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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Clínica extensa: interfaces da psicanálise e da educação

 

Extensive clinic: interfaces of psychoanalysis and education

 

Clínica extensa: interfaz de psicoanálisis y educación

 

Clinique extensive: interfaces entre psychanalyse et éducation

 

 

Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo; Raul Gorayeb; Silvia Martinelli Deroualle

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta a experiência de três psicanalistas que, juntos, acompanharam um grupo de educadores impactados com o crescente número de ameaças de suicídio e de suicídios consumados entre os alunos de suas diversas unidades escolares. O desamparo, a impotência e a angústia caracterizavam os relatos que chegavam como um pedido de socorro. Como evitar que novos episódios trágicos ocorressem? O que deveriam saber que garantisse o manejo adequado e preventivo? Sentiam-se perdidos diante dessa realidade inusitada. A psicanálise enquanto método promoveu um processo de ressignificação dos elementos apresentados, recolocando os educadores como possuidores de competências e conhecimentos suficientes para lidar com esse fenômeno, que tem implicações predominantemente de ordem social e também psíquica.

Palavras-chave: suicídio, clínica extensa, mito do especialista, quarto de despejo, judicialização


ABSTRACT

This article presents the experience of three psychoanalysts who worked together with a group of educators who were under the impact of the growing number of suicidal threats and actual suicides within their school systems. The educators' discourses were characterized by the feelings of helplessness, impotence and anxiety, and came as a cry for help. How do they avoid tragic episodes from happening again? What should they know to help prevent such situations and how to deal with them when they happen? Educators were felling lost facing such uncommon reality. Psychoanalysis as a method promoted a process to re-signify the presented new elements, bringing the educators knowledge and competence to deal with this phenomenon that has such psychological and social implications.

Keywords: suicide, extensive clinic, specialist myth, room of eviction, judicial


RESUMEN

Esta artículo presenta la experiencia de tres psicoanalistas que, juntos, acompañaron a un grupo de educadores impactados por el creciente número de amenazas y suicidios consumados entre estudiantes de sus diversas unidades escolares. El desamparo, la impotencia y la angustia caracterizaron los relatos como un pedido de socorro. ¿Cómo evitar que ocurran nuevos episodios trágicos? ¿Qué deberían saber para garantizar una conducción adecuada y preventiva? Se sintieron perdidos frente a esta realidad inusual. El psicoanálisis como método promovió un proceso de resignificación de los elementos presentados, reubicando a los educadores como poseedores de suficientes habilidades y conocimientos para enfrentar este fenómeno que tiene implicaciones predominantemente sociales y psíquicas.

Palabras clave: suicidio, clínica extensa, mito del especialista, cuarto de desalojo, judicialización


RÉSUMÉ

Cet article présente l'expérience de trois psychanalystes qui ont accompagné ensemble un groupe d'éducateurs sous l'impact du nombre croissant de menaces et de suicides accomplis, ayant lieu parmi les élèves de leurs diverses unités scolaires. Le désarroi, l'impuissance et l'angoisse caractérisaient les rapports qui arrivaient comme un appel à l'aide. Comment éviter que de nouveaux épisodes tragiques arrivent-ils? Ce que devraient-ils savoir qui serait capable de garantir une façon de faire adéquate et préventive ? Ils se sentaient perdus devant cette réalité inusitée. La psychanalyse en tant que méthode a promu un processus qui a établi une nouvelle signification des éléments rapportés, en remettant les éducateurs en possession de compétences et connaissances suffisantes pour affronter ce phénomène qui a des implications en particulier d'ordre social et aussi psychique.

Mots-clés: suicide, clinique extensive, mythe du spécialiste, chambre de débarras, judiciarisation


 

 

Proposta do método psicanalítico com grupos de educadores

Freud, ao se interessar pela articulação possível entre a psicologia individual e a psicologia do coletivo, pôs em evidência a fecundidade dessa articulação, ampliando o campo de utilização do conhecimento analítico para além das fronteiras do consultório e da terapia individual. Em 1921 publica Psicologia das massas e análise do eu, obra em que propõe: "Na vida psíquica do indivíduo, o outro entra em consideração de maneira bem regular como modelo, objeto, ajudante e adversário, e por isso, desde o princípio, a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social" (2013, p. 18).

