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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

 

ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

 

À flor da pele: buscando representações para o que não tem sentido nem nunca terá1

 

On the edge: looking for representations for what has no explanation and never will

 

A flor de piel: buscando representaciones de lo que no tiene sentido y nunca tendrá

 

À fleur de peau: cherchant des représentations de ce qui n'a pas de sens et qui ne l'aura jamais

 

 

Cassandra Pereira França

Professora e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão com Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual (Cavas/UFMG)

Correspondência

 

 


RESUMO

O fenômeno da explosão brutal da violência escancara a profundidade da crise dos pressupostos éticos em nossa cultura. Este é o tema do presente artigo e que move o pêndulo entre as reflexões acerca da pulsão de morte e o traumatismo na vida cotidiana (movido pelo estupor constante frente à indiferença e ao sadismo presente nas relações perversas que convertem o outro em objeto de uso, submissão e humilhação/vergonha). A fim de acompanharmos os processos de erosão que corroem a subjetividade nos dias atuais, é preciso seguir as trilhas teóricas entrelaçadas nos textos Além do princípio do prazer e O mal-estar na civilização, em que a pulsão de morte se apresenta como pura potência de destruição. O convite é para que os psicanalistas, enquanto agentes de cuidado e possuidores de um instrumental teórico/técnico possante, encontrem uma resposta coletiva diante das condições de produção do traumático em nossa época.

Palavras-chave: pulsão de morte, traumatismo, traumatogênese, violência cotidiana, perversão


ABSTRACT

The phenomenon of the brutal explosion of violence opens up the depth of the crisis of the ethical assumptions in our culture. This is the theme of this article and that moves the pendulum between reflections about the death drive and trauma in everyday life (moved by constant fright/stupor before indifference and sadism present in perverse relationships that convert the other into an object of use submission and shame/ humiliation). In order to follow erosion procedures that erode subjectivity nowadays, one must follow the theoretical paths intertwined in the articles Beyond the pleasure principle (1920) and The malaise in culture (1930) where the death drive presents itself as pure power of destruction. This is an invitation for psychoanalysts, as care agents that have a powerful theoretical/technical instrument, to find a collective response to the conditions of production of the traumatic in our time.

Keywords: death drive, trauma, traumatogenesis, everyday violence, perversion


RESUMEN

El fenómeno de la explosión brutal de la violencia muestra la profundidad de la crisis de los supuestos éticos en nuestra cultura. Este es el tema del presente artículo y que mueve el péndulo entre las reflexiones sobre la pulsión de muerte y el traumatismo en la vida cotidiana (movido por el estupor constante frente a la indiferencia y el sadismo presentes en las relaciones perversas que convierten al otro en un objeto de uso, sumisión y humillación/vergüenza). Para comprender los procesos de erosión que corroen la subjetividad actual, es necesario seguir los caminos teóricos entrelazados por Freud en los artículos Más allá del principio del placer (1920) y El malestar en la cultura (1930) donde la pulsión de muerte se presenta como puro poder de destrucción. La invitación es para que los psicoanalistas, como agentes de cuidado que poseen una poderosa herramienta teórico/técnica, encuentren una respuesta colectiva ante las condiciones de producción de lo traumático en nuestro tiempo.

Palabras clave: pulsión de muerte, traumatismo, traumatogénesis, violencia cotidiana, perversión


RÉSUMÉ

Le phénomène de l'explosion brutale de la violence ouvre toute grande la profondeur de la crise des présupposés éthiques dans notre culture. Celui-ci est le sujet de cet article et qui meut le pendule entre les réflexions concernant la pulsion de mort et le traumatisme au quotidien (poussé par la stupeur constante face à l'indifférence et au sadisme présent dans les relations perverses qui convertissent l'autre en objet d'usage, soumission et humiliation/honte). Afin de suivre les processus d'érosion qui corrodent la subjectivité aujourd'hui, il est nécessaire de suivre les voies théoriques entrelacées dans les articles Au-delà du principe du plaisir (1920) et Le malaise culturel (1930) où la pulsion de mort se présente comme un pur pouvoir de destruction. L'invitation est pour que les psychanalystes, en tant qu'agents de soins et possédant un puissant instrument théorique/technique, trouvent une réponse collective en face des conditions de production du traumatique à notre époque.

