e menciona desejos e planos de se matar. Ela é sensível às reações do psiquiatra. Pesquisa sobre ele na Internet, obtendo até mesmo notícias a respeito de sua vida pessoal familiar e de sua atuação profissional.

Em momentos de maior angústia, como ao término de um relacionamento amoroso, Patrícia passa a funcionar de maneira mais esquizoparanoide, cindindo a forma como percebe seu psiquiatra. Se em outros momentos ele era tido como uma figura de confiança e de apoio, passa a ser acusado de incompetência e de fraude. Contratransferencialmente, o psiquiatra percebe seu desejo de se livrar da paciente, seu desejo de que ela busque ajuda com outro colega, dada a exaustão a que Patrícia o submete, com as constantes ameaças de suicídio, as ligações no meio da madrugada e as frequentes faltas e pedidos (mal-educados) à secretária para horários não agendados. Patrícia ataca agressivamente o psiquiatra, de modo congruente com os ataques que realiza aos outros vínculos. O profissional, ao ser alvo de impulsos violentos da paciente, tem dificuldade de manter a compreensão das razões pelas quais Patrícia desenvolveu-se dessa maneira, sentindo raiva e rancor.

Patrícia percebe o psiquiatra irritado e impotente e o acusa disso: "Você não gosta de mim, não é capaz de me ajudar'. O profissional, sentindo-se culpado por verdadeiramente desejar se livrar de sua paciente difícil, busca fazer reparações sendo mais atencioso e atendendo a pedidos de mudança de horário. Patrícia, sensível e perspicaz, o acusa de estar tentando mentir para ela a respeito de sua hostilidade, "se fazendo de bonzinho".

Essa vinheta busca tão somente ilustrar o campo minado e complexo das atuações de pacientes com funcionamento borderline e o quão fundamental é que o profissional tenha um trabalho psíquico para investigar e pesquisar as próprias reações inconscientes a seus pacientes.

 

Política pública: eutanásia para transtornos mentais

Finalizando a conversa aqui proposta a respeito de um tema tão delicado quanto o suicídio, exporemos a seguir políticas públicas que aceitam a ideia de que nem todo sujeito acometido por dor psíquica pode ser auxiliado.

A base ética laica para a prevenção do suicídio é a possível reversibilidade do sofrimento psíquico para uma parte estimada como majoritária dos indivíduos em risco. Mas é inexorável a constatação clínica e epidemiológica de que parte dos indivíduos com sofrimento mental não pode ter seu sofrimento mitigado a ponto de eles mesmos avaliarem que sua vida é digna de ser vivida. Tal constatação, embora triste, é real e moldou a política de Estado em países onde o respeito à autonomia do indivíduo é bastante considerado. Países como Bélgica, Holanda e Luxemburgo aceitam enquadrar indivíduos com transtornos mentais crônicos na lei da eutanásia e prover a eles os meios para que executem o suicídio com dignidade e segurança (Thienpont et al., 2015).

Não se trata de transferir ao clínico poderes divinos de adivinhação, ao simplesmente aceitar a fala de indivíduos em risco de suicídio de que a vida deles não vale a pena e adotar uma postura passiva/contemplativa ou falsamente respeitosa a esse direito. Já que em uma situação de crise suicida a primeira condição que se altera no indivíduo perante seu sofrimento inominável é perder a capacidade de avaliar com isenção seu presente, passado e futuro, como regra geral o indivíduo olhará para todos com lentes distorcidas e pessimistas pela sua própria condição clínica (Kendler, 2016).

Considerando que exercícios de adivinhação pelo clínico, por maior que seja sua experiência com indivíduos em crise suicida, são para dizer o mínimo presunçosos e perigosos, o que afinal estamos desejando que seja a incorporação do direito ao suicídio na prática clínica? É exatamente a aceitação dessa parcial impotência em discriminar o que é agudo, ou mesmo a agudização de uma condição crônica, de uma condição de vida subjetivamente sofrida e não reversível, a ponto de o indivíduo decidir não vivê-la e essa decisão não ser irracional perante tal condição.

Aceitar que essa possibilidade existe não tornará o clínico mais passivo, no sentido indesejado do termo, perante seus pacientes, mas sim mais humilde. Essa posição predispõe o profissional a atitudes menos arrogantes, menos judiciosas, o que permite um encontro humano mais franco e menos presunçoso, levando a uma clínica mais eficaz na prevenção do suicídio.

 

Referências

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Correspondência:
Carlos Filinto da Silva Cais
Cidade Universitária Zeferino Vaz
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, 1.° piso
13083-970 Campinas, SP
carlosfscais@yahoo.com.br

Tânia Maron Vichi Freire de Mello
Cidade Universitária Zeferino Vaz
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, 1.° piso
13083-970 Campinas, SP
freiredemello@gmail.com

Marielle Kellermann Barbosa
Rua Padre Almeida, 515, conj. 54
13025-250 Campinas, SP
mariellekbarbosa@gmail.com

Recebido em 21/11/2019
Aceito em 17/12/2019

 

 

1 Trabalho baseado na palestra ministrada por Carlos Cais no evento promovido pela Diretoria de Cultura e Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) no dia 21 de setembro de 2019, com o tema Suicídio.

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