Desde essa época, ele já se interrogava sobre o que mantém uma massa de pessoas coesa, sobre os mecanismos contidos nesse fenômeno. Para ele, a psicanálise tem uma abrangência muito maior que a terapia de consultório. O rumo que vislumbrou era o de a psicanálise se constituir numa ciência geral da psique, que congregasse saber e cura.

Essas ideias se apresentam principalmente em mais quatro de suas obras: Totem e tabu (1913), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939). Hoje, por parte de diversos analistas, temos a ampliação do interesse em realizar trabalhos de intervenção e desenvolver conceitos sobre características do funcionamento de grupos, instituições, empresas e outros coletivos.

A bibliografia, atualmente bastante extensa, mostra o quanto esse campo é promissor. Bion foi um dos que contribuíram de forma importante para ampliar conceitos e técnicas no trabalho com grupos, através das suas experiências durante o período em que participou da Segunda Guerra Mundial.

Privilegiamos apenas alguns autores, porém é fundamental compreender que o trabalho psicanalítico com grupos carece de teorias e técnicas próprias, que não é uma simples transposição do que se faz nas análises individuais, dentro dos consultórios. Assim, os grupos que se formam nas instituições também têm características peculiares, inerentes ao contexto a que pertencem.

Bleger (1991) propõe expandir a afirmação de E. Jaques de que as instituições funcionam como defesa diante de ansiedades psicóticas.

Se observarmos as dinâmicas de funcionamento dentro de instituições, identificaremos uma série de comportamentos e movimentos comuns a todas elas. Como exemplo, podemos apontar a tendência à burocracia e a resistência a qualquer mudança que se apresente. Bleger sugere que, para desenvolver qualquer trabalho com grupos, é necessário ter claro quais são os objetivos a ser alcançados e fazer um diagnóstico de como se encontra a organização. É preciso conhecer a instituição, seus integrantes (dependentes, simbióticos; neuróticos, normais; perversos, com personalidades psicopáticas) e as formas de identificação que se estabelecem, tendo em mente que não há pretensão de cura.

Para Bleger, nas instituições se encontram imobilizados os estratos mais primitivos da personalidade dos indivíduos.

Nesse sentido, Roussillon (1991) acrescenta que há um aparelho psíquico grupal e institucional, com resíduos não simbolizados das relações interindividuais e intergrupais. Esses resíduos não simbolizados precisam estar contidos no que ele denominou de quarto de despejo. É necessário haver um sistema de tratamento e busca de elaboração desses resíduos, que seriam espaços muito bem estruturados, com a função de conter o não simbolizado.

Estamos nos referindo a elementos inconscientes individuais que vão transitar com elementos inconscientes grupais e interindividuais, os quais precisam ser contidos, compreendidos e elaborados, sob o risco de desorganizar ou mesmo criar situações de violência. Dentro da instituição, o terapeuta ou agente terapêutico se move na fronteira. Ele não pertence à hierarquia institucional, embora esteja dentro dela. A esse espaço de tratamento, Roussillon chamou de espaços intersticiais, que seriam como "uma câmara de escape; é o espaço-tempo no qual se realizam de maneira espontânea os renivelamentos psíquicos e as regulações de tensões" (1991, p. 141).

Por sua vez, René Kaës (1991) apresenta um novo conceito, em que o inconsciente não é só individual, subjetivo, mas intersubjetivo. E vai além: uma parte do inconsciente individual pertence às instituições das quais o indivíduo participa, nas quais se apoia, e é mantida por elas. O autor cria o conceito de aparelho psíquico grupal e propõe uma quarta ferida narcísica, segundo a qual a instituição vai trazer ganhos, mas também frustrações e sofrimentos.

 

Clínica extensa

A clínica extensa, de acordo com Fabio Herrmann (2005), não se refere apenas à aplicação do método psicanalítico a situações exteriores ao consultório (a primeira ideia que ocorre é de um trabalho em hospitais, clínicas universitárias e escolas). Não é somente a extensão a outros domínios, mas a recuperação do patrimônio original. A psicanálise da cultura e da sociedade, a correlação de mão dupla com a literatura e as artes, a própria integração com o reino das ciências são consideradas clínica extensa.

