SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.53 número4Clínica extensa: interfaces da psicanálise e da educaçãoO oráculo da noite: a história e a ciência do sonho índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019

 

RESENHAS

 

Objeto, modo de usar: construções de um objeto na psicanálise de pacientes borderline

 

 

Daniel Delouya

Membro efetivo com funções didáticas na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autora: Patrícia Cabianca Gazire
Editora: Blucher, São Paulo, 2017, 232 p.
Resenhado por: Daniel Delouya

 

 

Bons livros, como bons filmes, não deveriam talvez ser resenhados, mas apenas recomendados, da mesma forma que não se pode resenhar boas viagens, limitando-se a indicar roteiros promissores. Gostaria de realizar uma semelhante tarefa, o que não me parece muito simples. O livro de Patrícia, que resulta do texto de sua tese de doutoramento, não se sujeita, no entanto, a uma revisão e a uma crítica linear e sistemática. Em primeiro lugar, a autora se propõe a examinar o tema do objeto em psicanálise a partir do atendimento clínico de Ágata, paciente que iniciou o tratamento com Patrícia quando tinha 32 anos de idade e o interrompeu depois de cinco anos. A princípio, Ágata foi atendida por ela num centro de atendimento, com o apoio de uma supervisão numa equipe de discussão e pesquisa. Mais tarde, ela passou a ser atendida no consultório de Patrícia. Esse caso foi objeto da primeira supervisão oficial no Instituto Durval Marcondes da sbpsp. Na sequência, serviu de tema para a tese de doutoramento no programa de pós-graduação em psicologia social da Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot, onde a autora elaborou e defendeu a tese em 2015. A oscilação entre lugares e regimes duplos, de trabalho e de elaboração (instituição médica/consultório, SBPSP/universidade, usp/Paris 7, formação psicanalítica/doutoramento, relatório oficial/tese, português/francês, São Paulo/Paris), constitui um notável marco dessa trajetória, que não só ilustra a possibilidade fecunda dessa travessia pelas fronteiras, mas de alguma forma autofigura o dilema de vida de Ágata e a questão que impulsionou a pesquisa e a escrita deste livro. Fronteira e limite não são somente uma configuração clínica para a qual a autora dedica e justifica o seu diagnóstico de paciente borderline, senão o universo do qual a psicanálise se ocupa, a começar pelo conceito-chave de pulsão, tão caro à autora, além de tantos outros em Freud, como o eu e, sobretudo, o objeto, tema do livro. A ênfase, porém, está no movimento, na travessia, como frisei antes, e portanto, em acréscimo à fronteira, valeria pôr em relevo a imagem da cesura, de corte e continuidade, que Bion e sua tradição têm elaborado a partir de Freud. Indicarei logo mais a extensão desse aspecto transicional na obra que a autora nos oferece.

A análise de Ágata é descrita com detalhes, assim como as terapias que precederam o seu encaminhamento para Patrícia. Registram-se tentativas de suicídio, entre outros episódios que sugeriram diagnósticos psiquiátricos diversos, como anorexia nervosa e transtorno obsessivo-compulsivo. As tentativas de suicídio coincidem com a saída de sua terapeuta da instituição e a interrupção do tratamento. Cortes no corpo e extração de sangue seguida de sua coleta em tubinhos são atos aos quais a paciente recorre, em momentos de desespero, no decorrer do tratamento com Patrícia. Com certo fascínio, acompanha as formas geradas pela coagulação das amostras de sangue, que ela conserva e guarda, como se os cortes e os coágulos lhe restaurassem a evidência e a continuidade de sua existência. Desde a infância, criava animais em casa e os acompanhava até a morte, reservando-lhes um lugar de enterro e sepultura. No decorrer da análise, passa a alimentar patos no Parque Ibirapuera e depois se dedica a nutrir gatos nas escuras ruelas do centro da cidade. Sua vida junto à família é conturbada, sobretudo com a mãe, que a rejeita desde sempre, manifestando nojo em relação ao seu corpo e aos cheiros que emanam dos preparativos de suas refeições. Na sua gestação, a mãe esperava e desejava um menino - o que não deixa de acusar a filha de frustração -, além de ter tentado um aborto, algo que a própria Ágata acabou realizando, repetindo a mãe na sua vida adulta. Não é difícil adivinhar que, nesse cenário, Ágata está fadada, apesar de algumas tentativas concretas, a não poder viver longe da mãe, a ter grandes dificuldades em se separar dela e adquirir certa autonomia em sua vida. Como se tivesse de insistir, indefinidamente, sobre o reconhecimento de seu direto de existência por parte da mãe. Essa trama acaba tendo uma expressão aguda no enquadre institucional e da análise, no campo transferencial estabelecido com a analista. Submetida ao gozo dos outros, conforme a expressão precisa dos lacanianos, Ágata terá de atravessar, na análise, um penoso caminho para se desprender, em certa medida, do seu objeto primário, o qual, devido às suas próprias carências, instalou-se em Ágata quase como objeto único, melancólico, de necessidade, sem propiciar um espaço amoroso suficiente, tributário de referências autoeróticas, para que ela possa se separar dele, tornando-se maleável para confiar nos - investir; brincar e trocar com; e substituir os - outros. O luto necessário implica uma reconstrução do objeto. Na descrição deste trabalho, o leitor encontrará um genuíno manejo relativo aos lanches que Ágata trazia, desde o início, para as sessões. O luto na análise se inicia, numa espécie de revivescência, com a dialética entre corpo/comida (abjetos para a mãe) e o seu continente objetal (a lixeira/mãe, evocando em parte a função do seio-latrina em Meltzer).

