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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo out./dic. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Uma vida que não vale a pena ser vivida: relações entre submissão e suicídio segundo o pensamento de D. W. Winnicott

 

A life that is not worth living: relationships between submission and suicide according to the thought of D. W. Winnicott

 

Una vida que no vale la pena vivir: relaciones entre sumisión y suicidio según el pensamiento de D. W. Winnicott

 

Une vie qui ne vaut pas la peine d'être vécue: des relations entre la soumission et le suicide selon la pensée de D. W. Winnicott

 

 

Marcia R. Bozon de Campos

Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O pensamento teórico-clínico de D. W. Winnicott traz importantes contribuições para a ampliação da compreensão do suicídio, apontando perspectivas clínicas no tratamento psicanalítico. A partir do conceito de submissão, decorrente do estabelecimento de um falso self patológico, é possível ao analista identificar a vulnerabilidade oculta sob a aparente normalidade. Quando o indivíduo se encontra totalmente dominado por um falso self submisso, vivendo num estado de adaptabilidade e racionalidade constantes, a morte pode vir a representar um último recurso contra a ameaça de aniquilamento. Identificar esse tipo de sofrimento psíquico é fundamental para um manejo clínico que possibilite ao paciente reencontrar algum sentido em sua vida, a partir da possibilidade de se sentir real na relação com o analista. A apresentação de um exemplo clínico tem o objetivo de auxiliar na reflexão sobre o recorte teórico apresentado, criando imagens que introduzam o leitor no universo abstrato dos conceitos.

Palavras-chave: falso self, submissão, suicídio, solidão essencial, Winnicott


ABSTRACT

D. W. Winnicott's theoretical and clinical thinking brings important contributions to the broadening of the understanding of suicide, pointing out clinical perspectives in psychoanalytic treatment. From the concept of submission, resulting from the establishment of a false pathological self, it is possible for the analyst to identify the hidden vulnerability under the apparent normality. When the individual is totally overwhelmed by a submissive false self, living in a state of constant adaptability and rationality, death may be a last resort against the threat of annihilation. Identifying this type of psychological distress is fundamental for a clinical management that enables patients to rediscover some meaning in their lives, based on the possibility of feeling real in their relationship with the analyst. The presentation of a clinical example aims to assist in the reflection on the theoretical framework presented, creating images that introduce the reader into the abstract universe of concepts.

Keywords: false self, submission, suicide, essential loneliness, Winnicott


RESUMEN

El pensamiento teórico-clínico de D. W. Winnicott hace importantes contribuciones a la ampliación de la comprensión del suicidio, señalando las perspectivas clínicas en el tratamiento psicoanalítico. Desde el concepto de sumisión, resultante del establecimiento de un falso yo patológico, es posible que el analista identifique la vulnerabilidad oculta bajo aparente normalidad. Cuando el individuo está totalmente abrumado por un falso yo sumiso, que vive en un estado de constante adaptabilidad y racionalidad, la muerte puede ser el último recurso contra la amenaza de aniquilación. Identificar este tipo de angustia psicológica es fundamental para un manejo clínico que permita a los pacientes redescubrir algún significado en sus vidas, basado en la posibilidad de sentirse reales en su relación con el analista. La presentación de un ejemplo clínico tiene como objetivo ayudar en la reflexión sobre el marco teórico presentado, creando imágenes que introducen al lector en el universo abstracto de conceptos.

Palabras clave: falso yo, sumisión, suicidio, soledad esencial, Winnicott


RÉSUMÉ

La réflexion théorique clinique de D. W. Winnicott apporte des contributions importantes à l'élargissement de la compréhension du suicide, tout en soulignant les perspectives cliniques dans le traitement psychanalytique. Fondé sur le concept de soumission résultant de l'établissement d'un faux soi pathologique, il est possible pour l'analyste d'identifier la vulnérabilité cachée sous la normalité apparente. Lorsque l'individu est totalement submergé par un faux soi soumis et qu'il vit dans un état permanent d'adaptation et de rationalité, la mort peut devenir un dernier recours contre la menace de l'anéantissement. Identifier ce type de détresse psychologique est fondamental pour un maniement clinique qui permet aux patients de retrouver du sens dans leur vie, en se basant sur la possibilité de se sentir réel dans leur rapport avec l'analyste. La présentation d'un exemple clinique vise à faciliter la réflexion sur le cadre théorique exposé, en créant des images qui introduisent le lecteur dans l'univers abstrait des concepts.

