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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

 

RESENHAS

 

La science sociale comme vision du monde1: Émile Durkheim et le mirage du salut

 

 

Marta Raquel ColaboneI; Luiz Eduardo PradoII

IHistoriadora. Psicanalista. Membro do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), São Paulo
IIPsicanalista. Historiador. Escritor. Coeditor internacional da Revista Brasileira de Psicanálise

Correspondência

 

 

Autor: Wiktor Stoczkowski
Editora: Gallimard, Paris, 2019, 640 p.
Resenhado por: Marta Raquel Colabone e Luiz Eduardo Prado

 

 

A invenção do suicídio e a psicanálise

Em 1897, Émile Durkheim publica O suicídio e também A proibição do incesto e suas origens, após ter publicado, no ano anterior, As regras do método sociológico. Essas regras o tornam um dos fundadores da sociologia e um dos expoentes do pensamento de Auguste Comte, criador da palavra sociologia. Para além de fundar a nova disciplina, orienta como aplicar suas regras, tomando o suicídio e o incesto como exemplos fundamentais, o que os pesquisadores de língua inglesa não teriam imaginado.

Assim, naqueles dois anos de 1896 e 1897, Durkheim se torna um dos expoentes do pensamento em ciências sociais, inventa o suicídio enquanto objeto de estudo (antes, era apenas a malamorte) e introduz certo número de temas que se tornariam denominadores comuns a toda boa sociedade intelectual: o incesto, o totemismo, a morte de deus e dos deuses. Introduz ainda o estudo de casos clínicos como método de trabalho e de disciplina na pesquisa.

Durkheim foi, sem dúvida, o "pai da sociologia francesa", e sua obra iluminou boa parte das ciências vizinhas à sociologia. Seus temas se aproximam aos de Freud nessa virada do século XIX para o XX. São vários os exemplos em que Freud se apresenta como contrabandista das ideias entre a França, a Inglaterra e a Áustria, que - lembremo-nos e insistamos - não fazia nem faz parte da Alemanha.

Em 17 de outubro de 2019, o mundo intelectual francês se assusta: no jornal Le Monde, Nicolas Weill, um de seus autores mais prestigiados, apresenta o livro La science sociale comme vision du monde, de Wiktor Stoczkowski, um abalo ao "totem Durkheim". Segue-se uma exposição do trabalho e dos argumentos do antropólogo e diretor de pesquisas da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). "Qualquer um que duvide do culto dos grandes antepassados o fará ainda mais com a demolição bem-feita de um dos 'totens' da sociologia", diz Weill.

Pretendendo-se científico e descritivo, Durkheim seria, de fato, um filósofo moralista carregado de preconceitos cristãos. Sua sociologia visaria a salvar a humanidade, a curá-la, por assim dizer, e seu estudo do suicídio, muito longe de ser objetivo, é um exercício de moralismo disfarçado, com o intuito de reduzi-lo a causas psicológicas.

"O objetivo deste ensaio de referência é mostrar como esse desejo de melhorar a humanidade trabalha em profundidade o corpus durkheimiano, e resulta em simplificações e numa distorção sistemática dos fatos e das fontes" (Weill, 2019).

Durkheim é menos original do que imaginamos. Simplesmente, não menciona o que deve a seus precursores e, se fizermos uma arqueologia de seu pensamento, veremos que suas dívidas são imensas. Ele não é só pai da sociologia; é sobretudo fundador do estilo universitário francês e precursor do estruturalismo,

reduzindo a realidade às oposições binárias da dissertação acadêmica ou, para ser professor, natureza/cultura, humano/não humano, religião/ciência, valores/fatos etc. ... O livro centra-se, em particular, nas duas pesquisas que ancoraram a reputação de Durkheim na memória acadêmica e em duas extremidades de sua carreira: O suicídio e As formas elementares da vida religiosa (Alcan, 1897 e 1912). Sem piedade, Stoczkowski mostra, em relação a O suicídio, considerado uma obra exemplar até hoje, como a obsessão de provar a tese subjacente - o aumento da morte voluntária resulta do afrouxamento dos laços religiosos e de características sociais da modernidade - levou Durkheim a inflacionar as estatísticas de forma grosseira, a ocultar dados perturbadores, que indicariam uma constância na taxa de suicídio, e a ocultar a causa mais frequente dessa tragédia no século XIX, claramente visível nos arquivos policiais: a miséria. (Weill, 2019)

Durkheim quer esconder a miséria como causa do suicídio porque lhe interessa atribuí-lo à psicologia, à moral ou à ética, à religião, enfraquecidas pelas condições da vida moderna, de 1900. Seu livro sobre a religião é de segunda mão, baseado nos livros dos antropólogos britânicos, usando e abusando, com desenvoltura, dos dados trazidos por eles, misturando fontes, tirando conclusões peremptórias do que, para os britânicos, são apenas hipóteses vagas, jamais afirmadas.

Estaríamos tratando de Totem e tabu, de Freud, que cita Frazer umas 100 vezes e, quando não o cita, é porque está citando de segunda mão autores citados por Frazer? Não. Estamos examinando As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim, de 1912, obra produzida quase ao mesmo tempo que a de Freud, publicada em 1913. Convergência de ideias? Talvez, mas sobretudo resultados similares de dois autores trabalhando numa mesma época, em países periféricos aos estudos de antropologia ou etnologia, pois, não devemos esquecer, a Áustria e a França são periféricos em relação à Inglaterra, berço da Revolução Industrial e das ciências humanas e sociais.