Mots-clés : pulsion de mort, traumatisme, traumatogenèse, violence quotidienne, perversion


 

 

Tempos difíceis esses em que estamos vivendo... um pouco desnorteados com as condições de produção do traumático em nossa época - condições estabelecidas ora pelo descontrole da pulsão destrutiva de muitos, ora pela indiferença de tantos outros ao sofrimento alheio. O requinte de sadismo presente nas relações perversas que convertem o outro em objeto de uso, de submissão e de vergonha nos paralisa. Para além da cota de traumatismos psíquicos que aguardam a elaboração de cada um de nós em nossa história pessoal,2 recebemos um quinhão a mais, a cada sirene que toca para ensaiar a retirada da população circunvizinha de alguma barragem de rejeitos da ganância do capitalismo desenfreado. Minas Gerais está com suas chagas abertas. Assim também estamos, a cada gemido dos celulares que nos invadem com os cotejamentos midiáticos da pulsão de domínio: mais uma mulher assassinada, mais uma criança estuprada, mais um homossexual massacrado, mais... mais...

Em um artigo pré-psicanalítico de 1893, "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. Comunicação preliminar", Breuer e Freud já apresentavam uma descrição do trauma com as seguintes palavras: "qualquer experiência que possa evocar emoções aflitivas - tais como as de susto, angústia, vergonha e dor" (1893-1895/1996, p. 46), ou seja, afetos que, como diria Silvia Bleichmar (comunicação pessoal, 2005), oferecem obstáculos à ligação psíquica e à historicização de uma vida. Mas, se entendemos o trauma como o efeito no psiquismo da desproporção entre o excesso de excitação e a capacidade do sujeito em processá-la ou, ainda, se aceitamos que o que torna um acontecimento traumático é sua potência de quebrar todo o sistema de compreensão do mundo (o que o torna inacessível à simbolização), o que pensar diante do traumatismo cotidiano a que temos sido expostos pela explosão da violência por todos os lados?

 

O enigmático conceito de pulsão de morte

Em 1920, quando Freud introduziu o conceito de pulsão de morte, em Além do princípio do prazer, dirigiu-se ao leitor com grande cautela, dizendo tratar-se de uma especulação, que procurava dar conta de um certo número de fenômenos: o dualismo pulsional fundamental, a tendência à compulsão à repetição e a origem da agressividade. Entretanto, a cautela e a argumentação especulativa foram empregadas de modo tão exaustivo que um texto fundado na hipótese da existência de uma tendência primária do organismo à redução completa das tensões e que se propunha a apresentar uma teoria geral do funcionamento dos processos psíquicos acabou se tornando, talvez, "de todos os escritos de Freud o mais confuso, o mais contraditório, o mais cheio de 'vaivém', o mais oscilante, o que mais parece apresentar brechas e ser mais dificilmente conciliável consigo mesmo" (Monzani, 1989, p. 150). Portanto, não é de se admirar que Além do princípio do prazer, ao longo de um século de existência, traga em seu currículo tamanha infinidade de interpretações.

O famoso jogo do carretel cuja observação o levou a deduzir que, para se instaurar o princípio do prazer, era necessário o domínio da cena traumatizante, repetida à exaustão, fez com que ele realizasse

a transição decisiva: se toda pulsão visa restaurar o estado de quietude, e se a quietude do inorgânico é perturbada pela irrupção da vida, então o retorno à quietude é um retorno à não-vida, e a pulsão é um esforço para atingir a morte. (Mezan, 1985, p. 443)

Tal visão freudiana constituiu-se, como sabemos, em um verdadeiro divisor de águas, levando alguns discípulos a recusarem a pulsão de morte, questionando a utilidade dessa noção e condenando Além do princípio do prazer ao abandono e mesmo a uma certa "conspiração do silêncio" (Monzani, 1989, p. 150). Vendo-se, então, confrontado à necessidade de exemplificar o modo de ação da pulsão de morte, apontada como sendo silenciosa e invisível, Freud encontrou no fenômeno do sadismo o que bem podemos chamar de seu representante.