Mots-clés: faux moi, la soumission, le suicide, solitude essentielle, Winnicott


 

 

Falso self, submissão e suicídio

A noção de self introduzida por D. W. Winnicott (1958/2000) consiste numa de suas mais importantes contribuições à psicanálise. Para compreendê-la se faz necessário um aprofundamento em sua linguagem, pois o uso que o autor faz das palavras nem sempre coincide com o uso feito por outros teóricos da própria psicanálise ou externos a ela. De forma bem resumida, podemos dizer que, em Winnicott, o termo self designa as sucessivas experiências que o bebê tem nos encontros com os objetos subjetivos sustentados pelo ambiente, de modo que, no desenvolvimento saudável, o self será composto pelos diferentes aspectos da personalidade que constituem o eu.

Será a partir da constituição do self que os processos de integração terão êxito, de modo que a criança passe da não integração primária para o status unitário, ou estágio do "Eu sou". Nesse momento, a criança adquire consciência de si e se torna capaz de perceber objetivamente o mundo, passando da solidão essencial à relação de objeto. No entanto, nem sempre o desenvolvimento ocorre de maneira favorável, pois isso dependerá da boa sustentação do ambiente, que muitas vezes pode falhar. Em "A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional" (1958/2000), Winnicott descreve três maneiras de a criança se desenvolver em relação aos padrões ambientais, considerando a motilidade relacionada ao narcisismo primário1 como o principal recurso na descoberta do mundo.

A primeira forma de desenvolvimento consiste na possibilidade de o bebê explorar o mundo descobrindo-o e redescobrindo-o a partir de sua motilidade, de modo que, embora ainda vivencie um estado indiferenciado em relação ao outro, essas experiências possam ser consideradas pessoais. Para que isso ocorra, será necessário que a mãe-ambiente ofereça a sustentação necessária para que o bebê possa experimentar satisfação a partir de seus movimentos espontâneos, seja em direção à própria mãe ou em direção ao mundo de modo geral. Para estabelecer um contato profundo com o bebê, de forma a oferecer exatamente aquilo que ele necessita, será necessário que a mãe possa abrir mão do seu próprio narcisismo primário. Quando isso não acontece, o desenvolvimento da criança será pautado pela reatividade, de modo que as experiências individuais serão substituídas por reações à intrusão. Nesses casos, a motilidade sofrerá uma retirada em direção à quietude, numa tentativa de preservar o self.

Há ainda um terceiro padrão, mais extremo, no qual, devido às falhas recorrentes por parte da mãe ambiente, a criança fica impossibilitada de recorrer ao estado de quietude e tranquilidade que lhe permitiria uma existência individual, ainda que reativa. A consequência será uma falha significativa no narcisismo primário da criança, que impedirá seu desenvolvimento enquanto indivíduo. Nas duas últimas situações, a motilidade será experimentada apenas em oposição às intrusões do ambiente, de modo que as experiências eróticas, carentes da força da raiz motora e sensorial, não serão suficientes para fortalecer a sensação de uma existência real.

A partir dessas três possibilidades no desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott aponta a existência de três selves:

Um verdadeiro self, com o eu e o não eu claramente definidos, e com algum grau de fusão dos elementos agressivo e erótico; um self que é facilmente seduzido pela experiência erótica, o que resulta na perda do sentimento de realidade; e, finalmente, um self que está inteira e cruelmente entregue à agressão. (Winnicott, 1958/2000, p. 303)

O indivíduo dotado de um verdadeiro self é capaz de estabelecer suas fronteiras, permanecendo imbuído de um sentimento de ser que lhe confere a sensação de viver uma vida que lhe pertence e que vale a pena ser vivida. Embora o falso self esteja sempre presente, protegendo o verdadeiro self de intrusões e favorecendo a adaptação às exigências da realidade compartilhada, a espontaneidade é mantida.

No entanto, devido às falhas graves de sustentação ambiental, pode ocorrer o estabelecimento de um falso self patológico, organizado defensivamente com o objetivo de ocultar o verdadeiro self. A consequência será o estabelecimento de um modo de ser submisso e de fácil adaptabilidade às exigências do mundo, acompanhado de uma clivagem do intelecto. Essa organização defensiva permitirá ao indivíduo sobreviver e ludibriar o outro através de uma imagem de tranquilidade e sucesso, não transparecendo a iminente ameaça de colapso na qual se encontra. O falso self, que na saúde tem a função de proteger o verdadeiro self das intrusões do ambiente, favorecendo adaptações parciais às exigências da cultura, na doença torna-se enrijecido, desenvolvendo-se numa base de submissão, tendo como principal objetivo manter o mundo à distância. O sentimento de futilidade e incapacidade de envolvimento afetivo profundo são características que dão a tonalidade a uma vida pautada na passividade, privada de um sentido próprio e verdadeiro.

