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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

 

ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

 

Além do princípio do prazer: entre pulsões, vida e morte

 

Beyond the pleasure principle: between life and death drives

 

Más allá del principio del placer: entre pulsiones, vida y muerte

 

Au-delà du principe de plaisir: parmi les pulsions, la vie et la morte

 

 

Daniel Delouya

Psicanalista. Membro efetivo com funções didáticas na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor sustenta que o princípio do prazer não existe desde o início, mas é consequência do trabalho do objeto, cuja finalidade consiste em deslocar o sujeito do estado do desamparo para o da configuração da ausência do objeto. Ademais, o autor atribui a destrutividade ou a construção na vida psíquica e na cultura não a algo imanente às pulsões, mas ao trabalho sobre e junto a elas, do qual o objeto e a cultura são os administradores e guardiões.

Palavras-chave: pulsão de morte, trabalho do objeto, princípio do prazer, notícias de si


ABSTRACT

The author affirms that the pleasure principle does not exist since the beginning, but it is result of the object's work. Its objective is to take the subject from the helplessness state to the absence of the object. Besides that, the author considers destructiveness or construction in psychic life and culture not inherent to life and death drives, but to the work done with them, when the object and culture are man-aged by the custodians.

Keywords: death drive, object work, pleasure principle, news about oneself


RESUMEN

El autor sostiene que el principio del placer no existe desde el inicio, es una consecuencia del trabajo del objeto, cuya finalidad consiste en dislocar al sujeto desde el estado de desamparo hacia el de la configuración de la ausencia del objeto. Además, el autor atribuye la destructividad o la construcción en la vida psíquica y en la cultura no a algo inmanente a las pulsiones, sino al trabajo acerca y sobre ellas, del cual el objeto y la cultura son administradores y guardianes.

Palabras clave: pulsión de muerte, trabajo del objeto, principio del placer, noticias de sí


RÉSUMÉ

L'auteur soutient que le principe de plaisir n'existe pas dès le début, mais qu'il est la conséquence du travail de l'objet, dont le but consiste à déplacer le sujet, de l'état de l'abandon à celui de la configuration de l'absence de l'objet. En plus, l'auteur attribue la destructivité ou la construction dans la vie psychique et dans la culture, non à quelque chose d'immanent aux pulsions, mais au travail sur et auprès d'elles, dont l'objet et la culture sont les administrateurs et les gardiens.

Mots-clés : pulsion de mort, travail de l'objet, principe du plaisir, nouvelles de soi-même


 

 

O livro de Freud Além do princípio do prazer (1920/2010a) levou, e ainda leva, muitos a um discurso centrado nos embates entre as pulsões de vida e de morte, para descrever e explicar quadros e situações clínicas assim como fenômenos culturais, e não a um discurso inverso, como faz Freud. Se este parte das neuroses traumáticas, do brincar das crianças e do agir transferencial é porque eles questionam o predomínio do princípio do prazer, indicando uma condição anterior, lógica e temporal, ao comparecimento do desprazer/prazer como princípio que rege a vida psíquica. Freud aponta um estado de excesso, de dor, traumático, remontando-o, como tal, a uma condição dos inícios de um aparelho psíquico, em que o desprazer/prazer adviria posteriormente, seria consequência de um esforço de ligação que a compulsão à repetição manifesta. Repetir compulsivamente é uma tentativa renovada e insistente de instaurar uma ligação, um nexo, além de revelar o fracasso de origem, histórico, em instaurá-lo. Uma vez estabelecida a possibilidade da ligação, ela desloca o aparelho psíquico de uma área onde reina o estado de desamparo, de dor, de desligamento, para um estado regido pelo princípio do prazer, no qual o surgimento da angústia como sinal, diante dos impedimentos da realidade, poria essas ligações a serviço do pensar e do viver, ampliando, assim, pela experiência, as redes de ligações. As ligações estabeleceriam as já conhecidas trilhas, termo que Freud usa desde 1895 para designar o registro dos caminhos da experiência com os objetos, alicerces do mundo psíquico como memória e reaprendizagem pela experiência. A repetição revela uma tendência de fundo de um retorno, de uma volta, agindo, do ponto de vista dinâmico, no sentido contrário dos impulsos da força pulsional, cuja natureza é centrífuga, de excitação, em direção à descarga. O viés predominante de retração seria designado por Freud como a tendência conservadora da pulsão de morte ao se opor às excitações vitais da pulsão. Sendo essa retração predominante, ela colocaria esse ser dos inícios em estado de passividade.