No entanto, não havia mais volta nesse caminho, que seria a partir de então marcado por uma verdadeira reviravolta: repensar de maneira radical os fundamentos da teoria psicanalítica. Só que, dessa vez, "sob o signo de Tânatos" (Mezan, 1985, p. 443), o que o levou a produzir uma série de reflexões que já lhe garantiriam um lugar privilegiado dentre os grandes pensadores da humanidade. Textos como Psicologia de grupo e análise do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939) abriram veios de pesquisa para todos aqueles que queiram pensar os caminhos da violência e do sadismo: "Violência do desejo que se perpetua na repetição, violência do Pai que se instala no superego, violência da castração que bloqueia o amor, violência da cultura que internaliza o terror..." (Mezan, 1982, pp. 252-253). É possível observar que ao longo de uma década (1920-1930) a concepção da pulsão de morte foi se impondo cada vez mais no espírito de Freud, a ponto de ele confessar em O mal-estar na civilização que já não podia mais pensar de outro modo: havia, de fato, na pulsão, uma qualidade que a definia como tal, a saber, sua tendência regressiva, expressa pelos fenômenos da repetição3 que, em última análise, o conduziu a postular um "além do princípio do prazer" (Freud, 1930/1996c).

Entretanto, se no texto de 1920 a destrutividade havia sido vista como uma forma de transformação da pulsão sexual (e que encontrava sua expressão nas manifestações de sadismo e masoquismo), pois Freud, não aceitando pensar na autonomia da pulsão de morte (com uma energia que não fosse a libido), preferia ficar embaraçado nos caminhos da biologia que apenas o levaram a um processo inconclusivo, dez anos mais tarde, como bem marcou Garcia-Roza (1990), ele finalmente assumiu a autonomia pulsional e, no texto O mal-estar na civilização, admitiu que a agressão e a destruição não eróticas estavam presentes em toda parte e ao mesmo tempo.

Em consequência, o próximo não é somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo do seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo.

(Freud, 1930/1996c, p. 108)

Enfim, a partir de então, o enigma recaiu sobre os caminhos no aparato psíquico que permitem às exigências da pulsão de morte invadir o psiquismo e demandar a subjugação do outro à nossa destrutividade. O desamparo humano diante da inclinação à agressão que habita nossa alma e que perturba nossas relações com o próximo, obrigando a civilização a um enorme dispêndio de energia - uma vez que a pulsão de morte partilha com Eros o domínio do mundo -, foi magistralmente descrita em O mal-estar na civilização - texto tão atual, quase profético, uma vez que a visão pessimista de um Freud do pós-guerra parece ter se confirmado: a sociedade civilizada está, permanentemente, ameaçada pela desintegração. Noventa anos depois de anunciada tal sentença, apesar de os seres humanos aparentemente buscarem a felicidade (mesmo que seja amortecendo a dor pela ação de antidepressivos), falham, repetidamente, em conter suas pulsões agressivas. Basta que liguemos qualquer noticiário para que, em meia hora, estejamos convencidos da nossa impotência diante dos vínculos desumanos e traumatizantes que habitam nosso mundo.