Temos um compromisso com essa expansão do conhecimento para além da clínica-padrão.

Ao trabalhar com a ideia de clínica extensa, Herrmann sugere uma rigorosa recuperação do próprio método psicanalítico, que em parte se confundiu com a técnica de consultório, em parte com as teorias mais tradicionais.

Por método entende-se o método interpretativo. Sabemos que interpretar pode ganhar outros significados, tanto dentro como fora do campo psicanalítico. Alguns dão a essa palavra o valor de decifração ou tradução; outros acreditam que é o intérprete que sabe e pode revelar a verdade escondida naquilo que é dito. Entendemos que o exercício da abstinência se torna peça-chave para que as interpretações não se apresentem como diretrizes ou doutrinamentos, mas antes abram novos sentidos e significados. Desse modo, as mudanças que possam acontecer no pensamento ou na atitude dos participantes decorrem de transformações internas, intrapsíquicas, e são o que garante a produção psicanalítica. Em última análise, a interpretação mostra que um conjunto de ideias e falas significa algo diferente do que parecia manifestar inicialmente, ou seja, a partir do método são criadas condições para que ocorram ressignificações.

Sempre que praticamos o método psicanalítico, criamos condições para o exercício da fUnção terapêutica, e isso tanto na psicanálise tradicional de consultório como em intervenções, visando o treinamento e o desenvolvimento emocional de equipes profissionais. Fabio Herrmann diz:

Na psicanálise bem conduzida encontra-se a função terapêutica em grau ótimo, enquanto em atividades burocráticas ela tende a zero. Ocorre na maioria dos encontros humanos - conferindo-lhes humanidade, exatamente -, mas, ao ser praticada com alguma arte, confere-lhes intensidade emocional e poder de revelação, o que afasta o caráter de rotina da realidade. (2006, p. 58)

Em muitos relatos de educadores, observamos que a confecção de atas e relatórios de infrações ocorridas na escola funciona como uma tentativa de ordenar e aplacar a turbulência do encontro humano, de amainar a intensidade emocional e o risco subjacente de haver uma denegação da subjetividade. O sujeito desaparece; a humanidade fica opaca, borrada; seguem-se as normas rotineiras.

Nosso esforço tem se pautado na recuperação da função terapêutica do encontro humano.

Nesse sentido, toda vivência dentro do grupo de educadores promove a função terapêutica. No grupo, os participantes estão duplamente expostos: curam-se as relações, e eles se tornam aptos a propagar a função terapêutica. Ao mesmo tempo que os educadores são cuidados, eles se capacitam a cuidar de si e dos outros, ou seja, a experiência vivida os coloca como multiplicadores da função terapêutica.

Podemos chamar de prevenção primária o trabalho em que se busca desenvolver as capacidades e aptidões dos indivíduos. A escuta do profissional deve se dirigir para o que está latente, contido na demanda explícita.

 

Grupo de Reflexão Educação e Psicanálise

Fomos convidados a realizar um trabalho inicialmente com diretores e orientadores educacionais das Escolas Técnicas Estaduais (Etecs),1 com a demanda, por parte da diretoria da instituição, de esclarecimentos, por estar aumentando a incidência de tentativa de suicídio entre os alunos. Já ocorreram algumas situações difíceis, até mesmo com desfechos fatais: "Temos fortes preocupações com o que vem acontecendo".

Os educadores nos solicitam um trabalho nesse sentido. Sentem-se inseguros, sem saber como agir. Após a escuta atenta de quais eram as expectativas, elaboramos um projeto que se intitulou Grupo de Reflexão Educação e Psicanálise. Somos três psicanalistas e fazemos parte da Diretoria de Atendimento à Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (DAC-SBPSP).

A ideia foi desenvolver, com os educadores e a partir de seus próprios relatos, um pensar comum, um entendimento das dificuldades que surgem no dia a dia, para que eles recuperassem a confiança na sua capacidade de manejo e resolução de problemas. Propusemos criar um espaço de troca de experiências e, com base na contribuição de todos, construir um saber comum, possibilitando a produção de uma nova narrativa do grupo, para o que eles mesmos estavam vivendo.