Já que em Além do princípio do prazer Freud remete ao estado dos inícios, em que as urgências vitais geram dor e desesperança, surpreende-nos que não recorra ao princípio de fuga, encontrado nos primeiros itens de "Projeto de uma psicologia" (1950[1895]/1995) como segundo princípio que rege o aparelho psíquico, opondo-se ao princípio primário de exigência vital, de excitação pulsional. Tal moção centrípeta, ao se contrapor à excitação das forças vitais, numa espécie de luta, geraria uma compulsão entre o avanço vital e a fuga deste para o retraimento. Entretanto, esse estado ainda está longe de configurar um aparelho psíquico, pois este necessita de uma provisão do princípio do prazer, o qual só pode vir de fora, do outro, algo que Freud explicita de forma exemplar no brincar de seu neto. Se passarmos do modelo abstrato da vesícula protoplasmática para o do bebê, como faz Freud no "Projeto" e nos textos publicados desde 1900, a dor ante as incitações das exigências vitais, assim como dos estímulos externos, por serem intoleráveis e não manejáveis, faz com que o bebê tente se livrar deles, num tipo de ação reflexa evacuativa, através de movimentos de espernear, do desespero, acoplados aos movimentos de choro e grito. Em Sobre a concepção das afasias (1891/1983), Freud se interroga acerca da conexão cerebral entre os centros motor e acústico. É por meio desse nexo, entre o corpo em dor e o grito, que viria a se instalar o acolhimento - ou seja, pela via acústica, da fala, carregada de afetos, da "ajuda alheia", do adulto próximo (Nebenmensch). As "imagens de movimento" oferecidas pelo adulto ao bebê como interpretações visam proporcionar-lhe "notícias de si" (Freud, 1950[1895]/1995). Fort e da são herança desse diálogo e de seu desenrolar histórico, que instrui simbolicamente a criança a lidar com a dor da ausência do objeto. É nesse trabalho feito junto ao objeto que o desprazer/prazer, e seu princípio, encontra sua origem. Portanto, o princípio do prazer não é "natural", não está aí desde o início -essa é a grande descoberta do texto de 1920, sobretudo pelas implicações que abriga -, mas é efeito da intervenção de um outro, pela linguagem, pela via acústica conexa ao corpo, entre outros gestos também significantes, e suas representações de movimento corporal.

Trata-se de algo evidente que, no entanto, não é apreensível pelos aparatos conceituais disponíveis, já que essa ligação entre os dois universos - de um lado, a língua e seus signos e os afetos associados a eles; de outro, o mundo de forças e energias - desvela efeitos causais entre esferas de lógicas inteiramente distintas. O regime de desprazer/prazer advém em virtude daquilo que será introduzido e proposto de fora, pelo adulto e seu universo, e que apreendemos no mundo humano como acolhimento e contenção, junto a uma dimensão, nem sempre aparente, de uma sedução, e de uma excitação que lhe é própria, vinda do inconsciente infantil do adulto - contenção e excitação em cujos limiares se desenrolam as séries de desprazer/prazer, trazidas nas imagens de movimento, presentes nos gestos e enunciações do adulto. Uma excitação relativamente contida pode vir a ser uma morada própria do prazer (por exemplo, no brincar), assim como uma descarga de excitação pode gerar um desprazer - nem sempre a descarga é sinônima de um prazer. O interessante, porém, é que a condução pelo adulto, entre excitação e contenção, anda em paralelo com as tendências originárias, centrífugas e centrípetas, das pulsões. E é isso, sobretudo a moção dominante de retração e fuga, que permite que as imagens de movimento gestadas pelo adulto sejam contidas em traços, em trilhas, fonte da memória e da reaprendizagem com a experiência. Ou seja, as ligações e suas inscrições em trilhas mnêmicas são tributárias da moção de retração, agindo sobre os impulsos pulsionais de caráter centrífugo.