 

O convite de Ferenczi à função da alteridade na cena traumática

A presença silenciosa, porém efetiva, da pulsão de morte no aparelho psíquico foi apenas um sucedâneo de hipóteses freudianas anteriores que também investigavam o sexual como fonte de traumatismos - lembremos que Freud havia seguido outras trilhas: a teoria da sedução e as fantasias sexuais inconscientes edipianas, esboçando sua premissa de que "a lembrança do trauma atua como um corpo estranho que muito depois de sua entrada deve continuar a ser considerado como um agente que ainda se acha em ação" (Breuer & Freud, 1893-1895/1996, p. 46). No entanto, como todos nós reconhecemos, coube a Sándor Ferenczi convidar a comunidade psicanalítica "a realçar a função da alteridade nesse contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de violência promovidas no campo social" (Kupermann, 2017, p. 48). Um dos maiores frutos dessa convocação, a de se debruçar sobre a importância da alteridade na constituição psíquica, foi a construção da metapsicologia da escola kleiniana de psicanálise - uma verdadeira odisseia a descrever, passo a passo, o mundo imaginário que circunda a vivência dos afetos mais primitivos que acompanham a construção da representação do objeto em meio ao ódio que os limites da realidade impõem ao eu.

Ferenczi propõe uma releitura relacionai do conceito de Verleugnung - a recusa perversa da castração em Freud - indicando que o não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma "desautorização" da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta "desautorização" primordial na constituição do trauma. (Kupermann, 2017, p. 48)

A traumatogênese ferencziana sugere que todo trauma é, efetivamente, um retraumatismo - há sempre um segundo tempo traumático, muitas vezes mais funesto ainda que o primeiro. Na visão de Ferenczi, cabe ao adulto o papel daquele que tanto pode amortecer o trauma da criança com sua compreensão, sinceridade e ternura ou, então, negar-lhe o papel de fiador da sua verdade. Afinal,

a palavra que desacredita retira toda a ambivalência, não é portadora da ambiguidade nem é capaz de ser polissêmica. Ela é de uma concretude absurda, não desliza e tem o peso de um tijolo. Desumanizada, não pode circular na cadeia associativa, atravanca o psíquico e exige a clivagem traumática. (Pinheiro, 2012, p. 136)

Esse enfoque ferencziano tem se mostrado extremamente profícuo para que nós, analistas, possamos esboçar uma representação da importância da escuta e do cuidado que devem ser ofertados aos sujeitos que atravessam situações traumáticas. Estamos ainda no começo de nossas pesquisas, há muito a ser investigado sobre o traumatismo, tanto no campo teórico quanto no campo clínico. No campo teórico, reconhecer a pertinência e a importância das ideias de Sándor Ferenczi para a clínica contemporânea é apenas a primeira etapa. Também é preciso valorizar a leitura de autores que estudam o traumatismo, como: Masud Khan (1984), que descartou a hipótese de que um único acontecimento traumático seja responsável pelo traumatismo e defendeu a ideia de que o traumatismo é fruto de falhas acumulativas na contenção do excesso pulsional, produzindo "fendas repetidas... [que] se acumulam de forma silenciosa e invisível" (Khan, 1984, p. 63); Nicolas Abraham e Maria Torok (1995), com seus estudos sobre a cripta e a transmissão das vivências traumáticas entre gerações; Myriam Uchitel (2001, 2018), teórica com um pensamento profundo acerca dos efeitos dos eventos traumáticos no psiquismo. O desafio de seguir com esses estudos tem sido facilitado por vários psicanalistas: a começar por Renato Mezan (1982, 1985), pesquisador incansável e que se empenhou em deixar muito bem mapeada a trilha que devemos seguir para estudar a pulsão de morte na obra freudiana; e os colegas Flávio Ferraz (2000), Renata Cromberg (2012) e Mariana Wikinski (2016), que têm pensado os desvarios dos efeitos silenciosos da pulsão de morte nas mais variadas formas de apresentação na clínica.

 

O traumático é narrável?