Winnicott (1958/2000) diferencia os níveis de cisão presentes no falso self, indo de um grau extremo, onde não é possível encontrar nenhuma razão para viver, a graus menos intensos, nos quais, a despeito do sentimento de futilidade, pode haver uma busca incessante por uma vida que seja sentida como real, mesmo que essa busca leve à morte. É o caso das crianças que recusam o alimento e se deixam morrer de inanição. Ao contrário de Freud (1917/1996b), que compreenderia esse fenômeno à luz da pulsão de morte, Winnicott (1990) entende que a recusa do alimento seria um gesto espontâneo2 em direção ao verdadeiro self. Existem ainda os graus mais brandos de dissociação, nos quais alguns objetos são mantidos numa relacionabilidade interna e secreta, mantendo contato com o self verdadeiro. Esses objetos teriam origem nos aspectos bem-sucedidos da primeira mamada teórica.

Em outras palavras, nos graus menos extremos dessa doença não é tanto o estado primário de cisão que iremos encontrar, e sim uma organização secundária cindida que indica uma regressão diante de dificuldades encontradas num estágio posterior do desenvolvimento emocional. (Winnicott, 1990, p. 128)

A submissão consiste, portanto, numa solução encontrada pelo indivíduo para estabelecer um modo de vida suficientemente integrado desde o ponto de vista da realidade externa, ainda que prevaleça uma sensação de que suas relações com os outros não têm uma intensidade afetiva suficiente para que o sentimento de vazio possa ser apaziguado. Embora uma vida secreta possa ser mantida, existe a sensação de que o viver se perde a cada instante, seguindo à sombra de possibilidades que jamais se concretizam.

O viver criativo, apontado por Winnicott como o principal indicador do estado de saúde, fica comprometido, pois a vida é pautada pelas exigências da realidade compartilhada às quais o indivíduo sente que deve atender incondicionalmente. Toda a espontaneidade fica subjugada à racionalidade, de modo que uma falsa personalidade é forjada, ainda que, em algum lugar secreto, possa existir uma vida satisfatória impossível de ser validada pela experiência. Nessas condições, nas quais o indivíduo não encontra meios de manifestar seus aspectos pessoais, genuínos ou criativos, a vida se esvazia de sentido a tal ponto que ele passa a ser indiferente em relação à morte. "O suicídio pouca importância tem quando tal estado de coisas está poderosamente organizado num indivíduo, e nem mesmo ele próprio se dá conta do que poderia ter sido, do que foi perdido ou do que está faltando" (Winnicott, 1971/1975, p. 100).

Nos casos em que o indivíduo se encontra totalmente dominado por um falso self submisso, vivendo num estado de adaptabilidade e racionalidade constantes, o verdadeiro self não encontra, de modo algum, condições para emergir, permanecendo isolado e inacessível. Novas defesas contra o seu aniquilamento podem se organizar, e o suicídio, embora represente uma solução extrema, guarda um gesto de esperança, podendo ser compreendido como o último e talvez o único gesto espontâneo.

 

Um breve exemplo clínico3

Samanta estava prestes a completar 78 anos quando cometeu suicídio. De forma violenta, sem deixar margem para erros, colocou fim à própria vida surpreendendo o marido, os filhos e os netos. Não ameaçou, não deu nenhum sinal, tampouco deixou uma carta, bilhete ou qualquer pista que pudesse ajudar seus familiares a atribuir algum sentido ao ato. Era uma mulher sorridente, morava numa bela casa e aparentemente estava satisfeita com a vida que levava junto ao marido e aos animais de estimação. Tinha dores crônicas, decorrentes de uma fratura na coluna vertebral por uma queda sofrida na infância. Com a idade, as dores foram se tornando muito intensas de modo a prejudicar suas atividades diárias, o que a fez buscar diversos especialistas na esperança de que uma cirurgia pudesse trazer algum alívio. Mas isso não aconteceu. Após muitos exames, a conclusão foi que a intensidade das dores não correspondia à lesão encontrada, de modo que a cirurgia não diminuiria seu sofrimento. Foi recomendado que buscasse ajuda psicoterápica.