Tudo depende, portanto, daquilo que vem de fora, do objeto. Entretanto, a fonte de prazer se torna ainda mais misteriosa, e não somente pelo fato de que não se pode saber como os significantes do mundo humano agem sobre moções descritas no plano de forças, de energias, de movimentos e contramovimentos. Freud supõe - o que fica claro já no livro citado, mas sobretudo no ensaio "O problema econômico de masoquismo" (1924/2011) -que existe uma condição nirvânica, um tipo de gozo de quietude, ou seja, de ordem qualitativa, miticamente anterior ao estado de desamparo, e que esse equilíbrio narcísico é rompido pela intervenção da realidade, pelo próprio corte do nascimento, isto é, pelas exigências vitais de dentro e de fora, revelando-se assim uma espécie de amálgama com uma disjunção parcial das tendências pulsionais opostas, centrífugas e centrípetas, até então escondidas sob o estado de quietude, de nirvana. Essa passividade que o gozo de quietude originário abriga serve como ponto de ancoragem para o trabalho de ligação efetuado pelo objeto, que instaura então o princípio do prazer. Por isso, já no início do ensaio de 1924, Freud assinala que, no bojo do gozo dormente do estado de nirvana, se ancora o princípio do prazer, acordado pela provocação da realidade; mas esta revela, concomitantemente, a ação da fuga da dor, da retração da pulsão de morte.1 O estado de repouso, em gozo de quietude, permite pressupor, après-coup, a coalescência das tendências opostas das pulsões em algo que Freud batiza como masoquismo primário, passível à sedução do adulto, ou seja, à erotização - masoquismo originário em razão da predominância da tendência à retração que figura a pulsão de morte.

Tudo isso leva Freud a considerar a tendência à retração como algo interno, e o desenvolvimento ou crescimento do aparelho psíquico como externo, vindo de fora, do objeto. A compulsão à repetição seria uma insistência em ligar devido à insuficiência ou falência da provisão das funções do objeto, que seria definido como traumático. A mesma ideia se aplica à tentativa de domínio, ou à antiga pulsão de apoderamento e seus derivados de controle. Daí também a agressão, pois a ligação propicia prazer, e o brincar, uma abertura, inerente ao prazer. É onde a função de erotização da pulsão de morte, que fomenta o masoquismo originário, insiste, visando instaurar traços psíquicos como reserva do prazer e reserva do pensar enquanto atividade livre.

O domínio daquilo que vem de fora, como se vê no brincar das crianças, em que não falta agressividade, pretende se apoderar de algo a que a criança estava, em relação à atividade de fora, passiva de início. O masoquismo erógeno se refere justamente à captação desse trabalho de sedução e continência do meio para uma apropriação daquilo que Freud designa como memória, tornando-se um "poder de efetividade contínua de uma vivência" (1950[1895]/1995, p. 14). Com o acúmulo dessa apropriação, a separação que se impõe desde os inícios - e que leva ao estado de desamparo, em que reina uma disjunção das tendências pulsionais, gerando uma angústia automática -pode, pela travessia das angústias de separação e da ameaça de perda de amor (todos consequências da provisão do objeto), atingir um estado em que a criança se apercebe do objeto, da separação dele, e entra no universo da presença do terceiro, da angústia de castração. Nesse momento, começa a atuar o masoquismo feminino, da apassivação a um outro como um ser separado, portanto reencontrando-o fora, em um mundo que constitui os rivais.

A entrada no período de latência colocaria essa apropriação do meio pelas identificações, através das quais o espaço de licença do brincar de outrora é assumido progressivamente pelo eu sob o regime e a condução dessas identificações. Não vou me deter nesse terreno e em suas raízes primordiais, pois não concernem ao escopo deste artigo.