Dentre todas as inquietações com que nos deparamos nesse campo, uma das maiores gira ao redor de como se dá a apresentação dos conteúdos traumáticos no aparelho psíquico e sua reapresentação no setting analítico.4 Mas por que todo esse interesse neste ponto exato? Porque ainda não sabemos como manejar clinicamente a apresentação do conteúdo traumático: por um lado, sabemos que a perpetuação do silêncio pode eternizar os mecanismos de desautorização traumática e, por outro lado, sabemos que o rompimento do silêncio também pode abrir uma ferida e desestabilizar um tênue equilíbrio psíquico. Temos assistido a isso no campo da violência sexual infantojuvenil aqui no Brasil, em que crianças e jovens precisam produzir a prova do abuso sexual através da narrativa das violências sofridas - o que não deixa de ser uma nova forma de violência a provocar retraumatismos. Vale lembrar a lição de Roland Barthes: "obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar" (1980, p. 57), e que sempre podemos resgatar, como faz Kupermann ao lembrar-nos de que

a recente instauração da Comissão da Verdade pelo governo brasileiro, com o consequente convite para que vítimas de violência do Estado, sobretudo durante a ditadura militar (1964-1985), testemunhassem as indignidades sofridas, reeditou um problema que décadas antes ocupou aqueles que se debruçavam sobre os sobreviventes de campos de concentração: o desafio de compreender a opção de muitos pelo silêncio. (2017, p. 53)

Nós, analistas, deixamos que cada paciente, em seu timing, decida quando e o que contar sobre o que lhe ocorreu. Entretanto, não sabemos qual a melhor intervenção a ser feita a partir do momento em que o conteúdo traumático vem à luz. Que uso fazer dele a partir de então? Como ajudar a que possa se inserir nas teias associativas das rememorações que buscam uma elaboração? Sequer sabemos quais são os efeitos psíquicos, para aquele que narra, do silêncio profundo e do estupor do ouvinte diante da voz do testemunho.

A questão "O traumático é narrável?" coloca em pauta a tensão que existe entre a possibilidade de narrar o ocorrido (quando há a liberdade da palavra) e a impossibilidade de uma narrativa de um acontecimento que atravessou nossa vida, bruscamente, e desorganizou nosso psiquismo ao derrubar suas defesas. Há uma diferença radical entre o relato do acontecido e a narrativa do traumático. Algumas ideias de Wikinski (2016) são preciosas para nos ajudar nesse tema. O trauma é a inscrição do acontecido no aparato psíquico. A narrativa é o resultado da interação de diversos fatores: da constituição do aparato psíquico, da qualidade do fato traumático, da oportunidade em que a narrativa pode ser produzida, de o interlocutor ser real ou imaginário e das circunstâncias históricas que dão lugar ao relato.

Há uma distância, sem dúvida, entre o ocorrido e sua inscrição psíquica, e uma distância entre a inscrição psíquica e o relato, o que nos leva a questionar qual operação psíquica teria sido necessária para que o traumático ganhasse esse estatuto. Também temos de pensar quanto de material originário se conservou e quanto se perdeu no trabalho de transcrição. Afinal, há muitas formas de narrar, independentemente da linguagem utilizada - palavra, imagem, desenho. Todas tentam articular as partes em uma sequência, que tanto pode se dirigir a um interlocutor real ou imaginário (Wikinski, 2016).

 

Efeitos do traumatismo cotidiano em nossa subjetividade

Silvia Bleichmar (2010), importante teórica da psicanálise e da sociologia, chama nossa atenção para o fato de que podem muito bem ocorrer processos de desconstrução da subjetividade5 sem que aqueles que padecem disso tenham noção do que está acontecendo. Ou seja, a desconstrução pode ocorrer de modo gradativo ou, ainda, bruscamente, acompanhada ou não de processos de fragmentação do eu. Ela cita como um bom exemplo o que acontece quando há o terror, que pode implantar novas subjetividades, ao impor um novo corpo de valores e representações, como ocorreu com o nazismo. Afinal, as ditaduras podem desconstruir modos anteriores de subjetividade (altruístas e destinados ao bem comum) e levar o eu a um processo permanente de erosão. Desse processo erosivo de desmantelamento da subjetividade podem advir um individualismo profundo e uma quebra de toda noção de projeto histórico compartilhável.