O presente relato corresponde a um breve resumo das entrevistas iniciais, pois o tratamento não chegou a se configurar, tendo sido interrompido pela impossibilidade de a paciente comparecer às sessões por razões diversas. Faço este relato com o objetivo de aprofundar a reflexão sobre o tema do suicídio, mantendo como perspectiva algumas associações clínicas que possam vir a contribuir no tratamento de outros pacientes.

Samanta era uma mulher de aparência cansada. A beleza de sua juventude dava sinais pelas frestas - por exemplo, pela pele de seu rosto, que na ausência de qualquer maquiagem ainda apresentava um brilho incomum para a idade. Os cabelos presos num rabo de cavalo bem estirado, deixando aparentes as raízes brancas, a ausência de adereços e a postura levemente encurvada transmitiam a impressão de uma pessoa humilde, despojada de vaidade. Sentada, segurava a bolsa em seu colo sem apoiar as costas, mantendo as pernas apertadas uma contra a outra, levemente inclinadas para à direita, parecendo que tentava ocupar o mínimo de espaço possível. Mantinha uma tensão desnecessária à posição sentada, como se não lhe fosse possível entregar o peso do corpo à poltrona e relaxar.

Filha única, fora criada pela mãe, uma mulher "muito guerreira", que bancou uma separação conjugal em uma época em que isso não era usual, nem havia ainda a regulamentação do divórcio. Trabalhou muito para dar à filha uma vida confortável e sempre foram muito ligadas uma à outra.

Recordava-se do pai como um homem frio e distante, algumas vezes impulsivo, como na ocasião em que irritado após discutir com sua mãe, a afastou com um gesto brusco que a fez rolar escada abaixo, causando a fratura vertebral à qual atribuía as dores intensas que sentia. Ela acredita que esse episódio foi determinante para a separação do casal.

Era uma menina comportada e tímida que aprendeu a cozinhar e a cuidar da casa muito cedo, evitando dar trabalho à mãe, sempre muito ocupada. Excelente aluna desde pequena, concluiu o ensino clássico aos 18 anos. Sua mãe, embora tivesse pouco estudo, sempre a incentivou a desenvolver seu potencial intelectual e artístico. Lembrava com alegria o fato de a mãe ter se sacrificado para comprar um piano para que ela pudesse aprender a tocar.

Aos 19 anos conheceu o marido, um jovem forte e bonito que havia ingressado na carreira militar. Abandonou os planos de seguir com os estudos na universidade e decidiu aceitar o pedido de casamento. Como presente de noivado, Samanta ganhou do noivo um revólver prateado com cabo de madrepérola, embalado numa caixa forrada de veludo azul. "Parecia uma joia", disse sorrindo. Também sorrindo, contou um episódio ocorrido durante a lua de mel, quando acordara mais cedo que o marido e lavara os cabelos, deixando-os secar naturalmente. Ao acordar e vê-la com os cabelos ruivos e cacheados, ele fez cara de espanto e exclamou: "O que é isso? Você parece um bárbaro!".

A partir desse dia, Samantha nunca mais se permitiu deixar os cabelos ao natural, passando a alisá-los definitivamente para que não ficassem "rebeldes", também mudou o tom para um "castanho mais discreto".

Após o casamento ela se afastou de sua única amiga, tornando-se ainda mais retraída. Além do marido, se relacionava apenas com a mãe, embora se sentisse de certa forma abandonada por ela. Conta que a mãe se casara informalmente e estava muito feliz, pois vivia um momento de ascensão econômica resultado de seus próprios negócios. Ela, por outro lado, tinha que se adaptar à vida contida de esposa de oficial do exército, não podia se dar ao luxo de comprar roupas ou frequentar restaurantes caros, pois, mesmo que a mãe se oferecesse para pagar a conta, ela não tinha como se apresentar, e o marido não admitia que ela levasse uma vida num padrão acima do que ele podia lhe oferecer.

Pouco a pouco foi perdendo a vontade de tocar piano e passou a ocupar seu tempo livre com a leitura. Gostava de romances e de livros de história antiga, gostava de imaginar a vida em outros tempos, com outros costumes, outras regras, gostava de compreender como a civilização humana havia se desenvolvido. Ao falar sobre esse tema enchia-se de entusiasmo e de vitalidade, era possível notar uma clara mudança na tonalidade afetiva através da sua fala e da sua presença corporal. As leituras também alimentavam seus sonhos, nos quais tinha a oportunidade de experimentar a vida em "outros mundos".

