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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019

 

RESENHAS

 

O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da qual é ex-presidente e professor de seu Instituto. Editor dos livros dos encontros bienais da SBPSP, dos quais foi coordenador, e autor dos livros Sismos e acomodações (Rosari), Dante e Virgílio (Blucher) e Reflexões sobre a vaidade (no prelo)

Correspondência

 

 

Autor: Sidarta Ribeiro
Editora: Companhia das Letras, São Paulo, 2019, 488 p.
Resenhado por: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

 

 

Não cabe ao sonhador vaticinar o futuro do livro resenhado, porém no caso em curso eu arriscaria dizer que temos candidato a um clássico. Mas clássico de quê? E para quem? Para mim, clássico da reflexão milenar sobre o problema mente-corpo, que interessa a cientistas, filósofos, antropólogos, sociólogos e, claro, a nós, psicanalistas.

Uma epígrafe singela para esta obra pode ser encontrada flutuando em seu interior: "Negar a eficácia do oráculo probabilístico [o sonho] é tão arriscado quanto acreditar piamente em suas premonições" (p. 33). Seu título poético tem raízes claramente mitológicas e expressamente atuais, se considerarmos que a quase totalidade da humanidade depara-se cotidianamente com as experiências de dormir e sonhar.

A pretensão do autor nos é oferecida logo de saída, aguçando nossa curiosidade e apetite:

Passo a passo, através de uma jornada sinuosa, toma corpo uma teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial de sobrevivência no presente. Tal teoria é a espinha dorsal deste livro. Para apresentá-la será preciso considerar os experimentos pioneiros que identificaram as principais fases do sono, chamadas sono de ondas lentas e sono de movimento rápido dos olhos (sono rem, de rapid eye moviment). Será preciso desvendar a maquinaria cerebral que liga e desliga funções mentais, sem que tenhamos a menor consciência disso. Durante o sono de ondas lentas, que domina a primeira metade da noite, pouca atividade elétrica é gerada no interior do próprio cérebro, que por isso reverbera memórias sem vividez. Trata-se de um estado em que pensamentos normais coexistem com a ausência de imagens sensoriais. Em contraste com esse sono desprovido de luz e formas, o sono rem é marcado por grande ativação cerebral, que reverbera memórias com muita intensidade. Essa reverberação é o próprio material de que são feitos os sonhos [ou seja, aquilo que Shakespeare denominou de furniture of dreams (a mobília dos sonhos)]. (pp. 33-34)

Não por acaso, a editora acaba de lançar também o quarto volume das obras completas de Freud, A interpretação dos sonhos, com tradução direto do alemão feita por Paulo César de Souza. Essa é a obra matriz da psicanálise, na qual, mergulhando o mitológico, o biológico e o cultural no caldo orgânico da clínica psicanalítica, Freud pôde estabelecer as bases epistemológicas de sua teoria da subjetividade, expandindo exponencialmente a milenar interpretação onírica, que permitiu a muitos traduzir o Die Traumdeutung como A chave dos sonhos.

Talvez um dos maiores méritos da obra de Ribeiro seja ter imprimido a ela o tom imparcial de um pesquisador da natureza humana, valendo-se de uma visão ampla dos conhecimentos até agora adquiridos e colocando a neurociência, sua especialidade, como um mero termômetro para validar ou mesmo questionar as teses acumuladas por qualquer pesquisa autêntica. Para o caso específico das contribuições psicanalíticas, o livro fornece um resgate vigoroso de suas hipóteses sem impor qualquer doutrinação ideológica, o que comemoramos com entusiasmo, por tratar-se de um reforço insuspeito acerca da tão contestada "cientificidade" da psicanálise.

Para nós, que cotidianamente vivenciamos o caráter não sensorial do amor e do ódio na clínica, mas que por isso mesmo nunca duvidamos de sua veracidade, esse ceticismo causa inevitavelmente danos e distorções ao coração da psicanálise, a metapsicologia, que Freud foi o primeiro a reconhecer ter um caráter proteiforme e permanentemente fugidio. Mas, se essa é a natureza de nosso objeto, como escapar de sua essência?