Para Bleichmar, há dois marcos que são decisivos para entendermos como a realidade pode instituir e destituir formas de subjetividade. São eles: a autoconservação da vida e a autopreservação da identidade. A autora ainda nos lembra de que em situações relativamente estáveis as contradições entre essas duas funções não são evidentes e ambas se desenvolvem sem tropeço. Entretanto, quando se produzem fortes instabilidades - instabilidades política e econômica, perdas, situações de ameaça e medo diante das possibilidades -, essas funções se desestabilizam. Myriam Uchitel (2018), em bela palestra, endossa esta assertiva, lembrando-nos de que em nome da autoconservação da vida, por exemplo, quebram-se princípios e valores que foram fundamentais para a identidade construída ao longo da história do sujeito e das relações sociais; ou, inversamente, no propósito de que os princípios identitários se mantenham, colocam-se em questão mecanismos que até então eram garantia necessária para a manutenção da vida.

Nesse sentido, Juan Carlos Volnovich lembra-nos de que

em tempos de vinho e rosas não é tão difícil conciliar a "autoconservação da vida" e a "autopreservação da identidade", mas em tempos de ódio e susto, esse equilíbrio se perde e deixa lugar a uma fratura: o desmoronamento do psiquismo. (2010, p. 8)

Chegamos ao ponto em que queremos abrir o debate: diante da violência ilimitada, da desintegração social, da decomposição da solidariedade, quais riscos correm a autoconservação da vida e a autopreservação da identidade - noção de quem e do que se é construída ao longo de gerações? Nesse clima de desesperança em que nós vivemos, o que resultará da queda dos valores morais ou éticos a que assistimos atualmente? Só de pensar no modo acéfalo da pulsão de morte germinando aqui, em terreno tão fértil, temos seguidos calafrios...

Mas uma coisa é certa: temos de bradar em alto e bom som que, em hipótese alguma, é hora de comemorar o dia 31 de março de 1964, que marcou o início da ditadura brasileira, mas sim de prosseguir com o inventário do processo de erosão que ainda corrói a subjetividade de muitos brasileiros que agora, submersos na perversão dos valores morais e na violência, não têm mais nenhum projeto identificatório. Nos anos 1990, quando já estávamos ressentidos pela naturalização da repressão e da tortura que marcaram aqueles tempos, Joel Birman, no artigo "A morte entre a ética e a violência", quase que com palavras premonitórias, alertava a sociedade: "Enfim, como o que está em questão é a ruptura dos pressupostos da ordem simbólica, a emergência de profetas messiânicos e de governantes perversamente moralistas é saudada ilusoriamente pela massa desesperada brasileira como uma promessa de salvação" (1994, p. 184).

Bem sabemos o quanto sua premonição baseava-se numa equação psicanalítica, facilmente observável no funcionamento psíquico: quanto maior o nível de persecutoriedade, maior será o nível de idealização. Mas esta não é a única atualidade desse texto, pois o autor ainda nos alertava para a contradição contida na expressão "cultura da violência", que, a um só tempo, expressava "um sistema de produção da violência que estaria integrado no campo da cultura" (Birman, 1994, p. 181), sendo ilustrado por uma política de genocídio que se concentra, evidentemente, em certos grupos e segmentos sociais.

Enfim, nessas três décadas que se passaram, testemunhamos, de fato, o fenômeno da explosão brutal da violência em todas as suas modalidades no Brasil, escancarando a profundidade e a extensão da crise dos pressupostos éticos da nossa cultura e a naturalização da perversão na realidade brasileira.