O que fica claro a partir dessa descrição sumária é que a destrutividade bem como o crescimento no e do aparelho psíquico devem ser debitados, em grande parte, ao trabalho do objeto, o que potencializa o campo da análise, do trabalho de cura. Entretanto, devemos estar atentos a pelo menos dois aspectos importantes. Primeiro: o trabalho do objeto é sempre insuficiente. Daí a descrição do isso como um caldeirão de excitações, onde a maioria dos impulsos não é passível à ligação. Apenas uma parte estaria disponível à criação de trilhas pelo trabalho do objeto. Segundo: o que descrevemos como objeto se expande sobre todo o meio cultural e sua história, tornando esse terreno extremamente complexo. O tecer de uma rede de memória, de uma teia feita dos precipitados da experiência, permite o recalcamento e a separação do objeto; todos resultam de entrelaçamentos entre as tendências eferentes e aferentes, de excitação e retração, de moções centrífugas e centrípetas.

Nessa entrada no roteiro edípico e no complexo de castração se completa, em alguma medida, o trabalho do objeto. A partir daí, a pressão sobre o mundo infantil tem sua fonte nos ideais, oriundos das identificações e cujos mandamentos são pautados pelas aquisições culturais do período de latência. Por trás das angústias sociais e do supereu que se seguem às angústias de castração, acena (aliás, como das angústias primeiras de separação e de perda de amor que se desenrolam junto ao objeto) a ameaça originária de desamparo, de desligamento, este que seria a fonte primitiva, "biológica", segundo Freud, do supereu, modulado em parte pelas direções proibitivas do objeto em favor do reconhecimento progressivo da realidade. Ou seja, os ideais, na medida em que são ditados pelas exigências crescentes da cultura, atuam como pressão disruptiva, de disjunção, sobre aquilo que foi adquirido sob o princípio do prazer no trabalho singular junto ao objeto. Nesse sentido, os ideais colocam a memória, fonte do aparelho psíquico, sob uma ameaça destrutiva: não só põem em xeque as resistências próprias de seu entrelaçamento, revelando seus sítios traumáticos, mas podem até mesmo dissolver as inscrições de memória. Em outras palavras, a disjunção pulsional do estado de desamparo retorna através da cultura, o que faz Freud assinalar para esse estágio um tipo de angústia que ele denomina angústia de destino, que se assemelha ao apelo do bebê, olhando a mãe, para que ela nomeie "seu destino", providenciando-lhe notícias de si (Freud, 1950[1895]/1995).

Na tendência à retração, ao "fugir" das excitações pulsionais, deixando-as soltas, desligadas, a pulsão de morte desenha a moção interna que determina, por outro lado, um princípio de negatividade do aparelho psíquico, e da vida psíquica como um todo - quando, consonante com o trabalho do objeto, ela colabora, porém, na continência, configurando o aparelho psíquico enquanto contenção das excitações. Ela se torna, portanto, pela negatividade, tributária de toda a vida psíquica aportada pelo objeto como porta-voz da cultura: inscrição da experiência em traços mnêmicos, recalcamento, inibição dos fins das pulsões (que proporciona ternura e toda a esfera do amor), inversão dos afetos, introjeção, sublimação, dessexualização, identificação, entre outros destinos marcados pelo caráter negativo da criação da vida humana. No entanto, o excesso da exigência pulsional de vida e a insuficiência de ligação, por razões que dizem respeito ao objeto, configurando efeitos traumáticos no sujeito e somados à inexorável pressão cultural, como expusemos antes, deflagrariam outros fenômenos nocivos na vida psíquica: a negação das realidades interna e externa, a cisão, a agressividade, a evacuação projetiva, o domínio, o masoquismo, a perversão, entre outras manifestações de desligamento e da tentativa desesperada de colmatar seu efeito pela compulsão à repetição e a busca do gozo de quietude de origem.