Ao longo dos anos, sempre se manteve próxima da mãe. A despeito do relacionamento delicado entre esta e o marido, não escondia sua implicância, tecendo críticas sempre que possível ao fato de ela viver "amasiada" com outro homem.

A vida seguia normalmente até o dia de seu aniversário de 50 anos, quando sua mãe sofreu um acidente e veio a falecer. Samantha tomou a tragédia como uma espécie de punição. Nunca mais se permitiu comemorar seu aniversário, a morte da mãe pareceu representar um divisor de águas. Vinte e oito anos depois ainda sentia falta da mãe diariamente, referindo-se às conversas que tinha com ela em sonhos ou devaneios.

Desde a morte de sua mãe, costumava sonhar com um mesmo lugar, de cores intensas e belas paisagens, "um outro mundo", para onde podia se retirar, no qual sua mãe permanecia viva. Encontrou na pintura um meio de retratar essas paisagens, produzindo muitas telas com as quais adornava as paredes de sua casa. O marido admirava seu dom artístico, mas, num dado momento, sugeriu ajuda para vender seus quadros, iniciando uma pesquisa sobre galerias de arte, feiras de rua etc. Ela perdeu o interesse e parou de pintar definitivamente.

Seguia sonhando com esse mundo paralelo onde experimentava uma sensação de alegria e de prazer. Seu semblante e seu tom de voz se modificavam ao relatar tais sonhos, dando a impressão de uma menina travessa, que escapava ao controle dos adultos para ir brincar em outro lugar. Me pergunto se nos sonhos seus cabelos eram ruivos e cacheados.

 

Perspectivas para a compreensão do desejo de estar morto

Naturalmente, poderíamos analisar esse exemplo clínico à luz do pensamento freudiano, considerando que a paciente se encontrava num estado melancólico. Freud descreve a melancolia como a incapacidade de realizar o luto, o que permitiria o deslocamento da libido para outro objeto. Em decorrência disso, a identificação entre o eu e o objeto perdido fará com que a perda do objeto se transforme em perda do eu, causando seu empobrecimento (Freud, 1917/1996b).

Tomando a melancolia como ponto de partida para uma possível compreensão do suicídio, Freud aponta a renúncia à autopreservação, o desapego à vida, a incapacidade de amar, a diminuição da autoestima e a expectativa delirante de autopunição como elementos provenientes do próprio eu que levariam ao desinvestimento no desejo de viver. A melancolia estaria relacionada a uma tendência à autodestruição, que teria o sadismo e a identificação narcísica como elementos centrais de um processo no qual o eu, subjugado pelo objeto perdido que o habita, mortifica-se. É importante destacar que as hipóteses freudianas a respeito do suicídio pautadas na melancolia têm como pano de fundo a predominância da pulsão de morte.

No presente artigo, não me aprofundarei nesses aspectos, pois gostaria de estabelecer um recorte a partir do pensamento desenvolvido por Winnicott, considerando outras questões igualmente importantes para a compreensão do suicídio.

Explicitamente contrário ao conceito de pulsão de morte, Winnicott rejeita a hipótese freudiana de que a vida advenha da não vida e da consequente possibilidade de existência de um desejo de retorno ao inorgânico. Embora a afirmação de Winnicott de que a vida corresponde a um intervalo entre dois estados de não-estar-vivo possa remeter à ideia de Freud (1920/1996a) sobre a vida como um ruído em meio a dois momentos de silêncio, é inquestionável que os desenvolvimentos feitos por cada autor tomam caminhos bem distintos. Enquanto Freud é levado a desenvolver a hipótese do caráter regressivo das pulsões e, consequentemente, a formular o conceito de pulsão de morte, cuja tarefa seria levar da inquietação para a quietude, ou da vida para o inorgânico, Winnicott pensa sobre a existência de um estado de solidão e pré-dependência a partir do qual emergirá o sentimento de estar-vivo, sendo esse estado responsável por fornecer colorido às ideias ou fantasias sobre o estado de não existência anterior. Na sua concepção, o estado de ser advém da solidão essencial, um estado de não ser, que antecede o surgimento dos instintos e o reconhecimento da dependência absoluta. A solidão essencial corresponde ao momento inicial da vida, ao primeiro despertar, cujo estado anterior corresponde a um estado de não existência pleno de paz, que poderia, imaginativamente, ser alcançado através de uma regressão extrema. O autor considera que o desejo de estar morto pode constituir um disfarce para o desejo de retorno ao estado pleno de paz da não existência. Em suas palavras:

O estado anterior ao da solidão essencial é o de não existência, é um estado de não-estar-vivo, sendo que o desejo de estar morto é em geral um disfarce para o desejo de ainda-não-estar-vivo. A experiência do primeiro despertar dá ao indivíduo a ideia de que existe um estado de não-estar-vivo cheio de paz, que pode ser pacificamente alcançado através de uma regressão extrema. Muito do que geralmente é dito e sentido a respeito da morte, na verdade se refere a este estado anterior ao estar-vivo, no qual o estar sozinho é um fato e a dependência ainda se encontra muito longe de ser descoberta. A vida de uma pessoa é um intervalo entre dois estados de não-estar-vivo. (Winnicott, 1990, p. 154)

A partir desse olhar, abre-se uma nova perspectiva de compreensão do suicídio, contemplando a hipótese de que o desejo suicida pode estar relacionado ao desejo de voltar ao início, ao estado de solidão inicial no qual se inaugura a possibilidade de constituir uma vida pautada num verdadeiro self.

Embora a solidão essencial caracterize um momento inaugural que jamais poderá ser reproduzido, Winnicott reconhece a existência de uma solidão fundamental ao longo de toda a vida, considerando a capacidade de estar só como uma expressão de saúde e de maturidade emocional.

Segundo Winnicott, a solidão essencial está intimamente relacionada à boa adaptação do ambiente, que permitirá à criança vivenciar a ilusão de criar o seu próprio mundo a partir da experiência de receber aquilo que necessita, nem mais, nem menos. Nessas condições, a criança poderá experienciar estar só na presença de alguém, uma situação paradoxal pontuada por Winnicott para descrever o momento no qual o bebê, atendido em suas demandas instituais, pode se permitir uma pausa no trabalho constante rumo à integração. Vivenciar esse estado de não integração saudável implicará na possibilidade de desfrutar do estado de relaxamento na vida adulta.

Winnicott (1958/2000) descreve três possibilidades de estabelecimento da relação com o mundo a partir dessa experiência: na primeira, a criança, cuja relação com a mãe-ambiente foi satisfatória, embora saiba que o contato direto entre ela mesma e a realidade externa não passa de uma ilusão, de um fenômeno intermediário, reconhece sua funcionalidade nos momentos em que não está demasiadamente cansada e se satisfaz; na segunda, a criança, que sofreu privações decorrentes de falhas ambientais, fica aflita ao perceber a falta de contato com a realidade externa, de modo que a capacidade de se relacionar é ameaçada, subsistindo à constante dúvida entre a possibilidade de alcançar o amor ou permanecer no isolamento; a terceira possibilidade, decorrente de falhas ambientais mais graves, cuja apresentação do mundo pela mãe-ambiente foi confusa e inconstante, resultará no desenvolvimento de uma patologia esquizoide, decorrente da incapacidade ou da extrema fragilidade da criança em desenvolver qualquer ilusão de contato com a realidade externa.

Retomando o exemplo clínico a partir das perspectivas apresentadas por Winnicott, penso que a relação de Samantha com o mundo era permeada pela insegurança em relação ao amor, de modo que o isolamento representava um recurso defensivo para proteger seu verdadeiro self das ameaças experimentadas pela constante necessidade de se adaptar aos ideais externos. É possível que tenha buscado no casamento a proteção e a segurança que lhe faltavam, mas suas próprias escolhas a mantiveram aprisionada a um estado de submissão, talvez vivenciado como seguro. Com o passar do tempo, a possibilidade de expressão a partir de seu verdadeiro self foi se tornando mais e mais escassa, de modo que só lhe restava o recurso da retirada para um mundo paralelo, visitado nos sonhos e nos devaneios. Samantha passou a viver num estado de isolamento afetivo agravado pela melancolia decorrente da incapacidade de fazer o luto pela morte da mãe.