Vejamos, por exemplo, este enunciado limpidamente conclusivo:

O espaço das representações mentais não se confunde com a malha neuronal porque é uma propriedade emergente dela, assim como o movimento sincronizado de um grande cardume resulta da interação de todos os peixes, mas não pode ser explicado pelo que se passa em cada peixe individualmente. A mente opera através de leis simbólicas próprias - associação, deslocamento, condensação, repressão e transferência -, que se ancoram microscopicamente nos mecanismos de plasticidade sináptica apresentados nos capítulos anteriores, mas decerto não se reduzem a eles [itálico nosso]. (pp. 254-255)

Ressaltemos, ao final desse pensamento, como é delicada uma reflexão não dogmática.

Tentarei fornecer agora uma amostragem despretensiosamente impressionista da viagem que empreendi ao Oráculo da noite. Muito provavelmente nossos ancestrais pré-históricos foram induzidos a estabelecer uma interação operacional entre sonho e realidade e usá-la como uma arma invisível em prol da sobrevivência. Os produtores de sonhos premonitórios passaram a se destacar em seus grupos tornando-se "o embrião do xama-nismo, tataravô da religião, da medicina e da filosofia" (p. 43). Em algum momento do Paleolítico Superior, a ideia de alma pode ter sido introduzida pelo sonho, como especulado pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917): se um parente morto aparecia para conversar no sonho, ele podia ser imaginado como um ser duplo, capaz de sair de seu corpo e peregrinar ao longe para cumprir certas tarefas.

Gradualmente, a arte de perenizar histórias, diálogos, normas e sonhos através de signos gravados em tabletes de argila ou em blocos de pedra surge na Suméria e no Egito. Em paralelo, o culto dos mortos e dos deuses, implementado por meio dos sonhos, não só foi fundamental ao nascimento da religião como instruiu as narrativas mitológicas das primeiras grandes civilizações: suméria, egípcia, babilónica, assíria, persa, chinesa e indiana. Assim, pelas mãos de Ribeiro, somos levados a trilhar o caminho da história dos sonhos como fonte de comunicação de deuses, espíritos e ancestrais com governantes, xamãs, religiosos ou meras personalidades sensitivas.

Uma inscrição egípcia de 4 mil anos proclama "instruções que sua majestade o rei Amenemhat I deu ao seu filho quando lhe falou num sonho-revelação" (p. 55). O mítico rei de Uruk, na Suméria, foi informado em sonho da existência de um rival. A vitória de Sargão da Acádia (2334-2279 a.C.), da Mesopotâmia, sobre Ur-Zababa ocorreu após um sonho com seu desafeto. Em vários impérios da Antiguidade, os sonhos invadiam a vida política e social, orientando as ações de personagens como Ciro, Xerxes, Alexandre e Júlio César.

Ribeiro começa o capítulo 3, intitulado "Dos deuses vivos à psicanálise", falando da competição entre escrita e imagens, que teria ameaçado a hegemonia do sonhar. Assinala como essa atividade resistiu no islamismo e como sofreu toda sorte de preconceitos por parte do cristianismo. O descrédito do sonhar teria se aprofundado no século XVIII com o racionalismo, base tanto da ciência quanto do capitalismo. A futurologia onírica passou a ser desmoralizada desde a escatologia de Rabelais (1494-1553) até a objetividade cética de Descartes (1596-1650), o qual definiu o sonho como um mero estado ilusório incubado na vigília.

No entanto, para encerrar o capítulo, Ribeiro lembra que Freud enfrentou esse pessimismo estudando o sonho como fenômeno biológico de suma importância na captação das mensagens do inconsciente, desbravando suas redes simbólicas e seus nós cegos. Suas motivações profundas seriam geradas por desejos reprimidos a serem investigados no encontro analítico, e não através de chaves fixas preestabelecidas.

Focalizando mais especificamente a neurociência, destaco os experimentos publicados em 1989 por Jonathan Winson, com os quais se comprovou que os neurônios mais ativados na vigília eram reativados durante o sono subsequente. Temos aqui a primeira evidência eletrofisiológica da teoria freudiana dos restos diurnos.

Na conclusão do capítulo, reservado à reverberação das memórias, somos apresentados a uma metáfora do cérebro do bebê, equiparando-o ao nascer a uma planície arenosa, sulcada apenas pelas memórias inatas do passado filogenético. A chuva que erode o terreno corresponderia à atividade elétrica que vai alterando a topografia formada por um número descomunal de sinapses, ajudando o bebê a construir seu mundo interior. Ao longo do tempo, durante o sono, na ausência de estímulos externos, a atividade elétrica, gerada nas profundezas do sistema nervoso, atinge vigorosamente o córtex cerebral, o hipocampo, a amígdala e diversas outras regiões subcorticais, produzindo experiências oníricas vívidas.