Quando a escola ganha o status de pano de fundo de todas as angústias e sofrimentos das crianças e dos jovens, os educadores são levados a áreas complexas, necessitando de reflexão para dar conta das demandas emocionais, como as ameaças de suicídio.

A psicanálise e a educação têm como andar juntas no contrafluxo do que é alienante e reducionista, contribuindo para que os jovens usem suas competências, seus talentos e seu imenso poder criativo para dar novos sentidos ao que estão vivendo.

Para nós foi muito importante esse pedido de intervenção, na medida em que somos um grupo que há anos vem trabalhando na interface da psicanálise e da educação, promovendo jornadas anuais, na forma de simpósios, na sbpsp.

Munidos do método psicanalítico, atendemos um grupo piloto com as seguintes características: os participantes foram selecionados pela direção das Etecs, e desse grupo inicial participaram diretores e orientadores educacionais de 15 escolas da capital; foram oito sessões quinzenais, com duração de 1h30 cada uma; a coordenação do grupo ficou a cargo dos três psicanalistas encarregados do projeto.

Vamos agora discutir alguns pontos que nos pareceram mais relevantes durante o período de trabalho.

 

O mito do especialista

Logo no primeiro encontro tivemos o seguinte relato:

Houve uma tentativa de suicídio em nossa escola. Uma jovem de 15 anos tomou 180 comprimidos. Ela avisa o que fez a uma amiga por WhatsApp e pede sigilo total, inclusive com relação à escola. Não quer que a mãe saiba. A mãe é alcoólatra, e o pai, segundo a filha, um lixo. Ela não quer que ninguém saiba o que aconteceu.

Nossa contribuição, enquanto psicanalistas, foi trazer para o grupo o método_investigativo, pois ele combate a precipitação para agir e evita os estereótipos. Através de questões levantadas, aconteceu a desconstrução dessa narrativa inicial, a saber, a preocupação com o suicídio.

Ficou evidente que os repetidos "não quero" proferidos pela aluna poderiam ter um sentido contrário: "Quero que todos saibam que tentei me matar, na escola, na família e entre meus amigos".

Conforme a discussão avançou, chegou-se a questionar se a jovem havia mesmo tomado a referida quantidade de comprimidos. Uma dose tão alta de medicação não a deixaria em condições de conversar com a amiga. Criamos o ambiente para a participação de vários educadores presentes, de outras unidades escolares, que contribuíram com dúvidas, compondo outra versão e outro entendimento do episódio.

A partir da investigação da narrativa inicial, abrem-se novos sentidos e novas questões. "Vocês, os especialistas da área mental, é que sabem o que fazer"; "Vamos encaminhar para tratamento com especialistas"; "Fui até conversar com um psiquiatra para entender essas questões".

Surge o que denominamos de mito do especialista, a necessidade do grupo de colocar a angústia vivida e a responsabilidade pelo conhecimento - o suposto saber - num profissional de fora da instituição, devidamente preparado.

O mito do especialista está ligado à fragmentação dos procedimentos e à projeção do saber em uma entidade externa, com o objetivo de atenuar a angústia despertada numa reflexão sobre si e sobre a instituição. Alguém de fora teria o saber necessário para lidar com situações tão delicadas e complexas.

As instituições são criadas para cumprir um projeto. No caso das escolas técnicas, o projeto é formar e profissionalizar adolescentes e inseri-los no mercado de trabalho. Quando surgem questões como ameaças de suicídio, que vêm aumentando significativamente, a instituição busca o psicanalista para cuidar daquilo que ela não se sente em condições de cuidar.

A função analítica nos parece ser a de facilitar o surgimento de outros entendimentos e significados, permitindo ao educador recuperar as próprias habilidades para lidar com essas situações, isto é, dar representação àquilo que lhe escapa num primeiro momento, em razão do impacto emocional dos episódios e situações de risco.

O nosso trabalho consistiu em desfazer esse mito e levá-los, enquanto grupo de educadores, a se perceber capazes de refletir, aproximar-se e apropriar-se das questões de seus alunos, com a competência que já têm, mas não reconhecem.

A judicialização e a ideologia da infalibilidade

Se num primeiro momento o tema emergente nas discussões do grupo estava voltado para os adolescentes "deprimidos" e em situação de risco de vida, num segundo momento a questão se ampliou para as contradições que os educadores vivem dentro da própria instituição.