Como exemplo da ação da pulsão de morte no universo social e cultural, vou partir de uma situação atual, a pandemia do vírus covid-19. Freud alerta que a ciência é uma forma de controle da natureza, uma manifestação da pulsão de apoderamento, de domínio. A perda do sentimento oceânico, talássico, que imanta o mítico recinto nirvânico do ventre materno, matiza o sítio ao qual almejamos retornar - essa é a matriz da felicidade (Freud, 1930/2010c) -em face do desamparo, do desligamento ou da disjunção pulsional que nos acomete ao "cair no mundo". O controle, o apoderar-se, seria a tentativa de ampliar o poder de nossos órgãos de sentido e de movimento; seria, então, uma das vias auxiliares da procura pela felicidade. Onisciência, onipresença e onipotência são manifestações ilusórias de nossa insaciabilidade de controle e busca de conforto que a cultura confere às tecnologias eletrônica e robótica atuais, entre outras da biologia e da medicina modernas, visando colmatar o fosso intransponível entre nós e o mundo para ludibriar a realidade de nosso desamparo. Os ideais contemporâneos são impregnados dessa promessa, que dita todos os modos de trabalho e de valor de nossa vida em sociedade. Essa imposição é regida pela vontade de domar o desconhecido e o inatingível, e portanto comandada pelo gozo, pelo anseio de "resolver tudo", e não pelo prazer em que o brincar e o pensar permanecem abertos ao desconhecido. O mal-estar deriva de um masoquismo moral, de uma culpa inconsciente por não atingir esse gozo de quietude. Com isso, gera uma irrefreável busca por suplantar essa falta ilusória. A globalização e a extensão da civilização, munidas pela ilusão de controle, nos fazem estender uma mão comprida sobre a natureza. Nos últimos 40 anos, mais de 60% das 335 doenças virais diagnosticadas foram transmitidas de animais para o homem, entre eles o temerário vírus da aids, que surgiu em 1982 e para o qual não se encontrou até hoje uma vacina verdadeiramente eficaz. Nos últimos 20 anos, os coronavirus sars e mers já mostraram seus efeitos desastrosos, e agora o novo vírus dessa família tem gerado uma calamidade mundial. Entretanto, foi a civilização, em seu afã de controlar e explorar reservas naturais, que se dirigiu ao encontro desses vírus. Essa mão comprida sobre a natureza é consequência de nosso mal-estar e daquilo que move o ser humano em sua insaciável busca ilusória de resolvê-lo. O homem estende uma mão comprida e apanha justamente pela destrutividade, da disjunção contínua das pulsões que levam a esse desespero de controle, visando atingir a quietude.

A busca do repouso, gozo de quietude originário, em que as tendências opostas da pulsão cancelam uma à outra, antes de serem provocadas pela vida e suas exigências, não deixa de se colocar como fim para o aparelho psíquico. Freud ressalta que a destrutividade, consequência da disjunção das tendências pulsionais, e portanto do acúmulo de excitação no aparelho psíquico, pode encontrar uma salvaguarda na expulsão para fora, na agressividade, o que seria melhor quando esta se põe a serviço da sexualidade ou de outra atividade construtiva, tomando partido da herança do objeto e da cultura. No entanto, agressividade e violência vêm de encontro às exigências de contenção da cultura, alcançando destinos prejudiciais no masoquismo moral, ou seja, na tentativa de ligação dessa agressividade em prol dos ideais e de suas insaciáveis exigências.

Essas considerações, certamente sumárias e incompletas, nos levam a uma posição crítica acerca da confusão que se faz entre pulsão de morte e destrutividade, assim como entre as excitações da pulsão e a pulsão de vida, essa última bastante mal apreciada nos discursos contemporâneos. O que é destrutivo ou construtivo se deve ao trabalho do objeto, à linguagem que aporta e a sua extensão no trabalho da cultura (Kulturarbeit). A pulsão de morte é, como demonstramos, fundamental para proporcionar ligação e construção do aparelho psíquico. Por outro lado, o excesso de excitação é mortífero, ou seja, a porção que resiste à ligação ou que se disjunta do trabalho de ligação, tal como produtos metabólicos que permanecem no meio vivo, envenena o aparelho psíquico.

Todas essas eventualidades são contempladas nos escritos de Freud. Ele tende muitas vezes a designar as pulsões de vida e de morte como os produtos que resultam das ligações ou das disjunções das forças psíquicas - por exemplo, ao observar a "cultura de pulsões de morte" na melancolia, ou quando atribui ao amor a atração de unidades de ligação para torná-las maiores ou mais complexas, como expressão de uma pulsão de vida; contudo, tanto a melancolia quanto o amor se devem ao trabalho mal e bem-sucedido do objeto. A adesão tão frequente ao tipo de globalização atual, em que destrutividade, negação, negatividade, trauma etc. se somam à expressão da pulsão de morte enquanto continência, integração, aceitação, amor etc. como expressão da pulsão de vida, empobrece nosso ofício. Ceder a tal simplificação falsifica nosso trabalho, toda a herança da metapsicologia e sua implicação no pensamento clínico.