Ao abordar os genes e os memes, Ribeiro nos brinda com um enunciado perturbador: "Sem sono REM não haveria cultura". Isso é algo extremamente sério, e sua explicação apoia-se num estudo publicado em 2017 por Wenbiao Gan sobre a plasticidade sináptica durante o sono rem. De acordo com esse pesquisador e sua equipe, "o sono rem é crucial para incorporar novas sinapses seletivamente em circuitos existentes, atuando como um comitê de seleção para construir e manter a rede sináptica". Ribeiro prossegue: "Sem sono rem as memórias desapareceriam rapidamente sem deixar vestígios, não podendo ser acumuladas para o futuro nem transmitidas de geração em geração" (pp. 222-223). Sempre que a vida pede alterações no software cerebral, cabe a esse sono fazer a reprogramação.

Com as técnicas atuais de imageamento funcional durante o sono rem, foi possível detectar que a presença de fortes emoções no cenário onírico é acompanhada pela ativação da amígdala, região subcortical envolvida na interação emocional com o mundo. Como instrumento simulador de estratégias de sobrevivência, o sonho exerce a função de oráculo probabilístico.

Outro resultado interessante foi a conceituação de consciência primária e secundária formulada por Gerald Edelman (1929-2014), Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1972, que se superpõe aos conceitos freudianos de ego e id, além de nos ajudar a entender por que a passagem de um estado ao outro ocorre, sobretudo, através da verbalização, ou seja, da transformação das coisas na representação do nome das coisas .

Para aqueles familiarizados com a importância da negatividade na geração de pensamentos, essencial para Bion, é interessante assinalar que em 2001 a equipe do neurologista Marcus Raichle, da Universidade Washington, no Missouri, descobriu um conjunto de regiões cerebrais (centradas no córtex pré-frontal medial) que reduzem sua atividade durante a realização de tarefas visando alcançar objetivos, mas que se ativam quando o cérebro "descansa" - por exemplo, quando durante a vigília a pessoa está distraída, sem fazer nada, ou simplesmente devaneando. Esses avanços conferem um suporte neurofisiológico ao verso 58 do Bhagavad Gita (tão decantado por Bion, já que recitado por sua aia enquanto era amamentado), que reza: "Aquele que é capaz de retrair seus sentidos dos objetos dos sentidos, como a tartaruga retrai seus membros dentro do casco, deve ser considerado como verdadeiramente estabelecido no conhecimento" (p. 263).

Ao final, Sidarta Ribeiro faz questão de ressaltar que foram Freud e Jung que criaram as bases para acreditarmos que os sonhos emergem do inconsciente, a fim de descrever situações presentes e possíveis alternativas futuras, através de exercícios magistrais de intuição, dedução e abdução. Coube à neurociência começar a ressuscitar a psicologia profunda, conferindo-lhe a "cientificidade" tão almejada pelos céticos. Aliás, sendo mais específico, o autor assinala a emergência de uma "nova psiquiatria", a partir da constatação de que os psicodélicos serotoninérgicos clássicos estão entre as substâncias que melhor emulam o estado onírico, fortalecendo processos de consciência primária. Psicodélicos como lsd, ayahuasca (harmalina), psilocibina, ibogaína e mdma (presente no ecstasy) vêm sendo usados com rigor científico, associados à psicoterapia, para tratar estados depressivos, dependências químicas e estresses pós-traumáticos, como extensamente discutido na conferência Breaking Convention, encerrada em 18 de agosto de 2019, no Imperial College de Londres.

Para terminar, gostaria de sugerir que um dos maiores problemas do analista é convencer o analisando de que ele não é um oráculo. Talvez pudéssemos parafrasear a Esfinge edípica e perguntar: "O que é que fala como oráculo, aparenta ter a premonição de oráculo e, a contragosto, não consegue se desvencilhar desse rótulo?". Resposta: o psicanalista, mas com uma ressalva importante: "Se você me devorar, eu te decifrarei, mostrando que qualquer transeunte com quem você cruzar em seu caminho será alucinadamente enxergado como um oráculo".

 

 

Correspondência:
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
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