Interrompo aqui o destaque de alguns aspectos dessa bela narrativa clínica. Ágata manifesta uma patologia do eu, um sofrimento em adquirir a noção de sua circunscrição em relação ao que a move (impulsos de seu recalcado) e, associado progressivamente a este, em relação aos outros e ao mundo que partilha com eles. A aquisição dessa dupla demarcação em relação a esses infinitos continentes - sujeita desde sempre a uma oscilação entre diferentes graus de lucidez evanescente - seria, grosso modo, uma das possíveis definições coloquiais daquilo que, em psicanálise, denominamos sujeito. O eu se implica, aqui, como um próprio objeto de investimento, tendo e obtendo sua infraestrutura a partir do inventário da história dos investimentos dos outros significativos de sua infância. Ele se constitui mais enquanto rede de inscrições de investimentos pelos objetos, à imagem de um verdadeiro cemitério, que segundo os antropólogos levou, na história da humanidade, ao nascimento das cidades. A insuficiência desse inventário, como no caso de Ágata, condena o eu a se aprisionar (investindo-se), defensivamente, em uma posição especular em relação à vida, aos outros, já que se encontra ora num vazio, abortada e abandonada, ora assaltada pelo excesso de dentro e de fora, reiterando a abjeção traumática de seu meio. Nessa própria investidura malogra o sujeito, pois Ágata fica impedida de alcançar, em alguma medida, a dupla e entrelaçada dissimetria - entre ela e o seu parco patrimônio inconsciente e, consequentemente, entre ela e os outros. Por isso, Jacques André, o orientador francês de Patrícia, afirma que a paciente, formada em arquitetura, é uma arquiteta sem arquitetura.

Nesse breve entendimento, fica implícita a retroalimentação, na constituição do eu, entre sua rede objetal e a do mundo, "sua cidade"; entre a arquitetura "interna" e a "urbana". Veja-se, por exemplo, o esforço da paciente em restaurar a ternura de seu entorno infantil, desde a companhia e os cuidados dos animais em casa até os gatos esfomeados e abandonados nas ruas frias e escuras da cidade. Em seu trabalho, Patrícia centra-se no objeto enquanto construção dessa rede interior, mas a grande qualidade de seu pensamento é, novamente, a transição nessa construção entre a dimensão tópica e a temporal, histórica (a dinâmica e a economia pulsional tal como foram mal manejadas pelo entorno). Para tanto, ela não só recorre, e de forma fluente e elegante, à literatura psicanalítica em torno do objeto dentro de uma explanação da metapsicologia, mas também mostra que essa história de tempo-espaço "interior" está entrelaçada ao universo "exterior", urbano, e sua cultura. A literatura e a poesia de um lado, uma joia imperdível nesta obra, e de outro o pensamento político da psicanálise, com a ajuda da filosofia, são ambos explorados de forma clara e profunda. E isso tudo com a elaboração da história de Ágata, o seu diagnóstico, o enquadre e o seu processo de cura.

Vou parar aqui. Manifestei muito pouco do que este belo livro traz, obra que lembra pouco seja uma tese, seja um relatório, embora contenha ambos em uma criação bastante encantadora e exemplar para quem se interessa em juntar os dois em uma coisa só. Leiam uma, duas vezes. Uma aventura que vale.

 

 

Correspondência:
Daniel Delouya
Rua Capote Valente, 439/104
05409-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3063-0018
danieldelouya@gmail.com

Creative Commons License