O que fica comprometido no discurso sobre as pulsões de vida e de morte é o trabalho do objeto e da cultura, e em consequência disso o cerne do trabalho analítico. Uma escola majoritária credita, no trabalho analítico, mais importância ao papel da continência; outra, menor, ao elemento sexual infantil da sedução ou da exigência pulsional de excitação e promoção das representações. Valeria, aqui, retornar ao que Freud atribuiu, no plano da constituição psíquica, ao trabalho do objeto. Na instauração do princípio do prazer, mediante as imagens de movimento ou as notícias de si propiciadas pela linguagem e pelos gestos do adulto para o bebê, existe um elemento excitante, proveniente do sexual infantil inconsciente do adulto, que constitui um elemento sedutor. Este exige tradução, assim como contém meios de tradução, ou seja, abriga elementos recalcados, que jamais podem se tornar inteiramente conscientes.2 É essa tensão interna que mantém a vida psíquica em seu movimento de desenvolvimento do aparelho psíquico. Laplanche retomou esse modelo para sua teoria da sedução generalizada, radicalizando a proposta, enxergando nessa proporção de oferta do adulto uma fonte da pulsão. Ele atribui ao elemento excitante e enigmático, que visa o desligamento, a raiz daquilo que ele chama de pulsão sexual de morte, e à porção que se submete à tradução em representação, ao ligamento, o ingrediente da pulsão sexual de vida (Laplanche, 1987). Dessa forma, o autor prescinde de elementos "naturais" ontogénicos primários do estado de nirvana, que abriga um entrelaçamento pulsional aberto à disjunção e junção com a intervenção do trauma da vida e do trabalho do objeto. Não obstante, a contribuição de Laplanche coaduna-se, em grande parte, com a de Freud, e não só com a do início de sua obra. Eu me refiro aqui ao trabalho do objeto. Pois a ligação e o desligamento só têm sentido no terreno da proveniência do objeto e da cultura e de sua reabertura no trabalho da análise.3 Entretanto, gostaria de marcar minha diferença em relação à contribuição de Laplanche e de outros autores contemporâneos.

Tendo conferido o maior peso ao trabalho do objeto, ao aporte da linguagem, nas falas e gestos que veiculam os afetos e a ternura do adulto, mostrei que essa provisão de imagens de movimento e de notícias de si abriga concomitantemente elementos enigmáticos, sedutores, junto a meios de tradução, simbólicos, do mundo cultural, ou seja, elementos de continência, de meios de perlaboração dessas mensagens oriundas do inconsciente infantil do adulto. Assim, ela desvia as urgências vitais, em parte, para um universo adquirido, propriamente pulsional. Em outras palavras, ela atua sobre um substrato de entrelaçamento pulsional do estado nirvânico originário, preexistente ao trabalho do objeto e que lhe serve, portanto, de condição de possibilidade. O estado de nirvana abriga em seu bojo a possibilidade do prazer, assim como o amálgama pulsional e sua disjunção parcial - que se revelam a posteriori, com a irrupção da vida, em razão da predominância da moção de retração - preparam o terreno do trabalho do objeto por prefigurarem o masoquismo erógeno, a ambivalência afetiva originária e a bissexualidade. Os três se constituem enquanto séries complementares, advindas do acervo simbólico da cultura, pelo objeto, ao amálgama das tendências opostas da pulsão e sua disjunção parcial. Existem evidências clínicas, por exemplo no autismo, em que a falta dessa disjunção parcial das tendências opostas da pulsão torna o sujeito impermeável à sedução, ao trabalho do masoquismo erógeno pelo objeto. A vida se reduz, então, ao esforço de restauração do gozo de quietude de origem pelo vai e vem de movimentos estereotipados e pela ecolalia. O amálgama e a disjunção parcial das tendências opostas da pulsão parecem torná-la um delegado psíquico, um representante aberto aos aportes do objeto. Nesse sentido, não prescindo, como o fazem Lacan, Laplanche e Pontalis, das fantasias de origem freudianas, sendo elas também matrizes da fantasia. Segundo Freud, elas são coordenadas do mundo psíquico, simbólico, herança de feitos históricos acumulados, na raiz dos quais se situa o assassinato do pai primevo. Freud lhes atribui, enquanto esquemas pré-formados, de estrutura e roteiro, o estatuto de instinto. Essas coordenadas operariam como séries complementares às coordenadas implícitas ao acervo simbólico da cultura, que servem como fonte dos meios de tradução nas mensagens do adulto.