Entendemos a instituição como a apresenta Kaës, uma formação da sociedade e da cultura que tem uma lógica própria de funcionamento: "A instituição é o conjunto das formas e das estruturas sociais instituídas pela lei e pelo costume; cada instituição é dotada de uma finalidade que a define e a distingue" (1991, p. 25).

A Etec surge como uma instituição educacional com foco na formação técnica e na consequente profissionalização do adolescente. Enquanto instituição educacional pública, tem características bem singulares, que a distinguem do ensino público em geral. É considerada uma escola de elite tanto pela excelência do corpo docente como pelo rigor na seleção e admissão de alunos.

Em meio a esse caldo de cultura institucional, surge o seguinte relato a respeito da sobrecarga de trabalho dos diretores e orientadores: "Temos que resolver tudo, as questões dos alunos, dos professores e das famílias. É impossível dar conta de tudo. Em algumas unidades temos mais de 4 mil alunos". Essa fala revela um alto grau de idealização, que dificulta, aos participantes do processo, aceitar com mais naturalidade a existência de qualquer adversidade. Sabemos que, num sistema idealizado, qualquer problema funciona como ameaça à própria sobrevivência dele, sendo portanto negado ou transformado em algo a ser eliminado. Decorre daí um enrijecimento das exigências para todos. Isso se manifesta frequentemente num aumento do receio das sanções externas.

O tema da judicialização de certas situações é trazido pelos diretores das unidades, com muita tensão: "Nós somos responsáveis por tudo que acontece com o aluno dentro da escola. Temos medo das sanções burocráticas e legais. Cumprimos regras. Tem muita burocracia a ser seguida".

Sem dúvida toda instituição é pautada por regras e por uma organização. Bleger (1991) trabalha a ideia da conflituosidade potencial entre organização e instituição, e sublinha uma tendência geral da organização a marginalizar a instituição com a instalação da burocracia.

Discutiu-se no grupo a importância de construir uma estrutura em rede, que favoreça uma lógica de responsabilidade coletiva. É preciso sair de um "julgamento condenatório" para um pacto social, comprometendo-se toda a equipe de educadores, alunos e pais. Durante as conversas, mostra-se o aprisionamento inicial dos participantes numa lógica de consumo, como se a escola tivesse um produto a vender e se obrigasse a satisfazer incondicionalmente o consumidor. Aos poucos, a percepção vai tomando outros rumos e é possível recuperar alguma clareza de que a atividade educacional é um processo que se constrói de outro modo, cujo resultado depende de todos que dele participam.

Ficou evidente que a idealização da instituição, tanto pelos professores como pelos usuários da escola, leva a exigências inatingíveis: as escolas têm que ser perfeitas, os alunos têm que ser os melhores, e toda essa construção onipotente, além de ser paralisante, conduz à fantasia de ser infalível, nunca errar, dar conta de tudo.

 

A função da escola

A instituição tem que recuperar a confiança na própria capacidade de suportar, acolher e manejar a turbulência peculiar à adolescência.

No decorrer dos atendimentos com os grupos foi se configurando que a escola, tanto por parte dos alunos como por parte dos educadores, tende a afastar os alunos que transgridem as regras. Uma das narrativas nos pareceu emblemática e merece ser relatada por mostrar um manejo firme, acolhedor e em nada moralista.

O diretor foi chamado por um grupo de alunos para verificar o cheiro que exalava de dentro de um banheiro masculino - era cheiro de maconha. O diretor chamou o aluno que havia usado maconha para conversar a respeito. Para sua surpresa, os colegas que delataram o fato foram cobrar dele providências punitivas. De maneira firme, o diretor ocupou seu lugar de autoridade e mandou todos para suas classes. Apesar de todo o trabalho desenvolvido com o aluno "transgressor", foi impossível mantê-lo na unidade. Pela pressão dos próprios colegas, o jovem acabou pedindo transferência para outra escola.

Essa tendência a expulsar, excluir, colocar fora o que foge da regra, levou-nos a uma discussão aprofundada sobre a função da escola como continente.