No livro O suicídio, de 1897, Durkheim se baseia em dados estatísticos a respeito de suicídios por motivos religiosos e no relato de cinco casos clínicos. Stoczkowski mostra que ambos são falsos.

Sete são os casos reunidos por Durkheim para exemplificar suas teses sobre o suicídio, enfatizando que a destruição de si próprio resultaria de um egoísmo fundamental. O primeiro, entre eles, é o de Raphaël, personagem do romance homônimo de Alphonse de Lamartine; o segundo é o de um negociante que decide se matar por inanição; o terceiro é um caso de suicídio por asfixia de um responsável pela logística do Exército francês; o quarto é o de um órfão que, apesar de viver em calorosa família, decide seguir a mãe quando esta falece; e o quinto é o de um tenor da ópera francesa, Adolphe Nourrit. Durkheim conclui expondo dois outros casos de suicídio: o de Werther, que Goethe conta no livro Os sofrimentos do jovem Werther, e o de René, do romance homônimo de Chateaubriand, publicado pela primeira vez em conclusão de seu O gênio do cristianismo, para exemplificá-lo.

Durkheim não é um clínico. Apoia-se na literatura romântica (Goethe, Chateaubriand, Lamartine) ou em casos relatados por psiquiatras, essencialmente Brierre de Boismont e Jean-Pierre Falret, mas excluindo sistematicamente os psiquiatras que apontam a miséria como razão mais comum do suicídio. Além disso, daqueles sobre os quais se apoia, exclui as passagens que atrapalham sua teoria. Brierre de Boismont diz: "A desigualdade salarial, o desemprego, o aumento do preço dos bens de primeira necessidade, o peso dos impostos são, para muitos infelizes, poderosos motivos de ruína" (citado por Stoczkowski, 2019, p. 192). Isso, Durkheim ignora. Passagens assim - e são muitas - ele exclui sistematicamente. Brierre de Boismont levou 20 anos estudando o suicídio. Organizou e classificou 15 mil cartas de suicídio, escritas entre 1834 e 1843, conservadas pela polícia francesa. Analisou 4.600 dossiês completos de suicídio, examinou 150 pacientes que tentaram seriamente se suicidar e 115 que declararam pensar frequentemente em suicídio. Durkheim ignora a totalidade desse material empírico, porque esses sujeitos "não seriam dignos de confiança".

Stoczkowski é severo nas críticas que faz. Durkheim isola o que lhe interessa para demonstrar o suposto "egoísmo" de seus suicidas, que se tomados no conjunto dos romances não demonstram nenhum egoísmo. Durkheim fala muito do amor: amor ao lucro, à especulação, ao poder, à riqueza, aos prazeres mundanos, a si mesmo, que ele reprova, e amor à ordem, ao progresso, à humanidade, ao divino, ao bem, ao ideal, ao saber, à ciência, ao trabalho, à família, à pátria, que aplaude fortemente. Sobretudo, trabalho, família e pátria. Mas jamais do amor entre um homem e uma mulher, nunquíssima do amor-desejo, da paixão, da carne.

O amor, para Durkheim, é etéreo, jamais carnal. "É sempre o amor de um sujeito impessoal por um objeto conceitual. Uma abstração que ama outra" (Weill, 2019). Para ele, o desejo é pernicioso, o sexo fere a moralidade, a carne engendra transtornos sociais, prejudica a saúde, apenas o casamento pode salvá-la. O raciocínio de Durkheim é simplista: o suicidio é um ato colérico; a cólera é engendrada por decepções; estas são causadas por ilusões que nascem em necessidades desmesuradas, oriundas da falência das regras sociais.

Página após página, Stoczkowski é implacável. Trata-se realmente, como diz o título, de uma imensa confusão, na obra de Durkheim, entre visão do mundo e ciência social. A visão do mundo carrega consigo uma miragem da salvação, e a ciência social é responsável por ela.

O capítulo dedicado ao tema deste número da Revista Brasileira de Psicanálise é "A ciência se mede pelo suicídio", que aparece sob um título mais geral: "Da utilização particular feita por Durkheim de dados factuais para fundamentar suas teses". Curiosamente os dados estatísticos utilizados pelos psicanalistas eram quase os mesmos que os utilizados por Durkheim. Documentos que apresentamos neste número da RBP o mostram.

Na livraria onde fomos buscar nosso exemplar do livro de Stoczkowski, um de nós comentou com a vendedora: "Se fosse um livro sobre Freud e a psicanálise, hordas de psicanalistas atacariam sua livraria denunciando as agressões à psicanálise e à liberdade de pensar". Ao que ela respondeu: "Vocês também vendem livros. É exatamente assim. Psicanalistas detestam o livre debate de ideias." Mostremos aqui que ela se enganava.

 

Referências

Weill, N. (2019, 17 de outubro). "La Science sociale comme vision du monde", de Wiktor Stoczkowski: la sape du totem Durkheim. Le Monde. Recuperado em 10 dez. 2019, de https://www.lemonde.fr/livres/article/2019/10/17/la-science-sociale-comme-vision-du-monde-de-wiktor-stoczkowski-la-sape-du-totem-durkheim_6015927_3260.html.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marta Raquel Colabone
Rua Haddock Lobo, 578, térreo
01414-000 São Paulo, SP
martacolabone@uol.com.br

Luiz Eduardo Prado
107, Rue Mouffetard
75005 Paris, France
ledprado@gmail.com

 

 

1 A ciência social como visão do mundo: Émile Durkheim e a miragem da salvação.

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