Quaisquer que sejam os impasses do trabalho do objeto, e as configurações clínicas nele detectadas, delineadas por Ferenczi e descendentes, como Winnicott, Balint, Lacan, Bion, Maria Torok, Green e Laplanche, eles comprometem as mensagens inconscientes do adulto e, consequentemente, as notícias de si no sujeito, tão necessárias para a constituição da vida psíquica. Nesses casos, assistiremos ao trabalho da morte. Não obstante, mesmo que o sujeito seja relativamente bem cuidado, ainda assim a destrutividade dos ideais da cultura tenderia ao mal-estar e às medidas de superação dele, através das inúmeras vias de escoamento que a cultura nos oferece - os mensageiros messiânicos e totalitários nas contendas políticas, as ofertas da religião, as drogas, as modas ocasionais e seus livros de autoajuda, as práticas de gozo... todas elas devendo-se à insuficiência do trabalho do objeto em face da predominância da pulsão de morte.

 

Referências

Freud, S. (1965). The interpretation of dreams (J. Strachey, Trad.). Avon. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1983). Contribution à la conception des aphasies (C. Van Reeth, Trad.). PUF. (Trabalho original publicado em 1891)        [ Links ]

Freud, S. (1995). Projeto de uma psicologia (O. F. Gabbi Jr., Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]         [ Links ])

Freud, S. (2006). Lettres à Wilhelm Fliess, 1887-1904 (F Kahn & F. Robert, Trads.). PUF.         [ Links ]

Freud, S. (2010a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 161-239). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

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Freud, S. (2010c). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 18, pp. 13-123). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (2011). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 16, pp. 184-202). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Laplanche, J. (1987). La pulsion de mort dans la théorie de la pulsion sexuelle. In J. Laplanche, Le primat de l'autre en psychanalyse (pp. 273-286). Flammarion.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Daniel Delouya
Rua Capote Valente, 439/104, Pinheiros
05409-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3063-0018
danieldelouya@gmail.com

Recebido em 4/3/2020
Aceito em 22/4/2020

 

 

1 Já no artigo de 1911 "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico" Freud afirma que "o estado de repouso psíquico foi inicialmente perturbado pelas exigências imperiosas das necessidades internas. Nesse caso, o pensado (desejado) foi simplesmente colocado de modo alucinatório, tal como hoje acontece a cada noite em nossos pensamentos oníricos". A alucinação seria o modo de expressão da pulsão vital, animando os traços da experiência com o objeto. No entanto, é no acordar desse sono inicial de repouso, o qual logo será definido como estado de nirvana, que as pulsões vitais surgem, buscando satisfação no alucinar, que toma partido da inserção do princípio do prazer pelo meio. O sono, diria Freud numa nota de rodapé, é "a imagem fiel da vida psíquica antes do reconhecimento da realidade" (1911/2010b, p. 111) que adviria com a modificação do princípio do prazer, postergando sua satisfação, com o advento progressivo do eu.
2 Ver a carta de Freud a Fliess de 6 de dezembro de 1896, em que batiza as primeiras inscrições pré-inconscientes de WZ (signos de percepções), ou o item do esquema da regressão do capítulo 7 (item b) de A interpretação dos sonhos, em que as designa como série de inscrições mnémicas, Mns de 1 a n (Freud, 1900/1965, 2006).
3 Não me detive sobre a extensa contribuição teórico-clínica de André Green quanto ao trabalho do negativo, que retoma a concepção de Sándor Ferenczi através de importantes autores, como Winnicott, Bion e Lacan. Todos eles se centraram em grande parte sobre o objeto.

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