Em paralelo a isso, surgiu o tema da permanência de muitos alunos que vão à escola durante as férias, evidenciando a necessidade de ocupar lugares estáveis e seguros, onde possam exercer a interlocução presencial, ser reconhecidos e encontrar o sentido de pertencimento.

No artigo "Os lugares e o ato analítico" (Stucchi et al., 2009), os autores discutem como nas megalópoles dificilmente se formam lugares estáveis, que possibilitem o surgimento de sentido para o que se passa ali. Formam-se assim lacunas no tecido cultural da cidade, que se constituem mais como aglomerações instáveis. Nessas lacunas reina um ir e vir nervoso entre o barulho da violência e a violência do silêncio, refratários à construção de sentido nas relações intersubjetivas de seus habitantes.

A praça pública, o espaço público inexistem como pontos de encontro e referência, levando a escola a ocupar esse lugar inexistente. Em nossas discussões com o grupo, falou-se muito da importância de a escola ser esse lugar que sustenta as identificações dos adolescentes.

Não podemos esquecer da fase turbulenta que se inicia na adolescência, com as descargas hormonais e consequentes transformações no corpo, as dúvidas que invadem os adolescentes quanto ao futuro e a maior responsabilização por suas escolhas.

Eles se tornam protagonistas de sua vida, e com frequência escolhas que parecem pessoais ficam muito atreladas a modelos instituídos de suposto sucesso. Particularmente nas Etecs, esse modelo de sucesso se mostra bastante carregado, pois, além de serem escolas de grande prestígio público, têm um rigoroso exame de admissão dos alunos.

Nesse caldeirão efervescente, os educadores desempenham um papel fundamental, para além do aspecto curricular, na medida em que se tornam uma referência estável nesse peculiar e delicado momento de transformações radicais.

 

Reaprender a viver em comunidade: o fazer junto

Como podemos pensar essa eclosão no número de suicídios entre adolescentes que temos acompanhado pelos jornais e que foi a queixa inicial para sermos convocados ao trabalho?

Segundo a Organização Mundial da Saúde (2019), no mundo, o suicídio já é a segunda causa de morte entre jovens. Tal aumento também se evidencia no Brasil, não se atendo às grandes metrópoles, mas se espalhando de norte a sul.

Nos grupos foi recorrente o tema da tentativa de suicídio pelos adolescentes, alguns efetivamente ocorridos, além de muitos relatos de casos com depressão. Em certos depoimentos, identificamos a presença de doença mental e a necessidade de intervenção médica psiquiátrica.

As narrativas de sofrimento dos adolescentes fazem com que os educadores se sintam impotentes e angustiados. A partir de nossas discussões, não só se abriu espaço para a reflexão como também foi ficando claro não se tratar de encaminhar todos os alunos para atendimento clínico. O suicídio é um fenômeno de múltiplas significações, e o possível entendimento de cada situação em particular não nos autoriza a fazer generalizações.

No fim do século XIX, Émile Durkheim (1897/2000) abordou o suicídio como um fenômeno social, e seus estudos revelaram vários aspectos da interligação da vida pessoal com a vida coletiva, a vida comunitária. Essa interligação o levou a formular a ideia de anomia como expressão de "doença social", em que certos fenômenos, incluindo o suicídio, podem aumentar ou diminuir de intensidade, ou prevalência, numa relação direta com a saúde ou o equilíbrio da sociedade. Não se pode reduzir o entendimento que se pretende ter sobre o suicídio analisando-se apenas as situações individuais, embora elas existam.

Eliane Brum (2018) diz que é na conformação do mundo que devemos buscar pistas para compreender o que o suicídio expressa sobre determinada época. Precisamos examinar a questão no campo do coletivo. Neste mundo distópico existem mais jovens com dificuldade de encontrar e construir sentidos de vida.

A escola, enquanto instituição, tem a possibilidade de criar espaços de diálogo para acolher as questões dos adolescentes?

Em nossas discussões, observamos que muitos alunos, ao passarem por atendimento médico especializado, recebem atestados, os quais os afastam das atividades escolares por longos períodos. Isso caracteriza o fenômeno da estigmatização, cuja consequência é a retirada de direitos de pertencimento social. A ajuda recebida fora da escola não deve ser argumento para interferir na condição do adolescente enquanto aluno.