Em um de seus últimos textos, datado de 1963, intitulado "Comunicação e falta de comunicação levando ao estudos de certos opostos", Winnicott compartilha, aos 67 anos de idade, uma grande inquietação decorrente de sua experiência clínica e de sua extensa pesquisa a respeito do desenvolvimento emocional a partir da relação entre a criança e o ambiente: a necessidade de experimentar a comunicação como uma experiência pessoal e o terror primitivo diante da impossibilidade de que isso aconteça, já que o objeto externo sempre envolveria algum grau de submissão. Essa questão o levaria a pensar que toda comunicação exigiria algum grau de conciliação por parte do self e iria contribuir para sua reflexão sobre a relação analista-analisando. Outra questão central em seu pensamento, que envolveria a separação e o contato presente na relação mãe-bebê, passa agora ao âmbito do intrapsíquico, envolvendo a relação do indivíduo com o seu núcleo secreto do self, ao qual passa a ser atribuído o direito de se manter isolado para não ser violado ou aniquilado pela intrusão. Tomando como referência a imagem do artista que nutre simultaneamente uma urgência de se comunicar e outra urgência ainda maior de não ser decifrado, Winnicott aponta para um dilema inerente ao humano: "é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado" (Winnicott, 1965/1983, p. 169).

Na saúde há, portanto, um núcleo da personalidade que não se comunica, nem é influenciado pela realidade externa, de modo que possa existir simultaneamente uma comunicação e uma não comunicação. O núcleo espontâneo do verdadeiro self é mantido não comunicável e não deve jamais ser encontrado, enquanto o falso self se comunica e é encontrado pelo mundo, admitindo um certo grau de adaptação sem que a espontaneidade seja totalmente perdida.

 

O derradeiro gesto espontâneo

Samanta não foi capaz de encontrar condições para que seu falso self pudesse auxiliar seu verdadeiro self a emergir, passando a viver num estado de submissão no qual, para além dos sonhos e devaneios, a vida era vazia de sentido. Winnicott (1990) afirma que o suicídio nesse contexto representa a única defesa possível contra o aniquilamento do verdadeiro self, cabendo ao falso self organizá-lo.

Entretanto, é preciso considerar que a pintura representou uma tentativa de conexão entre o mundo interno e a realidade compartilhada, um modo de expressão de aspectos provenientes de seu verdadeiro self mediada pelas imagens impressas nas telas. Nos anos em que encontrou espaço para pintar livremente, Samanta provavelmente foi capaz de sentir-se real, talvez tenha podido até mesmo encontrar algum sentido em viver. Me arrisco a dizer que a interferência do marido, que embora demonstrasse interesse e atribuísse valor ao seu trabalho, representou uma traição. Samanta não desejava ser reconhecida por sua produção artística, o que ela buscava, através de um gesto espontâneo, era um lugar para viver.

Ao falar sobre o trabalho do artista, Winnicott (1971/1975) nos diz que existem aqueles que trabalham a partir de seu falso self, passando, num segundo momento, à tentativa de atribuir sentido a sua produção relacionando-a com o seu self secreto. Quando isso acontece, pode se considerar que o artista foi bem-sucedido, pois além de ser reconhecido, produziu algo sentido por ele como verdadeiro. Há um segundo tipo de artista, o que produz a partir da representação dos fenômenos secretos do seu verdadeiro self, os quais muitas vezes não podem ser reconhecidos por outras pessoas. Tornar inteligíveis suas representações pessoais traz o sentimento de estar traindo a si mesmo, de modo que a apreciação demasiada de sua produção causa retraimento.

No caso de Samanta, nada deveria ter sido dito, nada deveria ter sido questionado, tampouco direcionado ou modificado por qualquer movimento externo a ela mesma. A intrusão do ambiente a paralisou, ceifando mais uma vez sua espontaneidade, dessa vez pela raiz. Não lhe restava mais nenhuma alternativa além de se refugiar num mundo secreto, totalmente incomunicável, enquanto a vida na realidade compartilhada tornava-se monocromática e vazia. Através do retraimento, buscava estabelecer uma relação com os objetos subjetivos de sua própria criação a fim de sentir-se real, embora o retraimento colaborasse para o empobrecimento de seu mundo interno, enfraquecendo seu sentimento de self.

Cabe a hipótese de que a impossibilidade de estabelecer qualquer comunicação com seu âmago despertou o desejo de voltar ao início, de modo que o ato suicida pode ser compreendido como um derradeiro gesto espontâneo, cuja intenção secreta seria proteger seu verdadeiro self do aniquilamento. Segundo Winnicott (1990), muitas pessoas consideram o suicídio como possibilidade de envio do corpo a uma morte que já aconteceu na psique.