 

A potencialidade do trauma

Só nos resta apostar na potencialidade do trauma. Uma vez que tenha sido objeto de luto e tenha sofrido um trabalho de transcrição (em que o irrepresentável possa ter se transformado em representável), é possível promover recomposições simbólicas devolvendo continuidade à realidade interrompida. Potencialidade que nos coloque em movimento e trabalho, fazendo conosco o mesmo que tentamos fazer com cada PACIENTE: resgatando-o do deserto árido e solitário em que se encontra diante do seu traumatismo e construindo um sentido para sua dor.

"Não há saída individual para o trauma", afirma Uchitel (2018), fazendo alusão às premissas ferenczianas (Ferenczi, 1933/2011) acerca da devastação psíquica provocada pelo desmentido, e às freudianas, de que o destino do indivíduo não é alheio à comunidade na qual se insere (Freud, 1930/1996c). Estamos todos no mesmo barco. E "não custa lembrar que a ideia de psicanálise como missão impossível é do próprio Freud" e que, mesmo assim, "querer mais é querer não o impossível, mas exigir um possível que só existe a posteriori e jamais de antemão" (Costa, 2012, p. 15). É chegada a hora de reconhecer que nós, psicanalistas, já estamos convocados para "resistirmos ao trauma, naquilo em que nos paralisa, padroniza e repete, naquilo que nos limita para o trabalho coletivo, para o trabalho de integração, dentro e fora da psicanálise" (Uchitel, 2018). Mesmo desesperançosos, com cicatrizes mal fechadas pelas experiências traumáticas que testemunhamos enquanto agentes de cuidado, não podemos esmorecer. É preciso que cada um de nós cumpra seu papel social. É preciso que saibamos escolher as parcerias para a interlocução de ações coletivas que possam tecer sonhos de uma sociedade mais justa e digna. Afinal, não podemos fazer um balanço da nossa vida profissional com reflexões existenciais que tangenciem as de Fernando Pessoa, no poema "Tabacaria" (1928/1987, p. 259):

Fiz de mim o que não soube,
e o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
estava pegada à cara.

Ou, ainda, com reflexões sobre nossa vida pessoal que tangenciem as palavras de Cecília Meireles, no poema "Retrato" (1939/2001, p. 232):

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha essas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra

Eu não dei por essa mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

 

Referências

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Correspondência:
Cassandra Pereira França
30441-014 Belo Horizonte, MG
Tel.: 31 99618-2818
cassandrapfranca@gmail.com

Recebido em 18/3/2020
Aceito em 24/4/2020

 

 

1 Palestra de abertura do IV Encontro Latino-Americano de Pesquisas do Projeto Cavas/ UFMG, Traumatismos da vida cotidiana, realizado em Belo Horizonte (MG), entre 11 e 12 de abril de 2019.
2 Laplanche e Pontalis, tomando Freud como referência, definem a neurose traumática como um "tipo de neurose em que o aparecimento dos sintomas é consecutivo a um choque emotivo, geralmente ligado a uma situação em que o sujeito sentiu a sua vida ameaçada. Manifesta-se, no momento do choque, por uma crise ansiosa paroxística, que pode provocar estados de agitação, estupor ou confusão mental" (1967/1986, p. 315).
3 A questão da repetição comportava dois aspectos: a tendência a reviver situações penosas, ligadas a traumas infantis, facilmente observável durante o processo de análise; e um segundo aspecto, mais teórico, que evidenciava o caráter conservador das pulsões.
4 A principal pesquisa que o Projeto Cavas/UFMG está conduzindo nesse momento é o levantamento em seu arquivo de material clínico que aponte exatamente em qual momento do tratamento o conteúdo traumático se apresentou e sob quais condições transferenciais.
5 Lembremos algo muito importante que Bleichmar (2010) nos diz a partir de suas reflexões acerca das relações do sujeito com a realidade: o primeiro desafio para organizar o pensamento psicanalítico está na tarefa de separar o que é da ordem da produção da subjetividade (modos históricos, sociais e políticos de produção de sujeitos em cada cultura) do que é da ordem da constituição psíquica (diferenciação tópica em sistemas regidos por leis e tipos de representação).

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