Em nossa interlocução com os educadores, foi se construindo a importância da inclusão social, a premência de tecer redes de cuidado mútuo. Ou seja, temos que reaprender a viver em comunidade, reaprender o fazer junto.

O grande desafio do educador é como exercer essa função mais ampla do educar sem ser inundado pela condição dramática e precária de muitos alunos.

 

Avaliação e prosseguimento do projeto

Em nosso último encontro, propusemos aos participantes uma avaliação do trabalho desenvolvido. Apresentamos a seguir os principais pontos levantados pelos educadores:

A: Vimos a importância da troca de experiências entre educadores, pois isso possibilitou uma certa relativização da gravidade dos problemas. Nessa troca percebemos que nossos problemas não são tão graves.

B: Aprendemos que não somos responsáveis por tudo e muito menos pelo outro na sua especificidade pessoal e familiar. Fazemos a nossa parte.

C: Compartilhar experiências, proposta deste trabalho, trouxe a possibilidade de conhecer a realidade das outras escolas. Aproveitamos soluções apresentadas por outras unidades. Tivemos acesso à realidade macro da instituição.

D: Os encontros foram férteis e não se esgotaram nas reuniões. Após os encontros, a reflexão e a discussão continuaram nas unidades.

E: Antes dos encontros, sentia culpa por não solucionar todos os problemas dos alunos, pensando que um psicólogo faria melhor. Hoje sei que faço o meu melhor.

F: Alguém está nos ouvindo. Nos sentimos cuidados pela instituição.

G: Não abro mão de minha autoridade, como instrumento facilitador para o aluno enfrentar suas ações e a reação de seus colegas.

Durante o semestre, os educadores propuseram à instituição implementar algumas novas medidas, que trarão benefícios no exercício diário das atividades.

A partir dessa avaliação, ressaltou-se a importância do método psica-nalítico como instrumento de trabalho fora do consultório, ampliando-se o alcance da psicanálise. Consideramos que essa empreitada foi exitosa por tornar os educadores multiplicadores dentro das instituições em que atuam.

Gostaríamos de ressaltar uma fala em particular, pois reflete a eficácia da escuta analítica:

Fiquei muito apreensivo quando chegou o convite para participar deste grupo. Fui logo pensando: "O que será que falamos por aqui que agora estão nos convocando? O que fizemos de errado para sermos convocados?". E foi uma enorme surpresa quando vi que não iam dar palestras nem repreensões. O convite era para que pudéssemos falar. Iríamos ser escutados.

Nas relações interinstitucionais entre a sbpsp e o Centro Paula Souza, a experiência piloto aqui relatada resultou numa proposta de continuidade do projeto, através da constituição de novos grupos, funcionando com a mesma metodologia já descrita. Com isso, entendemos cumprir o nosso papel de operar como catalisadores de um processo de transformação das dinâmicas internas de um grupo de trabalho, sem intervenção direta sobre as suas práticas, o que constitui o ideal de uma contribuição psicanalítica.

 

Referências

Bleger, J. (1991). O grupo como instituição e o grupo nas instituições. In R. Kaës, J. Bleger, E. Enriquez, F. Fornari, P. Fustier, R. Roussillon et al., A instituição e as instituições (J. Pereira Neto, Trad., pp. 59-71). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Stucchi, B. H. P., Vergueiro, F. V., Yamane, L. T., Menezes, L. C., Bilenky, M. K., Miranda, M. R. et al. (2009). Os lugares e o ato analítico: a cidade entre a pólis e a aglomeração. In B. Tanis & M. Guimarães (Orgs.), A psicanálise nas tramas da cidade (pp. 89-104). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Correspondência:
Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo
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Raul Gorayeb
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Silvia Martinelli Deroualle
Rua São Tomé, 119/87
04551-080 São Paulo, SP
Tel.: 11 3846-8061
smderoualle@hotmail.com

Recebido em 18/11/2019
Aceito em 17/12/2019

 

 

1 O Centro Paula Souza mantém 221 Etecs, distribuídas em mais de 163 municípios paulistas. Elas oferecem mais de 140 cursos voltados para os setores industrial, agropecuário e de serviços. Contam com mais de 290 mil alunos matriculados em seus cursos médio, técnico, técnico integrado ao ensino médio e tecnológico.

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