 

Conclusão

O exemplo clínico nos permite refletir, a partir do pensamento de Winnicott (1990), sobre perspectivas relacionadas ao tratamento do suicídio em pacientes na idade madura, através de hipóteses a respeito de uma possível continuidade da análise caso esta não tivesse sido interrompida precocemente.

Samanta apresentava uma organização pautada num falso self patológico e na consequente submissão à realidade compartilhada. Diante dos recursos que lhe permitiram efetuar uma tentativa de comunicação através da pintura, poderiamos considerar que a cisão entre o verdadeiro e o falso self não era extrema, o que nos levaria a pensar numa cisão em decorrência de dificuldades num estágio posterior ao desenvolvimento emocional primitivo.

A perspectiva do tratamento psicanalítico, segundo Winnicott (1965/1983), estaria pautada numa adaptabilidade do setting às necessidades da paciente, de modo que, a partir do estabelecimento da confiança, a regressão à dependência pudesse ser alcançada. A hipótese de que possíveis falhas ambientais passadas pudessem ser corrigidas através de uma atualização representada pela relação de confiabilidade no analista aponta para a possibilidade de que a paciente pudesse restabelecer alguma comunicação com o seu verdadeiro self, reencontrando algum sentido na vida. Para isso, seria fundamental que o analista pudesse sustentar a permanência no lugar de objeto subjetivo pelo tempo que fosse necessário, até que a paciente se tornasse capaz de percebê-lo objetivamente, o que implicaria abstenção de interpretações que pudessem ser vividas como intrusões.

É fundamental destacar que reconhecer as necessidades da paciente implica distingui-las do desejo e da gratificação. Winnicott (1958/2000) considera que, ao nos referirmos a pacientes regredidos, devemos empregar a palavra necessidade em vez de desejo, pois se a necessidade desse tipo de paciente não for atendida - por exemplo, a necessidade de permanecer em silêncio - o resultado não será o sentimento de raiva, mas a reedição falha do ambiente que impediu o desenvolvimento do self. Devemos considerar que a organização cindida dificulta a experiência na realidade compartilhada, e isso, naturalmente, envolve a relação com o analista.

Winnicott (1965/1983) traz uma importante contribuição à técnica relacionada à necessidade de respeito da não comunicação do núcleo isolado do self do paciente. O autor afirma que devemos sempre nos perguntar se permitimos que o paciente nos comunique que não está se comunicando, o que seria diverso de uma situação na qual a falta de comunicação representa uma falha ou uma atitude defensiva.

A compreensão do suicida como alguém que imagina encontrar na morte a única alternativa diante da submissão aponta para a necessidade de um setting analítico continente, que possa considerar a extrema vulnerabilidade do paciente oculta sob uma aparente normalidade. Nesse sentido, a comunicação envolvendo aspectos que antecedem a palavra pode tomar o lugar da interpretação, pois, a partir do manejo clínico adequado, será possível o estabelecimento de uma conexão com as falhas passadas e a consequente construção da possibilidade de que o self do paciente venha a se apresentar ao analista.

 

Referências

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Correspondência:
Marcia R. Bozon de Campos
Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 122
05415-012 São Paulo, SP
Tel.: 11 99157-5069
marciarbozon@gmail.com

Recebido em 18/11/2019
Aceito em 17/12/2019

 

 

1 O conceito freudiano de narcisismo primário foi reelaborado por Winnicott considerando o desamparo e a completa imaturidade do bebê nos primórdios da sua existência. Partindo da premissa de que nesse momento inicial não existe um bebê sozinho, o narcisismo primário constitui a experiência de fusão entre o bebê e o ambiente. Para maior aprofundamento, ver "A situação do narcisismo primário" (Fulgencio, 2013).
2 Na terminologia utilizada por Winnicott, a expressão gesto espontâneo significa o movimento primordial feito pelo bebê em direção ao ambiente quando este se permite ser explorado e descoberto. O bebê ainda se encontra fusionado com o ambiente nesse momento inicial.
3 A apresentação de um exemplo clínico no contexto deste artigo tem o objetivo de auxiliar na reflexão sobre o recorte teórico apresentado sobre o tema do suicídio. Como apontou Nasio, um exemplo clínico tem uma função didática que implica "transmitir a psicanálise por intermédio de uma imagem, ou mais exatamente, por intermédio da disposição em imagens de uma situação clínica que favorece a empatia do leitor e o introduz sutilmente no universo abstrato dos conceitos" (2001, p. 12).

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